Sangue escrita por Salomé Abdala


Capítulo 1
Introdução




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..e foi assim que aconteceu...

Fazia frio, ventava muito naquela cobertura. Não sei o que Fip queria comigo depois de tanto tempo. Mas de uma coisa tenho certeza: nada mudou depois desse tempo todo. Toda essa cena é tão típica dele: marcar um encontro na cobertura desse prédio, minutos antes da meia-noite, um dia antes do meu aniversário, criando toda essa aura de mistério sobre o assunto que devemos tratar...e não estar aqui no horário combinado. Ele deve estar, no mínimo, planejando uma entrada teatral. Aff, Fip, nunca tive paciência para todo esse drama. Não sei onde estava com a cabeça quando aceitei esse convite.

Lá se foi meia hora e nenhum sinal dele...com certeza se trata de algum tipo de vingança ou algo parecido. Pobre, Fip, quando ele vai crescer? Eu devo ser mesmo um grande idiota por ainda aparecer aqui depois de tudo que nos aconteceu. Completamente convencido de que ele estaria alí, escondido em algum lugar a me observar passar por esse ridículo, gritei:

—PRONTO, EU ESTOU AQUI PLANTADO COMO UM IDIOTA ESPERANDO VOCÊ!- disse esperando que ele pudesse me ouvir – APOSTO QUE VOCÊ ESTÁ MUITO SATISFEITO AGORA, NÃO É? AGORA QUE JÁ ME FEZ DE PALHAÇO! AGORA QUE SABE QUE AINDA É CAPAZ DE ME FAZER CRUZAR OUTRO PAÍS SÓ PARA TE VER! ERA ISSO QUE VOCÊ QEURIA PROVAR PARA VOCÊ MESMO? QUE EU AINDA ME IMPORTO? OK, AGORA VOCÊ SABE QUE SIM. FAÇA COM ESSA INFORMAÇÃO O QUE SEUU EGO ACHAR MELHOR, SEU CRETINO, DESGRAÇADO!

Estava realmente enfurecido nesse momento. Por quê ele fazia essas coisas? Não éramos mais adolescentes para fazer esses joguinhos infantis. Já havia me decidido a ir embora quando ouvi sua voz:

—Amável como sempre, Flavius, não sei como consegui sobreviver tanto tempo sem sua histeria.

Minha histeria? Ahhh! Isso era tão típico: ele cria toda uma cena, um teatro, uma situação, com o único objetivo de me irritar. Eu acabo, como sempre, irritando-me. Ele aparece com essa voz calma e aveludada tentando virar o jogo contra mim. É ridpiculo! E ele colocou nossa música para tocar. A nossa música! A mesma que ouvíamos repetidas vezes madrugada a dentro por noites e noites a fio... Meu corpo tremeu. É impressionante como essas pequenas coisas, como uma música, são capazes de mexer com a gente, não? O tom de ironia na sua voz, ao mesmo tempo que me causava uma profunda irritação, despertava uma saudade do tempo que vivemos juntos. Senti o seu perfume de rosas e o cheiro me despertou uma nostalgia quase doente. E aquela música... ah aquilo tudo me matava! Meu corpo já não respondia mais aos meus estímulos... eu tremia como uma criança assustada e meu coração palpitava como palpitou na primeira vez que nos vimos.

Olhei para trás, um pouco contra minha vontade, mas sabendo que era inevitável. E ele estava ali, de pé sobre o parapeito do prédio, segurando uma taça de vinho e olhando diretamente para os meus olhos com seus olhos castanhos. Ele não havia envelhecido quase nada, sua roupa branca esvoaçava ao vento junto a seus cabelos profundamente negros... minhas pernas quase falharam, ele ainda me causava um estranho desejo. E não havia nada que eu pudesse fazer, Fip estava realmente ali. Por um instante eu quis amaldiçoa-lo por isso. Eu o odiava por estar ali, diante de mim, depois de tudo o que passamos. Depois de tanto ter jurado a mim mesmo que jamais o veria novamente. Mas com que direito eu o poderia maldizer se eu mesmo, com meus próprios pés, peguei um avião e saí da Argentina para vir ao seu encontro? Quem eu realmente devia odiar nesse momento era a mim mesmo, por desejar esquecer todo o passado e me entregar novamente a ele. Eu o queria amar de novo, e me odiava por isso.

Ele não dizia nada, apenas me olhava e sorria. Com aquele sorriso indecifrável que vagava entre o cinismo ácido e a completa ternura. Como eu o odiava. Queria ter forças para atira-lo lá de cima. Na posição em que ele estava não seria difícil. É horrível que alguém tenha lhe abusado tanto que você chegue a cogitar uma coisa dessas. E é ainda mais absurdamente terrível que, mesmo assim você ainda deseje estar com essa pessoa. Ao me dar conta disso, percebi que o melhor que eu podia fazer por mim mesmo era ir embora. Ele, no entanto, quando me viu fazer menção de partir, disse:

—Faz muito tempo, não é? Três anos, se não me engano. Acredita que eu ainda tenho as cicatrizes daquele copo que você me jogou nas costas? – ele sorriu, daquele jeito que me assustava, com aquele sorriso que não era nada ambíguo, que deixava clara sua ironia e pré-disposição a fazer algo cruel – Você foi um sacana, Flavius, muito sacana!– jogou a taça no chão, tão perto dos meus pé que dei um pulo para trás assustado – Eu também fui, admito, mas você foi com um pouco mais de dissimulação. Você não vale nada! – Ele dizia isso, como era do seu costume, sem grandes alterações na voz. Com a cordialidade de quem te pede para passar o pão. Sorriu novamente e olhou para baixo – É bem alto aqui.Trinta e quatro andares de queda livre, se não me engano. Ah, eu quase me esqueci, eu não me engano nunca. A não ser, é claro, no dia em que comprei esse apartamento acreditando que “seríamos felizes para sempre”. –  disse desenhando as aspas com os dedos. Apesar da cordialidade de sua voz, eu o conhecia o suficiente para saber que ele estava completamente fora de si.

—O que você quer comigo? – perguntei tentando não demonstrar medo – Quer me matar? Quer me atirar lá embaixo? Vá em frente, Fip, você não me amedronta mais!

Ele riu:

—Te matar? Meu deus, eu tinha me esquecido desse seu senso de humor. Eu, sinceramente, gostaria de ter essa coragem. Assim como você. Admita, você gostaria de ter a coragem necessária para me atirar lá embaixo, não queria? Onde vamos parar com isso tudo? – nossa música recomeçou e ele começou a dançar. Céus, Fip dançava magnificamente! Sim, não é por acaso que ele era um dos bailarinos mais aclamados da atualidade. Ele tinha acabado de voltar de uma turnê pela Europa onde foi aclamado por todos os jornais. O seu corpo se fundia a musica de uma maneira indescritível. O mundo era todo poesia quando Fip se movia. Ele era uma pessoa muito sensível. E sua dança revelava isso. Era precisamente por esses momentos em que sua alma estava desnudada de todo esse cinismo e dissimulação que eu o amava tão profundamente – Eu sempre te amei, sempre fiz tudo para protege-lo, tentei ser o melhor para você. E você sempre me acusou de querer te destruir. De não ser bom para você. Por que isso, Flavius? Por que você precisa tanto ser a vitima da história? Você me vinha todas as noites perturbar meu sono, derrubar minhas torres, ferir meu orgulho. Dizendo que eu isso, que eu aquilo. Eu nunca era bom o suficiente para você! E eu? Eu aqui agüentando tudo com prazer. Sempre me apegando as migalhas de atenção que você me concedia quando precisava de mim. Eu sempre me dando por satisfeito com o prêmio de consolação. Ah, e não me faça essa cara! Admita, você sempre me usou! Só corria atrás de mim quando as coisas davam errado para você. É lógico, não? O Fip está sempre aqui de braços e pernas abertas, não é? Quantas noites eu tive que agüentar você bater na minha porta para pedir consolo, para chorar pelo outro, para suportar o fato de que você, de fato, não me amava! E para que? Para ouvir você com essa ladainha de ‘’você quer me atirar lá embaixo? Vá em frente”! – ele disse isso imitando minha voz -  Você sempre me acusou disso! Sabe, Freud chama isso de projeção. Engraçado é que ate hoje você enche a boca para se colocar como vítima da situação. Pobre Flavius, quando você vai crescer? Eu já estou cansado. Cansado de tentar não amar mais você. Não agüento mais tentar te convencer. Hoje é seu aniversário. Lembra do primeiro aniversário que passamos juntos? Foi maravilhoso, não foi? Por que nossa vida não foi sempre maravilhosa como naquela noite?

—O que está acontecendo com você, Fip?

Ele parou de dançar e olhou para mim. Eu estava realmente preocupado nesse momento da conversa, onde exatamente chegaríamos com essa conversa? Já a tivemos milhares de vezes e o resultado sempre foi uma relação mais e mais emaranhada em rancor. Fip sorriu e continuou:

—Acabou, Flavius, esgotaram-se minhas forças. ‘’Um homem não se acaba quando acaba um sonho, mas sim quando se esgota o desejo de sonhar’’. Eu tomei uma decisão. – Ele curvou seu corpo em cambrê para pegar outra taça que estava no parapeito – E achei que você deveria ser o primeiro a saber. Considere esse o meu presente de aniversário. – e Fip sorriu novamente, mas dessa vez como nos velhos tempos, sem ambigüidades, expressando somente a doçura -  Vou me ausentar por uns tempos. – falou enquanto enchia a taça – Me mudar para longe – atirou a garrafa para trás de si, de modo que ela caísse do prédio – Deixar que as pessoas me esqueçam. Eu sei, sim, isso é loucura, abandonar toda a fama que eu conquistei, mas quem liga pra isso? Não tenho mais a mínima paciência para dançar. Não é tão divertido com tanta gente gostando. Parabéns, Flavius, você finalmente vai se livrar de mim. – Dramático como sempre, Fip sempre conseguia me fazer me sentir mal com essas colocações – Peça perdão ao Michel e a Natasha por mim, eu não gostaria de partir sem me despedir deles pessoalmente, mas esse momento tinha que ser só nosso, você entende, não entende? – fiz um sinal afirmativo com a cabeça, desejando não ter vontade de pedir que ele ficasse – Ah, sim, quase me esqueci! Uma amiga entrará em contato com você dentro de alguns dias, por favor, faça o que ela te pedir. Me promete? – Disse que sim – Maravilha! Eu gostaria de te pedir um beijo de despedida, mas acredito que isso poderia diminuir a força das minhas decisões. – eu quis pedir o beijo, mas senti que não deveria – Um brinde a história de amor que não tivemos! – ergueu a taça, bebeu um gole – Feliz aniversário, meu amor. – soltou a taça e a observou cair no chão, olhou para mim e falou com a doçura que sempre me conquistou – Eu te amo muito, meu querido, seja feliz. Adeus, meu querido.

...Seu corpo rodopiou no ar como uma pluma, enquanto o meu estremeceu como se levasse um golpe. Tentei correr e impedi-lo, mas foi inútil...só cheguei a tempo de vê-lo girando e se afastando cada vez mais de mim, em direção ao chão, em direção a morte e ao esquecimento... pensei em me juntar a ele, mas fui fraco demais. A única coisa que pude fazer foi gritar com todas as forças de minha garganta :

— SEU DESGRAÇADO!

Gosto de acreditar que ele pôde me ouvir...depois disso fiquei atirado no chão pelo resto da noite, repetindo para mim mesmo ‘seu desgraçado... seu desgraçado...’’

‘’Neste dia, 23 de setembro de 2003, foram derramadas as últimas gotas do meu sangue...’’


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Notas finais do capítulo

Enjoy =p