Sugarcoat escrita por Camélia Bardon


Capítulo 7
Sugarcoat




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Só damos um final à dança sem ritmo quando a chuva para. É um tanto decepcionante, porém nos faz sentar ensopados em frente ao Tamara's, o mesmo local de dois dias atrás. Espreguiço-me e torço o excesso de água de minha camiseta, enquanto Cassy retira da bolsa a câmera – estrategicamente guardada dentro de uma embalagem térmica, junto aos nossos celulares. Arqueio as sobrancelhas, como se dissesse "muito bem!" e ela dá de ombros, modesta. Então, ela ergue a câmera para mim, registrando minha cara molhada e alegre.

— Estamos fazendo progresso com a carranca — Cassy parabeniza, virando-se no banco na intenção de deitar em meu colo. Seu cabelo ondulado agora parece maior, ao se esparramar pela madeira. Com um sorriso, ela oferece a fotografia a mim. E é claro que eu aceito. — Eu vou ficar com essa aqui. Você se importa? Tipo, é o seu rosto, e tal... Se... Parecer assustador, eu vou entender.

— Sinta-se à vontade — sorrio, tirando os fios molhados que estão grudados em sua testa. — Com uma condição.

— Ah, é? Qual?

— Uma foto por outra.

— Quer uma foto minha? — ela parece surpresa, pelo modo que franze a testa. — Eu odeio tirar fotos... Por quê?

— Porque você é linda — sorrio, e estou sendo o mais sincero possível em minha afirmação. — E é como você disse: tudo que é bonito merece ser registrado. É injusto que você tenha duas fotos minhas e eu esteja em desvantagem assim. Não concorda?

Cassy ri, com vergonha do comentário. Ou com vergonha de si mesma? Talvez eu nunca saiba.

— Se você está dizendo... Quem sou eu para discordar na sua frente?

— Muito bem. Passe já a câmera para cá, madame.

Ela faz conforme peço, me fazendo um tutorial relâmpago de como utilizar uma polaroid. Peço para ela continuar na mesma posição que está, apenas tirando um ou outro fio de cabelo que esteja fora do contexto. Nego que esteja me aproveitando para acariciar seu rosto. Longe de mim.

Depois de todos os bastidores concluídos, e com um riso impaciente de Cassy me mandando "ir logo com isso", eu finalmente registro seu sorriso constrangido, tanto na polaroid quanto na minhas melhores lembranças. Retiro a fotografia e passo o polegar sobre seus lábios, o que faz Cassy abrir os olhos em pura curiosidade.

— Ficou boa?

— Ficou, é claro — agito-a em minha mão para revelar o que eu já havia visto. Por incrível que pareça, Cassy sorri sinceramente diante da foto. — Estou contratado, señorita?

— Está. Eu... Nunca tinha visto por esse ângulo... Obrigada, Ian...

Cassy segura a foto como se estivesse a abraçando, por um momento, antes de me devolver. Derreto-me com esse gesto. Cada vez mais vou aprendendo a apreciar os pequenos detalhes. É bem possível que eu já fizesse isso antes, no entanto de um modo um tanto mais... Crítico. Agora, a impressão que tenho é que um filtro cor de rosa foi colocado bem diante dos meus olhos e até os possíveis defeitos parecem agradáveis de conviver.

Checo meu relógio. São 10h59, e Sam chegará a qualquer momento. Maldita falta de pontualidade... Até faz sentido, visto que estamos em território americano.

— Eu adoraria me deitar na areia agora, mas deve estar toda grudenta pela chuva — confessa ela, se revirando em meu colo. — Ao mesmo tempo, a sua coxa está tão macia... Posso me deitar aqui sempre?

— Pode. Se elas tem serventia para você, por mim tudo bem.

Ela ri e aperta de leve meu joelho, sinalizando o jipe amarelo limão que se aproxima, totalmente fora de contexto com o dia acinzentado. O que posso fazer? Sam nunca dispensou uma entrada teatral. Mas é claro que, com aquele estereótipo todo, Cassy não pode deixar de ironizar a situação:

— California girls, we're undeniable — ela canta, levantando-se para cumprimentar o casal do ano.

— Fine, fresh, fierce, we got it on lock — Sam devolve a música, fazendo uma imitação ridícula de Katy Perry. Se parar para olhar, faz muito mais sentido a Yelena ser o Snoop Dogg da vez. Ela é cubana, então do charuto para a maconha... Não falta muito... — Nossa, eu era fissurado nesse clipe quando eu tinha uns nove anos...

Yelena e eu trocamos um olhar que pode ser traduzido como "olha só o que fomos arranjar". Depois, rimos e trocamos um abraço reservado, enquanto Sam e Cassy se esforçam para criar um toque que faça sentido para a hiperatividade de ambos. Logo que terminam, se viram para nós com um sorriso maníaco.

— Siniestro — comenta Yelena e, apesar de não entender o que ela disse, concordo.

— Vamos lá, bonitinhos — Cassy envolve os dois pelos ombros, por ser mais alta, e bagunça seus cabelos amorosamente. — Vamos tirar vocês daqui.

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O plano consiste no seguinte: agora que Cassy tem o dinheiro em mãos – num envelope pink, o que a deixou risonha por mais de dez minutos –, trocaremos o jipe amarelo com adesivo de patinhos por um carro de família suficiente para dirigir até o aeroporto, junto a uma passagem para Yelena até Seattle. Tudo no nome dela, com o dinheiro de Sam. Tudo isso decidido enquanto estávamos esparramados pelo Tamara's, com Ellie indo e vindo com os serviços de quarto ocasionais – já que o estômago de Sam é quem o comanda, e não o cérebro.

— Você deu sorte, Lena — Cassy comenta vagarosamente, indicando o celular com a passagem recém-comprada. — Desistiram de uma passagem não tem nem seis horas, para o voo de depois de amanhã. Consegui o mesmo do Sam, mas infelizmente as poltronas não são juntas. Tem problema?

— Não... Problema — Yelena replica, como pode. Tenho certeza de que o tempo em Seattle melhorará seu inglês. Ela está se saindo bem. — Obrigada, Cassy...

Dito isso, Yelena se entregou a um abraço merecido. Escutei-a fungar, o que fez Cassy olhar para Sam com uma expressão convidativa. Logo ele também se juntou ao abraço, confortando a agora namorada. E eu, que não era nada, fiquei observando. Não pude evitar sorrir. Mesmo não estando tão envolvido, Cassy estendeu uma mão para alcançar a minha, puxando-a de leve. E o que pude fazer foi cumprir o papel de amigo/gigante/protetor foi também envolvê-los com os ombros. Assim ficamos por um tempo considerável.

Sam e Yelena saem para trocar o jipe e voltar para o hotel onde estão hospedados, enquanto eu e Cassy digerimos o que faremos agora. Quer dizer, porque não sabemos o que somos um para o outro. Não somos Sam e Yelena, perdidamente apaixonados e dispostos a fugir de tudo juntos. Não passamos uma noite juntos. Estamos nos conhecendo, praticamente.

— Ei, você... quer ficar lá no Joanna's, comigo? — Cassy indaga, casualmente. — O meu quarto tem duas camas, era o que sobrou... é que parece horrivelmente deprimente ficar sozinha depois de tantas emoções em tão pouco tempo, sabe?

— Sei, sim — sorrio, junto a um suspiro. — Por mim tudo bem, se não for incômodo.

— Incômodo... Ora essa, sou eu quem está convidando! Deixa disso.

— Ah, perdoe-me se só estou conferindo, madame. Se você está me convidando, então eu aceito. Com uma condição, só.

Ela dá um passo à frente e me enlaça pela cintura. Como ela é alta, é pouca a diferença que fica entre nós. Mesmo assim, consigo encostar meu queixo em seus cabelos – agora, já secos e volumosos, o que faz parecer que estou apoiando a cabeça em um travesseiro fofinho.

— Sou toda ouvidos, querido.

— Me deixe pagar a minha parte, por favor — rio, fraco. — Ultimamente todos estão pagando tudo para mim, é um tanto humilhante. Tenho minhas economias, adoraria usá-las, se possível.

— Condição aceita. Algo mais?

—— Na verdade, sim... são... — confiro o relógio, só por desencargo de consciência. — 15h35 e o check-out é até as 16h, antes de pagar outra diária. Pode me ajudar com as malas?

Cassy gargalha, cutucando uma costela minha.

— Posso. Mas eu não vou pegar cueca de ninguém, esteja avisado.

É a minha vez de rir com seu comentário sincero. Decido-me por revirar os olhos e ir atrás de minhas cuecas, antes que elas venham parar no meu rosto do pior jeito.

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O quarto no Joanna's é pequeno, mas aconchegante. Diferente do Tamara's, que oferecia uma vista direta para Venice, o Joanna's era uma pensão na Leimert Park, região pouco procurada devido ao caso da Dália Negra. Cassy vai me contando a história enquanto vamos entrando:

— A proprietária, a Lucy, me disse que tem dois tipos de pessoas que procuram residência por aqui. Os fanáticos aspirantes a detetives e os pobretões. O resto das pessoas dizem que esse lugar é amaldiçoado, por isso os preços são tão baixos. E eu não queria um hotel, é tudo tão formal e tudo o mais... Aqui, é só a Lucy e a diarista. E elas não perguntam para onde eu vou. Eu pago a diária e é isso.

— É a frase perfeita para uma assassina, tem certeza que não tem um terceiro grupo? — comento, e ela ri, colocando as novas malas na cama extra. — Por falar nisso, nunca me contou de onde vem a sua renda, sabia?

— Ah, é... Bom, metade vem da minha avó. A outra metade... Eu sou linguista. Trabalho como tradutora em português, inglês, espanhol, francês e italiano. Sempre tive facilidade com idiomas, então me aproveitei disso. Mal saio de casa, já que tudo é enviado no meu e-mail.

— Me sinto um idiota, agora, porque é bem óbvio... Achei que trabalhasse com fotografia...

— Nem tanto, nem tanto — ela sorri. — As fotos são só um hobbie. Eu sou apaixonada mesmo por palavras. De outras pessoas, não as minhas. Eu sempre achei que falei demais e que nunca era nada que prestasse.

Ela faz uma pausa, usando-a para se deitar de barriga para cima em sua cama.

— Quer dizer, foi isso que a minha mãe disse, quando eu era mais nova. Foi por isso também que eu fui morar na casa da minha avó. Porque ela nunca se importou com o meu falatório, sabe? E... Nossa, a conversa ficou estranha, agora, né? — Cassy ri um tanto sem graça, puxando o lençol para si.

Deixo a mala no chão e me viro para ela, na cama oposta. Cassy me encara com os grandes olhos castanhos brilhantes, e sou obrigado pela minha consciência a sorrir em apoio à história.

— Não se preocupe. Não é porque eu falo pouco que fico enojado pelo falatório alheio. Principalmente, não com o seu. Nunca vou te inibir de falar nada, tá legal? — falo baixo, mas é para dar ênfase. Mesmo assim, ela chega mais perto. Então, decido ir até onde está e a envolvo num abraço. Ela não acha ruim; pelo contrário, se aconchega para ficar mais confortável. — Eu acho, na verdade, um charme.

— Charme? — ela ri, erguendo a cabeça para olhar para mim.

— Pode apostar que sim! Você se empolga falando sobre tudo, não tem como não achar fofo.

Cassy sorri, erguendo-se para alcançar meu rosto. Quando o faz, deposita um beijo em cada lugar exposto que encontra. Eu adoro essa decisão – e é por isso mesmo que faço o favor de retribuir com todo o carinho que consigo ajuntar.

— Ei — ela sussurra, bocejando. — Eu quase não dormi querendo te chamar para tomar um café... se importa se eu tirar um cochilo?

— Não — beijo o topo da sua cabeça. — Dormir parece uma excelente ideia.

É essa a questão. Tudo parece uma excelente ideia, se for perto dela.

Cassy se revira na cama para conseguir cobrir nós dois, e eu a acompanho com um riso destinado ao desleixo carinhoso da situação toda. Se alguém jogasse mais um cubo de açúcar, alguém morreria de diabetes. No entanto, eu gosto desse ritmo. Não há necessidade de adoçar mais nada – no mundo das metáforas, eu sou um café mais do que amargo, e ela é os pequenos cubinhos de açúcar para deixar o gosto suportável. Eu, pelo menos, odeio café amargo, mas também odeio o melado. Está perfeito, desse jeito.

— Boa noite — ela sussurra, se recostando em meu peito e enlaçando os braços ao redor de minha cintura. — Não saia daí, hein?

— Nem por um milhão de dólares.

Rindo suavemente, ela pega no sono em dois tempos. E lá fora, volta a chover. Por sorte, estou acostumado com as chuvas intermináveis. Encaro-as como uma bênção.


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Notas finais do capítulo

Música do capítulo: https://www.youtube.com/watch?v=-gSkaAmn0qU
Menção honrosa se por algum acaso você é um ET ou perdeu o fenômeno California Gurls: https://www.youtube.com/watch?v=F57P9C4SAW4

A tia aqui já vai pedindo desculpas pelo click bait da imagem do capítulo, eles só dormiram mesmo...



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