Sugarcoat escrita por Camélia Bardon


Capítulo 3
Get Away




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/786646/chapter/3

Sam parece notar com certo atraso a presença de Cassy em nossa mesa. Esta, não podia estar com uma expressão mais intrigada, como se avaliasse se valia a pena ou não perguntar alguma coisa para o indivíduo de sanidade questionável.

— E quem é você, estranha? — Sam pergunta, abrindo seu sorriso característico. São raras as vezes em que ele não está sorrindo, chega a ser assustador.

— Uma estranha — por sua vez, Cassy sorri com seu humor inabalável. Se colocasse os dois lado a lado, poderia até cogitar uma competição para ver quem sorria mais em uma hora. — Prazer em conhecê-lo. Vão fazer uma fuga?

— Vamos, pelo visto — Sam volta seu olhar para mim, com urgência. — Desliga seu celular, estamos indo.

Dou de ombros e Cassy nos olha pelo canto do olho enquanto retiro o celular do bolso e o desligo. Também a observo retirar umas notas da bolsa para pagar pelos pedidos. Sam e eu trocamos olhares significativos, e posso me arrepender pelo que vou dizer – mesmo que não tenha hesitado:

— Vem com a gente, podemos te deixar onde quiser no caminho.

Cassy abre um sorriso de escanteio, recolocando a bolsa a tiracolo transpassada pelo corpo. Assente com a cabeça e começa a caminhar para fora do estabelecimento. Sam e eu a seguimos, mesmo que eu tenha que segurá-la pelo braço em determinado momento para guiá-la até o carro que Samuel alugou. Trata-se de um jipe de praia clássico. Achamos uma boa ideia, já que estávamos numa cidade praiana. O problema maior na identificação era o adesivo traseiro de “eu paro para animais” junto a uma família de patinhos atravessando a rua.

— Que charmoso — Cassy comenta, gargalhando e subindo para os bancos traseiros enquanto eu e Sam ocupamos os da frente.

— Patinhos são preciosos demais para esse mundo — sorrio, ligando o rádio para que Sam possa fazer sua fuga em paz. Por falar nele, ao dar a partida, preparo o modo encarar. — E então, vai dizer o que está acontecendo ou vamos ter que descobrir com uma etiqueta no pé engavetado num necrotério?

Cassy segura a risada, mas ao receber um olhar mal-humorado de Sam pelo retrovisor, seu sorriso murcha em questão de segundos.

— Não é caso de vida ou morte, não precisa fazer esse drama... — Sam revira os olhos com um tom de discórdia. — A questão é: você se lembra do sr. Torres?

— Sam... Isso foi há dois dias. Não tenho a memória tão ruim assim.

Sam suspira, umedecendo os lábios para iniciar sua história.

— Enfim. Ele. Aparentemente ele ficou bravo demais por dois americanos tentando passar a perna no esquema de apostas dele, então... Ligou para a filha mais nova dele, coincidentemente passando as férias de faculdade em Las Vegas. O auge do capitalismo. Aí, ontem, eu estava hospedado em San Francisco, pronto para saudar minha vida adulta, quando essa... doida me abordou.

— Ela tinha uma arma? — os olhos de Cassy até brilham com a pergunta.

— O quê? Não! Ela... É... Nós passamos a noite juntos — com a confissão, Sam pigarreia. Sua pele pálida logo faz um ótimo cosplay de um tomate.

— Samuel Jones, seu safado! — falo num tom digno de um surto fangirl. — Mas qual é o problema, afinal?

Cassy gargalha, chegando para frente para apoiar o corpo entre os dois bancos.

— O problema é que ela seduziu o seu amigo, dormiu com o inimigo e esperou ele estar num momento hiper vulnerável para revelar o plano do vilão no final. E ele crente de que era outra coisa, confiou na linda cubana.

Ela fala engraçado.

Ergo uma sobrancelha para o Sam, que assente com a cabeça. Solto um grunhido de pura frustração.

— Meus pêsames... E aí, ela está atrás de você agora?

— Desde Las Vegas. Não faço ideia do que ela quer.

— Por que não pergunta? — Cassy sugere, voltando a se recostar.

Paramos no farol, e ambos olhando para ela no banco de trás. Cassy arqueia as sobrancelhas, com uma cara de o quê? Entretanto, uma opinião feminina é bem-vinda. Então, Samuel olha para ela novamente pelo espelho retrovisor, procurando uma continuação para aquela fala.

— É sério! No máximo você vai sair com um olho roxo, por que... Se ela quisesse fazer algo contra você, já teria feito há muito. Aliás, nem teria se envolvido com você, para começo de conversa. O diálogo é essencial para uma mulher. Veja o que ela quer, e aí então você decide se vai fugir ou não.

Sam olha para mim de soslaio.

— Você a conheceu onde e quando?

— Ah, hoje de manhã, na praia.

— Vamos ficar com ela, pode ser?

Cassy gargalha feliz por ter sido inclusa na dupla de dois. Digo, de três.

— E qual é o nome da bomba atômica cubana?

— Ah! — Sam sorri nostálgico por uma coisa que nem tem a validade de 24 horas. — É... Yelena.

— E qual é a aparência dela? — pergunto, olhando pelo espelho retrovisor.

Samuel fica intrigado com a minhas pergunta, por isso imita meu gesto. Menos de cinco segundos depois, ele grunhe em pura frustração. Cassy nos acompanha na olhada traseira, e quando entende o que está acontecendo, chega para o lado no banco.

A tal Yelena, que descobrimos ser um pacote de fúria de um metro e meio e cabelos cacheados na altura dos ombros, pula para o banco traseiro do jipe com uma expressão de quem poderia invocar um furacão a qualquer segundo.

Todos os quatro permanecem em silêncio absoluto, principalmente Samuel, que é o principal “culpado” pelo que está acontecendo. Finalmente, Yelena suspira e inicia a sua descarga de energia:

— ¿A santo de qué se escapó, Samuel? Num minuto, estava ali, gentil e cavalheiro, no outro... Bum! Fugiu! Tive que segui-lo por todo caminho da cidade do pecado até acá para me dar em nada! ¡Ahora que estamos cara a cara, le voy a decir cuantas son cinco!

Meu Deus.

Faço um sinal para Cassy de que estou pulando fora desse problema. Ela assente com a cabeça e salta do jipe quase cinematograficamente. Aí, vem para o meu lado.

Não antes de registrar o momento em uma foto, é claro.

════ ⋆ ☼ ⋆ ════

Cassy e eu aguardamos o casal confuso se resolver, sentados no meio-fio da estrada que leva a Las Vegas. Já começa a escurecer. Na verdade, acho que eu e ela voltaremos para Venice a pé. Não fomos tão longe, então acho que a caminhada compensa.

Quando estou prestes a deitar na calçada e tirar um cochilo, Cassy resolve puxar assunto. Estou começando a compreender que talvez ela seja biologicamente incapaz de ficar quieta por muito tempo. Não é ruim, apesar dos pesares.

— Então, Ian... Eu te contei quase minha vida inteira e não sei quase nada sobre você, a não ser que você e o Sam se meteram numa furada com uns cubanos — em seguida, ela ri de forma contida. Respeitosa, quem sabe? — Por que não me conta como se conheceram? Parecem ser amigos desde sempre.

Abro um sorriso, sem abrir os olhos.

— É verdade. Quer ouvir uma história de crianças fofas, Cassy?

— Exatamente! Sinta-se à vontade.

Suspiro, me ajeitando para não ficar com a coluna gritando mais tarde.

— Bem... Os pais do Sam nem sempre foram essa cachoeira de dinheiro desde sempre. Mas desde sempre tiveram o nariz mais empinado que uma pipa. Eu e o Sam somos... éramos... Vizinhos em Salisbury. Era inevitável que fizéssemos amizade. Os pais dele nunca gostaram que o filho dele conversasse com um...

Baixei o tom da voz à medida que ia falando. Segurei-me por um minuto. Por sorte, Cassy entendeu o recado, ao passo que completou a frase para mim:

— Negro?

— Pois é — passo a encarar meus pés, evitando o olhar. — Ingleses são cruelmente corteses, contudo igualmente racistas.

— Eu sinto muito, Ian... Mas fico feliz pela amizade de vocês ter sobrevivido apesar disso.

Cassy parece bem sincera em sua opinião. Então, resolvo me aventurar nas perguntas.

— No seu país, é assim também?

— Na realidade, é até controverso — ela ri em tom fraco. — Em nosso país o índice de negros ou pardos consegue ser bem maior do que o de pessoas brancas, no entanto ainda assim é um país com forte cultura racista. Mas estamos mudando isso aos poucos. Tenho alguma fé na humanidade...

Sorrio com o comentário dela. Realmente, às vezes uma centelha de noção nos ajuda a seguir em frente com as pequenas injustiças que a vida nos prepara.

— Enfim. Pode continuar a contar a história fofa agora, senhor.

— Com certeza! Então, quando nós tínhamos um dez anos, o Sam sonhava em ser dublê.

— Dublê?!

— Dublê — gargalho, confirmando a história. — De vez em quando ele virava para mim e dizia “você não vai acreditar. Hoje sonhei que estávamos fugindo num SUV preto”.

— Ah, que fofo! E você?

Franzo a testa por um minuto. Daí, tomado pela vergonha alheia de revelar meus sonhos de infância, chego perto dela e baixo o tom da voz para um sussurro – mesmo tendo a plena de consciência de que ninguém mais ia ouvir.

— Eu queria ser vocalista numa banda de metal.

— Ah, meu Deus... — Cassy coloca uma mão na frente da boca, se segurando para não rir alto.

— Pois é. Eu era viciado em Judas Priest. E era na época que eu usava dreads, então me achava um cabeludo — não me rendi e ri junto a ela.

Após rirmos por um tempo considerável, até a barriga doer, Cassy volta o olhar para mim e sorri.

— Acho que qualquer menino pode sonhar com qualquer coisa. Mas e hoje?

— Como assim? — uno as sobrancelhas.

— Com o que sonha, hoje, Ian?

Tenho de tomar um minuto, destinado a encarar a estrada e os carros passando, para conseguir responder à pergunta de Cassy. Subitamente, tudo parece mais quieto e cheio de expectativas.

O que eu sonho, hoje?

É uma boa pergunta, Cassy.

— Eu acho que... Ainda tenho algum tempo para descobrir. Quero conquistar as coisas com meu próprio mérito. Não que eu esteja desmerecendo os dos pais do Sam, mas... As coisas não funcionam assim, do meu lado. Acho que quero aproveitar esse tempo e essa viagem louca antes de embarcar na vida de engravatado. Pois tenho certeza de que ele vai insistir em algum momento para eu entrar na filial em Seattle — rio fraco, batucando as mãos nos joelhos. — Meus sonhos... Bem, talvez estejam um pouco nublados pela minha ansiedade.

Cassy assente com a cabeça e desvia o olhar para a estrada, igualmente.

— Pois então é melhor você fugir, garoto. Fuja da ansiedade como um relâmpago. Qualquer menino pode sonhar com qualquer coisa... Assim como você.

Nesse momento, olho para ela.

As sardas dela ficam bonitas emolduradas com aquele sorriso.

Eu sorrio de volta, mas ela nunca vai saber disso.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Música do capítulo: https://www.youtube.com/watch?v=IMrXDhlT9k8

Google tradutor que também é bom:
¿A santo de qué se escapó? - Seria um "por que cargas d'água tu sumiu?"
¡Ahora que estamos cara a cara, le voy a decir cuantas son cinco! - Agora que estamos frente a frente, vamos botar os pingos nos “i”s!

Será que o Sam acata o conselho da Cassy de escutar a cubana raivosa? Veremos no próximo, heheh. Até mais ♥



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Sugarcoat" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.