Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 11
Capítulo 9 - Pierre




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—Por hoje chega, continuamos amanhã. - Michel recolheu o diário e o guardou de volta na mesma bolsa acinzentada que estava antes.

—Como assim? Eu quero saber o que aconteceu! - retrucou Pierre

—Você vai saber. Mas agora estamos cansados e precisamos dormir. Nos encontramos amanhã ãs onze da noite na sua casa.

—Na minha casa?

—Foi o que eu acabei de dizer. Até lá, adeus.

Pierre ia protestar, mas Rebeca o interrompeu: ´´Larga de ser chato, Pierre, amanhã eles vão continuar! Que coisa! Parece menino! Vamos para casa!``

            E foram, voltaram para casa e lá dormiram.

            Na verdade apenas Rebeca dormiu, Pierre passou a noite em claro escutando a gravação das entrevistas. Escutou-a cerca de cinco vezes, prestou atenção em cada detalhe e remoeu em sua mente cada comentário. Escreveu o que pôde e analisou tudo com muito cuidado.

Não foi trabalhar no dia seguinte, resolveu observar o nascer do Sol e sentir a leve brisa da manhã. Foi cedo à padaria, cumprimentou todas as pessoas que passaram por ele e reparou no olhar de cada uma delas. Foi gentil com o padeiro e comprou alguma coisa para Rebeca. Fez um caminho diferente na volta para observar novas paisagens.

Não era de sua natureza ser gentil, assim como também não o era reparar no mundo à sua volta, mas hoje, particularmente, Pierre se via inspirado a isso. Sentia-se leve, feliz e solto. Não se sentiu culpado por faltar o trabalho e, quando chegou em casa, preparou tudo o que Rebeca gostava de comer.

O cheiro do bolo de maçã fez Rebeca despertar:

—O que está acontecendo com você, Pierre? - pergunta, ainda meio sonolenta, enquanto coça a cabeça.

O repórter se assusta ao perceber a presença da amiga e, sorrindo, começa a se explicar:

—Olá Beca, resolvi fazer seu bolo favorito!

—Meu bolo favorito?

—É, seu bolo favorito. O bolo de maçã que sua mãe fazia.

—O que você quer Pierre?

—Nada. Por que?

—Você nunca é gentil assim!

Pierre se aproxima e sussurra no ouvido da amiga:

—Ora, Beca, e eu não tenho o direito de ser gentil de vez em quando?

—Seria bom se você o fizesse mais vezes.

—Juro que não te entendo. - olhando para frente - Eu só queria te agradar um pouco. Qual é o problema?

—Você nunca faz isso, Pierre. Só achei estranho.

—É que eu estava de bom humor! Meu Deus, que crime há nisso?

—Mas você nunca está de bom humor! O QUE DEU EM VOCÊ HOJE?!

—Sei lá. Não podemos só curtir o momento?

—Talvez... – ela disse num tom desanimado – Desculpe, eu não queria estragar o seu clima, vou voltar a dormir...

—Rebeca, espera...

Ela o ignorou e foi para o quarto. Contrariado com o que acabara de acontecer, Pierre se deitou em seu sofá e observou o teto enquanto escutava o barulho dos vizinhos acordando. Alí ficou e perdeu a noção do tempo. Perdeu também a consciência e adormeceu:

            -Acorda. Já está na hora do jantar.

Ainda sonolento, respondeu:

         -O.... o que?

            -O jantar, seu bocó! O jantar tá servido! Levanta desse sofá e vai comer.

            -Que horas são?

            -Hora do jantar? São oito horas.

            -E por quê precisamos continuar assim? - se erguendo do sofá - Por que não mudamos esse horário? Vamos jantar fora hoje!

            -Larga de ser inútil, Pierre! O jantar já está pronto, na mesa! Vai comer.

            -Tudo bem então. Só queria fazer uma coisa diferente.

            -E desde quando você gosta de fazer coisas diferentes? Você é o cara mais quadrado que eu conheço.

            -Quadrado? Eu? Você me acha quadrado?

            -Claro! Não pensa em outra coisa que não seja seu trabalho.. Você nunca se preocupou com coisas que não considera funcionais.

            -Sério? Eu sou assim mesmo?

            -Tá vendo? Você fica tanto tempo perdido na sua ambição medíocre que não é capaz de se reconhecer no espelho.

            -Nossa, Rebeca, por quê você nunca me disse isso antes?

            -Na verdade eu disse, mas você nunca me deu atenção. Agora vai comer, Pierre.

            -Não. Não mude de assunto. Você acha que a minha vida é sem sentido?

            -Como assim, Pierre? - já sem paciência para continuar aquela conversa - Do que você tá falando?

            -Eu sou uma pessoa fútil? Quadrada?

            -Ai, Pierre, esquece o que eu falei!

            -Por que você repete tanto meu nome?

            -O quê?

            -Você já reparou em quantas vezes repete meu nome?

            -Do que você tá falando, Pierre?

            -Disso! Toda frase sua que se dirige a mim carrega meu nome!

            -É pra ver se você presta mais atenção, Pierre.

            -Mais uma vez. Você faz de propósito?

            -Fazia há um tempo, mas acabou ficando mecânico.

            -Tudo isso pra chamar minha atenção?

            -Uma mulher gosta de ser notada, Pierre. Não é bom se sentir um móvel.

            -Um móvel?

            -Você nem sabe que eu existo, Pierre!

            -Nós combinamos que cada um viveria sua vida. É isso que estou fazendo! Estou vivendo minha vida e deixando você viver a sua.

            -Mas a minha vida é com você!!!

            -Que vida comigo, Rebeca? Nós só dividimos o mesmo teto por necessidade!

            -Como você é idiota, Pierre!! - sai da sala e se tranca novamente em seu quarto.

            -Meu Deus! O que é que você têm, heim?

...

—Posso me sentar aqui?

—Claro.

—Acho chato almoçar sozinha, ainda mais assim, no primeiro dia de aula, quando tá todo mundo tenso.

—É...

—Meu nome é Rebeca, e o seu?

—Pierre.

—Prazer. - sorriu

—Igualmente.

—Nossa por que você é tão seco?

—Seco? Eu? Impressão sua.

—E então, está gostando das aulas?

—É, parecem legais.

—Quer ser jornalista?

—Acho que sim e você?

—Sou poetisa.

—Então por que escolheu jornalismo?

—Porque acho as pessoas daqui mais interessantes. - sorriu, Pierre, como sempre, não percebeu. - Você não se lembra mesmo de mim, não é?

—Pra ser sincero, não.

 

...


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