Eu sou... Scarlet Mills escrita por lljj


Capítulo 6
Garota de Coração Partido




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/786723/chapter/6

O Parque da Lagoa era uma vasta área verdejante localizada no centro acinzentado da populosa capital imperial. As estradas de terra aplainada convidavam os frequentadores para um passeio vagaroso ou uma cavalgada veloz. Aos fins de semana, o gramado era tomado por toalhas xadrez e cestas de piquenique. Na lagoa, o ponto de referência, barquinhos a remo flutuavam sobre a água escura, cercados por grupos escandalosos de patos selvagens. Um ambiente familiar, movimentado e agradável.

O sol fazia sua descida para o entardecer quando me aninhei sob as sombras de um salgueiro-chorão. Ao longe, crianças brincavam de pega-pega e um casal passeava com seu cachorro. O som de conversas e risadas se misturava ao farfalhar das folhas e o canto dos pássaros. Uma melódia sutil que relaxou o meu corpo e pesou as minhas pálpebras. Há dias eu operava com a carga mínima de sono.

Essa era a desculpa que rondou minha cabeça quando Erwin me acordou.

Sentei-me de súbito, assustada com a figura muito coberta que se erguia sobre mim. Notar as sobrancelhas grossas embaixo da aba do chapéu foi o que me impediu de gritar.

— Quer me matar? — exclamei, espalmando o coração acelerado.

No céu, a matiz alaranjada do entardecer assumiu tons profundos de azul-escuro. Nenhum sinal de crianças, casais ou cachorros. Até os pássaros pareciam ter se recolhido para a noite.

Quanto tempo eu dormi?

— Desculpe, não queria te assustar — disse Erwin, sentando-se diante de mim. — Achei que estivesse fingindo para não atrair curiosos.

No meu típico disfarce de cavalariço, ninguém estranharia ao me ver babando no chão durante um possível intervalo do trabalho. Era um álibi interessante que o cansaço ajudou a comprovar. Ainda assim, me constrangeu ser pega tão desprevenida por alguém que confiava nas minhas habilidades de sentinela.

Esfregando a sonolência dos olhos, encolhi os ombros.

— O que você tem pra mim?

Erwin retirou um maço de papel dobrado do bolso e entregou para mim.

— Veja se reconhece algum desses retratos.

Endireitei a coluna com atenção, o peso do sono evaporou como se nunca houvesse existido. Eram quatro desenhos detalhados de homens diferentes.

— Quem são? — Indaguei, analisando o perfil do primeiro.

— São prisioneiros da Muralha Rose — respondeu, e senti a intensidade de seu olhar como um toque físico. — Eles foram pegos transportando pessoas ilegalmente para Sina. Pessoas que foram tiradas a força de suas casas.

O entendimento esfriou o meu sangue.

— Traficantes.

— Sim — concordou Erwin. — Eles fazem parte de um grupo maior que atua principalmente em Trost.

— Trost — sussurrei, um arrepio cortando minha espinha. — Estávamos em Trost quando Rose foi levada.

— Os membros são sorrateiros — continuou ele —, é difícil capturá-los. Esses quatro são experientes nesse negócio, mas sequer tinham ficha criminal antes da prisão. Tenho noventa por cento de certeza que o organograma do grupo não sofre muita variação com o passar do tempo.

O que significava que um desses quatro podia estar diretamente ligado ao rapto de Rose.

Lentamente, alinhei os retratos sobre a grama e invoquei cada lembrança daquela fatídica noite. Era difícil separar o que era uma memória real daquilo que era fruto dos inúmeros pesadelos que tive ao longo dos anos. O certo era que Rose e eu dormíamos sob a marquise de um prédio quando aconteceu.

Durante o dia, tínhamos conseguido dinheiro suficiente para comprar uma sopa de ervilha. Com a barriga cheia e o clima frio que antecedia o inverno, nos alinhamos para dormir mais cedo, planejando ganhar muito mais dinheiro no dia seguinte. Faltava pouco para juntar o valor das passagens para a Muralha Maria. Nossa nova vida começaria lá.

Duas garotas de dezesseis anos, desacompanhadas, dormindo pesadamente nas ruas de uma cidade estranha.

O alvo perfeito para os traficantes de pessoas.

Eu acordei no segundo em que o calor de Rose se afastou de mim. No instante seguinte, me vi nos braços de um homem gordo, sua mão pesada tapando a minha boca. Diferente de Rose que se debatia e resmungava em posse do outro bandido, eu não esbocei reação enquanto amarravam meus braços e pernas. Meu cérebro não conseguia processar o que estava acontecendo, então apenas desligou. Aérea, assisti quando amarraram Rose e mal me mexi quando nos jogaram nos fundos de uma carroça.

Ali iniciava uma história de terror.

Trêmula, estudei a fisionomia presente em cada um dos retratos. Levaria muito mais de dez anos até eu esquecer a face dos monstros que arrancaram Rose dos meus braços. Sim, com certeza, lembraria deles até no dia da minha morte. E, infelizmente, nenhum dos quatro prisioneiros batia com minhas lembranças.

— Não é nenhum desses — sussurrei, sufocada pelo sentimento desolador da frustração. — Tem outros traficantes que eu possa reconhecer?

Erwin negou com a cabeça.

— Esses foram os únicos que localizei.

Suspirando, me inclinei contra o tronco do salgueiro.

— E agora?

— Pretendo interrogar os prisioneiros pessoalmente — respondeu ele, recolhendo as imagens. — Eles são relutantes em falar sobre a organização, mas com o incentivo certo...

Erwin se levantou e eu o segui.

— Tem pistas sobre o Imperador? — perguntei.

— Nada que você já não saiba. Apenas posso confirmar que se trata de um nobre. E um bem poderoso para movimentar um negócio tão grande quanto o tráfico humano. Transportar pessoas contra sua vontade de uma muralha a outra, passando por pedágios e forças policiais? São muitos olhos sendo pagos para não ver.

Andamos lado a lado até uma das estradas de terra. O acendedor de lampiões passava com sua chama pelos postes do parque que, durante a noite, era propriedade dos casais de namorados.

— Você se casou, Erwin?

Ele ricocheteou a cabeça em minha direção e só então me dei conta do que perguntei. Uma questão simples, embora um tanto pessoal demais, considerando o pouco contato que tivemos após a reaproximação.

Completamos três meses de trabalho conjunto. As cartas trocadas semanalmente se restringiam a assuntos relevantes, alguns até urgentes. Não havia espaço para conversas casuais. Eu conhecia mais sobre o Erwin da juventude do que o Erwin adulto, aquele que era o terror noturno da nobreza. Um homem tão dedicado a servir a humanidade teria tempo para algo tão mundano quanto namorar?

— Não — disse ele, e o sorriso em seus lábios só podia ser classificado como tímido. — Não acho que seria justo.

— Como assim?

— A minha vida está cheia de perigos, dentro e fora das muralhas. Não seria justo me comprometer com alguém apenas para morrer no dia seguinte. Prefiro ficar solteiro. — Sua voz carregou um tom suave e pensativo, como se falasse de um sonho de infância que se contentou em não realizar. — E você?

— Eu?

Ele sorriu mais abertamente.

— Imagino que tenham chovido propostas pela sua mão ao longo dos anos.

Enfiei as mãos nos bolsos da calça puída, levemente envergonhada com a sugestão. Se ele podia responder com sinceridade, eu também podia.

— Cheguei perto de me casar um tempo atrás, mas... — Balancei os ombros. — Não deu certo. Acho que não é pra mim. A única pessoa que quero ter pelo resto da vida é a minha irmã. O resto é... dispensável.

Os portões de ferro da entrada do parque apareceram logo a frente. A rua do lado de fora estava movimentada, assim como todas as outras que compunham o mapa de Mitra. Minha atual hospedagem ficava há três quadras de distância, menos de vinte minutos a pé. Um percurso fácil que eu faria com segurança. Mesmo assim, um sentimento especial nasceu no meu peito quando Erwin ofereceu:

— Quer que eu te acompanhe até o hotel?

— Nah, posso ir sozinha, capitão — brinquei. — Cuide do seu próprio pescoço e garanta sua parte no acordo. É tudo o que peço.

— Teremos uma nova expedição nas próximas semanas, então ficaremos mais tempo sem nos ver.

Concordei com a cabeça e... não, o que estava sentindo não era decepção. Preocupação. Sim, expedições eram preocupantes.

— Scarlet precisa ficar de olho em alguém dessa vez?

— Nada de urgente — disse ele. — Mantenha a rotina e me avise caso algo estranho surja.

Concordei novamente, mas sabia que nada sério apareceria. O que houve com Daniel Desvalles arrefeceu a perseguição do parlamento contra a tropa de exploração. Daniel, aliás, apresentou um comportamento mais discreto durante o fim da temporada de eventos sociais. A última vez que o vi foi naquela sessão da Câmara dos Lordes.

Não perguntei a Erwin o que ele fez para conquistar a colaboração do nobre, mas tinha algumas teorias — uma mais perturbadora que a outra.

— Vamos transformar esse no nosso ponto de encontro a partir de agora — falei, indicando o parque.

Erwin aquiesceu.

— Até a próxima, então.

Meus pés enraizaram no chão, determinados a permanecer o máximo de tempo sob o olhar cristalino de Erwin. Uma sensação de déjà-vu me atingiu quando pensei que aquela podia ser a última vez que eu o via.

— Até, capitão — murmurei, e hesitei por duas batidas de coração antes de me virar e descer a rua.

Na esquina, quando olhei para trás, ele já havia partido.

~|~

As teclas do piano estavam quentes sob os meus dedos, além de um tanto pegajosas pelo suor acumulado de quarenta minutos de apresentação. Minhas juntas doíam a cada nota elaborada. Eu estava mais que satisfeita por ainda mover os pulsos, porque a dormência nos braços tinha vindo para ficar. A cereja do bolo era a ardência esquisita que queimou minha garganta desde a terceira canção do repertório. Desafinei por diversas vezes, o que rendeu uma expressão alarmada de Renzel, do outro lado da sala.

A apresentação fora contratada para animar o jantar da família Richester. Os convidados chegavam aos poucos e se espalhavam pela ampla sala de visitas, onde aguardariam até serem conduzidos à mesa. Cerca de quarenta deles zanzava pelo ambiente; a maioria bem perto do piano para apreciar o meu solo. O combinado era eu cantar até todos os convidados chegarem, fazer uma pausa durante o jantar e voltar para o piano quando a refeição terminasse, aceitando pedidos de música. Esse formato de apresentação era minha especialidade, embora a crescente dor na garganta estivesse dificultando o trabalho.

Quando a chegada dos últimos convidados foi anunciada, experimentei uma mistura interessante de alívio e pânico. Alívio, claro, porque enfim teria a minha pausa; pânico, porque entre os anunciados estava Helen Baker.

O término da missão contra Silas Baker não apagava o que aconteceu entre sua filha e eu. Fui cuidadosa em evitar os lugares em que ela frequentava, assim como cortei o contato por cartas. Pura covardia, com certeza, mas... O que podia fazer?

O voto contrário de Daniel quebrou o trato selado entre Silas Baker e Vitor Saer. Nenhum acordo de casamento sairia dali; principalmente depois que Silas declarou ódio eterno a Daniel e sua descendência. As ilusões românticas de Helen foram por água abaixo.

E, indiretamente, a culpa era minha.

Por mais que ela desconhecesse minha participação na história, eu ainda queria distância. Agora, ao vê-la adentrar a sala e fixar os olhos em mim, percebi que estava certa na minha decisão.

Os convidados começaram o lento deslocamento até a sala de jantar. Helen, numa postura rígida, marchou em minha direção. Levantei-me do assento para recebê-la, um sorriso incerto no rosto.

Ela parecia... diferente.

Os cabelos loiro pálidos estavam amarrados atrás da cabeça, sem sinal da franja que divertia sua aparência. Usava um daqueles vestidos horrorosos, com mangas longíssimas e cintura disforme. A tonalidade cinza tornava o figurino perfeito para um velório. E realmente Helen parecia estar de luto. Havia manchas escuras sob seus olhos e linhas de pesar ao redor de seus lábios.

Assim que ela estava ao meu alcance, murmurei:

— Helen, o que houve?

A pergunta não transpareceu a inteligência que eu achava possuir. Na verdade, se eu fosse inteligente mesmo, teria previsto o que aconteceu somente de olhar a fúria velada que Helen direcionava a mim. Minha estupidez, aliada a minha arrogância, me cegaram. Por isso, quando a garota acertou um tapa no meu rosto, sequer tive tempo para me proteger.

Haviam dezenas de pessoas na sala e, mesmo assim, o som de pele batendo contra pele ecoou viciosamente pelas paredes. Em seguida, veio o silêncio, e eu preferia que ele fosse eterno, assim jamais teria que ouvir Helen declarar:

— Minha mãe tinha razão, você é uma vagabunda descarada! — Ela arfava, as faces num vermelho brilhante. — Eu confiei em você e a primeira coisa que fez foi correr atrás dele. Sua vadia imunda!

Ela teria desferido outro tapa caso Renzel não tivesse brotado do chão entre nós duas.

— Por favor, se afaste, milady — pediu ele, mais sério do que o vira em anos.

Uma jovem segurou Helen pelos braços e a puxou para longe. Ela continuou a gritar:

— Eu odeio suas músicas, sua mentirosa! Você não passa de uma interesseira que corre atrás dos homens dos outros. Eu te odeio, Scarlet Mills. Eu te odeio!

Os acontecimentos que sucederam o espetáculo passaram como um borrão. Quando me dei por mim, estava dentro de uma carruagem em movimento, ainda segurando a bochecha atingida, com Renzel tendo um chilique no banco ao lado.

— Que porra aquela cadela loira estava falando? Responda! Sabe como isso pode manchar o seu nome? Caralho! Quem é o homem?

— Daniel Desvalles — murmurei, a mente clareando. — Saíram notícias nos jornais... diziam que estávamos juntos... Helen entendeu tudo errado...

O que fiz foi bem pior do que tentar roubar o noivo dela.

Renzel liberou um suspiro pesado.

— Aquela pirralha imbecil — resmungou — nos custou o cache da noite.

Ah, sim, a apresentação não seria concluída...

— Foda-se — cuspi, olhando pela janela. O constrangimento da situação ainda não tinha ultrapassado o meu choque. A doce Helen Baker, minha maior admiradora, gritou aos quatro cantos o quanto me odiava. — Estou exausta, Renzel.

Ele cruzou os braços e, por um tempo longo, se contentou em bater nervosamente o calcanhar direito no chão. Depois bufou, como se quisesse rir, mas tivesse esquecido como fazia.

— Essa palhaçada é tudo o que os urubus da imprensa esperam. Você vai estampar todas as manchetes amanhã. Aposto que algum redator está escrevendo o artigo nesse exato momento. “Lady mirrada ataca Scarlet Mills em disputa por homem desconhecida. Confira em detalhes no caderno de escândalos, das páginas oito a trinta e sete.”

Renzel não poderia estar mais enganado.

No dia seguinte, um evento ainda mais apologético que a intriga entre Helen Baker e Scarlet Mills ganhou destaque nos jornais:

A Muralha Maria foi invadida por titãs.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Eu sou... Scarlet Mills" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.