Sangue escrita por Salomé Abdala
—Por hoje chega, continuamos amanhã. - Michel recolheu o diário e o guardou de volta na mesma bolsa acinzentada que estava antes.
—Como assim? Eu quero saber o que aconteceu! - retrucou Pierre
—Você vai saber. Mas agora estamos cansados e precisamos dormir. Nos encontramos amanhã ãs onze da noite na sua casa.
—Na minha casa?
—Foi o que eu acabei de dizer. Até lá, adeus.
Pierre ia protestar, mas Rebeca o interrompeu: ´´Larga de ser chato, Pierre, amanhã eles vão continuar! Que coisa! Parece menino! Vamos para casa!``
E foram, voltaram para casa e lá dormiram.
Na verdade apenas Rebeca dormiu, Pierre passou a noite em claro escutando a gravação das entrevistas. Escutou-a cerca de cinco vezes, prestou atenção em cada detalhe e remoeu em sua mente cada comentário. Escreveu o que pôde e analisou tudo com muito cuidado.
Não foi trabalhar no dia seguinte, resolveu observar o nascer do Sol e sentir a leve brisa da manhã. Foi cedo à padaria, cumprimentou todas as pessoas que passaram por ele e reparou no olhar de cada uma delas. Foi gentil com o padeiro e comprou alguma coisa para Rebeca. Fez um caminho diferente na volta para observar novas paisagens.
Não era de sua natureza ser gentil, assim como também não o era reparar no mundo à sua volta, mas hoje, particularmente, Pierre se via inspirado a isso. Sentia-se leve, feliz e solto. Não se sentiu culpado por faltar o trabalho e, quando chegou em casa, preparou tudo o que Rebeca gostava de comer.
O cheiro do bolo de maçã fez Rebeca despertar:
—O que está acontecendo com você, Pierre? - pergunta, ainda meio sonolenta, enquanto coça a cabeça.
O repórter se assusta ao perceber a presença da amiga e, sorrindo, começa a se explicar:
—Olá Beca, resolvi fazer seu bolo favorito!
—Meu bolo favorito?
—É, seu bolo favorito. O bolo de maçã que sua mãe fazia.
—O que você quer Pierre?
—Nada. Por que?
—Você nunca é gentil assim!
Pierre se aproxima e sussurra no ouvido da amiga:
—Ora, Beca, e eu não tenho o direito de ser gentil de vez em quando?
—Seria bom se você o fizesse mais vezes.
—Juro que não te entendo. - olhando para frente - Eu só queria te agradar um pouco. Qual é o problema?
—Você nunca faz isso, Pierre. Só achei estranho.
—É que eu estava de bom humor! Meu Deus, que crime há nisso?
—Mas você nunca está de bom humor! O QUE DEU EM VOCÊ HOJE?!
—Sei lá. Não podemos só curtir o momento?
—Talvez... – ela disse num tom desanimado – Desculpe, eu não queria estragar o seu clima, vou voltar a dormir...
—Rebeca, espera...
Ela o ignorou e foi para o quarto. Contrariado com o que acabara de acontecer, Pierre se deitou em seu sofá e observou o teto enquanto escutava o barulho dos vizinhos acordando. Alí ficou e perdeu a noção do tempo. Perdeu também a consciência e adormeceu:
-Acorda. Já está na hora do jantar.
Ainda sonolento, respondeu:
-O.... o que?
-O jantar, seu bocó! O jantar tá servido! Levanta desse sofá e vai comer.
-Que horas são?
-Hora do jantar? São oito horas.
-E por quê precisamos continuar assim? - se erguendo do sofá - Por que não mudamos esse horário? Vamos jantar fora hoje!
-Larga de ser inútil, Pierre! O jantar já está pronto, na mesa! Vai comer.
-Tudo bem então. Só queria fazer uma coisa diferente.
-E desde quando você gosta de fazer coisas diferentes? Você é o cara mais quadrado que eu conheço.
-Quadrado? Eu? Você me acha quadrado?
-Claro! Não pensa em outra coisa que não seja seu trabalho.. Você nunca se preocupou com coisas que não considera funcionais.
-Sério? Eu sou assim mesmo?
-Tá vendo? Você fica tanto tempo perdido na sua ambição medíocre que não é capaz de se reconhecer no espelho.
-Nossa, Rebeca, por quê você nunca me disse isso antes?
-Na verdade eu disse, mas você nunca me deu atenção. Agora vai comer, Pierre.
-Não. Não mude de assunto. Você acha que a minha vida é sem sentido?
-Como assim, Pierre? - já sem paciência para continuar aquela conversa - Do que você tá falando?
-Eu sou uma pessoa fútil? Quadrada?
-Ai, Pierre, esquece o que eu falei!
-Por que você repete tanto meu nome?
-O quê?
-Você já reparou em quantas vezes repete meu nome?
-Do que você tá falando, Pierre?
-Disso! Toda frase sua que se dirige a mim carrega meu nome!
-É pra ver se você presta mais atenção, Pierre.
-Mais uma vez. Você faz de propósito?
-Fazia há um tempo, mas acabou ficando mecânico.
-Tudo isso pra chamar minha atenção?
-Uma mulher gosta de ser notada, Pierre. Não é bom se sentir um móvel.
-Um móvel?
-Você nem sabe que eu existo, Pierre!
-Nós combinamos que cada um viveria sua vida. É isso que estou fazendo! Estou vivendo minha vida e deixando você viver a sua.
-Mas a minha vida é com você!!!
-Que vida comigo, Rebeca? Nós só dividimos o mesmo teto por necessidade!
-Como você é idiota, Pierre!! - sai da sala e se tranca novamente em seu quarto.
-Meu Deus! O que é que você têm, heim?
...
—Posso me sentar aqui?
—Claro.
—Acho chato almoçar sozinha, ainda mais assim, no primeiro dia de aula, quando tá todo mundo tenso.
—É...
—Meu nome é Rebeca, e o seu?
—Pierre.
—Prazer. - sorriu
—Igualmente.
—Nossa por que você é tão seco?
—Seco? Eu? Impressão sua.
—E então, está gostando das aulas?
—É, parecem legais.
—Quer ser jornalista?
—Acho que sim e você?
—Sou poetisa.
—Então por que escolheu jornalismo?
—Porque acho as pessoas daqui mais interessantes. - sorriu, Pierre, como sempre, não percebeu. - Você não se lembra mesmo de mim, não é?
—Pra ser sincero, não.
...
Não quer ver anúncios?
Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!
Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!