Sugarcoat escrita por Camélia Bardon


Capítulo 2
Don't Matter Now




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O primeiro dia na cidade dos anjos é destinado ao meu total desleixo com a tradição da área. Como inglês, sou uma pessoa estritamente profissional e pontual. O que quer dizer que quase sempre estou correndo. Mas, aqui, é o perfeito contrário.

Todos aparentam uma tranquilidade sobrenatural. Sinceramente, dá vontade de pegá-los pelo ombro e sacudir para ver se estão vivos mesmo ou se sou só eu que está enxergando o erro.

Não é de se admirar que a estadia no Tamara’s fosse muito parada para o meu gosto. Então, como medida preventiva em prol da minha sanidade, eu abro meu e-mail no único cybercafé restante, ao que aparenta. Meus dados móveis resolveram me abandonar na América, o que me faz pensar que talvez a surra daquele cubano tenha doído menos.

É claro que não era o objetivo da viagem, de início...

Opto por imprimir alguns currículos e distribuí-los em qualquer que esteja contratando jovens de dezenove anos sem experiência nenhuma. Isso ocupa toda a minha manhã, pelo ritmo apressado com que levo a vida. O que me leva a sentar na frente de um dos bancos de Venice, para tentar apreciar o cheiro de maresia que insiste em fazer cócegas em minhas narinas.

Então, escuto o clique.

Primeiro, eu penso que estou sonhando. Mas então, logo em seguida, escuto a máquina instantânea “cuspindo” a foto para fora. Os mecanismos todos fazendo parecer uma mini máquina de lavar roupas. Quase que de automático, um corpo choca-se ao meu no banco, ignorando o senso comum e físico de que dois corpos não ocupam o mesmo espaço.

— Obrigada! Graças a você, acabo de garantir minha edição exclusiva de “homem jovem em sua plena crise de meia idade antecipada” — a pessoa aleatória gargalha como se tivesse feito a piada do ano. — Gostaria de ficar com ela?

— Perdão?

Pisco algumas vezes para adequar os olhos à luminosidade do sol do meio-dia. Focalizo, então, numa garota que parece ter a mesma idade que eu – ou talvez um pouco mais. Não dá para ter certeza, visto a cara jovial e repleta de sardas. Percebo que ela compreende minha expressão antipática, ao passo que abre um sorriso maior ainda.

— Que falta de educação, a minha. Eu sou a Cassy — em seguida, ela estende a mão energicamente para mim. — E você?

Opto por não apertar.

— Ian. Você estava tirando uma foto minha?

— Credo, quanto mal humor... — Envergonhada, ela recolhe sua mão e passa a utilizá-la para passar os dedos por entre os cabelos ondulados. — Estava... E te ofereci para ficar com ela.

— Por quê?

— Porque... Eu gosto de fotografar pessoas em paz.

Não evito em rir com ironia. Por sua vez, Cassy me olha de soslaio.

— Não estou em paz. Estou procurando um emprego numa cidade que é quente como a imagem do inferno, apesar de ser a cidade dos anjos, meu melhor amigo acabou de ir embora para Seattle e eu odeio praias. Só parei aqui porque minhas pernas estão doendo, e eu estou morto de fome.

— Acho que não vai conseguir um emprego com esse roxo no rosto...

De tudo que eu disse, é isso que ela assimila?

— Ah, isso foi... Bem, é difícil de explicar — rio, fraco.

— Não importa, agora — Cassy sorri de lado e se levanta. Engolindo em seco, ela deixa a fotografia em minha perna, na altura do joelho, pronta para ir embora de seja lá de onde veio.

Ver uma pessoa tão animada ter ficado tão receosa de uma hora para a outra me deixa com uma sensação ruim na boca do estômago. Alcanço a fotografia em meu joelho e a analiso. É um bom trabalho. Não tem filtros. Do ângulo que foi tirado, minha pele escura contrasta com a areia quase branca de Venice. Suspiro, gaguejando para conseguir colocar para fora:

— E-eu... Desculpe. Você não tem culpa dos meus problemas. E... É muito boa com isso.

Cassy ergue uma sobrancelha quase imperceptivelmente. Perscruta-me com os olhos castanho-escuros, quase pretos. Então, volta a se sentar ao meu lado, dessa vez com mais cuidado.

— É que... Quando estou irritado, pessoas felizes acabam me irritando também — concluo desta vez sentindo minhas bochechas pegando fogo pelo constrangimento. — Não sou assim normalmente. Desculpe-me. Podemos começar de novo? — estendo a foto para ela, junto com a mão.

Desta vez, ela aceita, com um lampejo de sorriso retornando ao seu rosto aos poucos.

— Ian Walsh. Venho de Salisbury. Inglaterra. E você?

— Cassia Oliveira. Fortaleza, no Ceará — aí está o sorriso, novamente.

— Cassia? — franzo o cenho, confuso. — Não tinha dito Cassy? E onde fica “Ceará”?

— Tinha! É que é melhor a pronúncia. E fica no Brasil, obrigada.

Volto meu olhar para os aspirantes a surfista na praia. Não faço ideia de onde é isso. Para mim, no Brasil, apenas existiam São Paulo e Rio de Janeiro; não vou dizer isso em voz alta, é falta de educação. Aposto que ela também não sabe a localização geográfica de Salisbury, então estamos quites de certa forma.

—... Fome? — Cassy dizia, guardando a máquina na bolsa que levava a tiracolo.

— Desculpe-me, o que disse?

— Perguntei se está com fome. Foi o que disse, mas estou perguntando de novo por tentativa de ser amigável, sabe? Aí, quem sabe, você pode desabafar direito o que precisa desabafar com uma estranha, eu ouço o que tenho de ouvir e... sumo da sua vida logo em seguida. O que acha da ideia?

Pondero as opções que eu tenho. Ficar com fome porque esqueci o dinheiro ou me abrir com uma estranha. Se bem que, na realidade, eu já disse o que tinha para dizer. Contudo, não vou deixá-la se dar conta disso antes de me pagar um lanche.

— Tem uma barraquinha de cachorro-quente logo ali na esquina — Cassy continua em tom de propaganda. — Dou-lhe uma... Dou-lhe duas...

— Ok! Ok, eu já estou indo — rio, me levantando, ao passo que ela faz uma dancinha da comemoração.

Quando penso que não dá para piorar/melhorar, Cassy pisca para mim e me oferece um braço.

— Você vai adorar o purê no meio.

Santo Deus, onde estou me metendo?

════ ⋆ ☼ ⋆ ════

Cassy não parou um minuto sequer de tagarelar sobre as multiculturas de seu país. Isso incluía o porquê de ela encomendar um cachorro-quente diário com purê, o porquê de ela ter dois nomes e três sobrenomes, e como ela tinha vindo parar em LA.

— Trabalhei desde meus quinze anos para conseguir uma graninha e viajar. Meus avós me ajudaram muito, sabe — ela comenta, adicionando o segundo cubo de açúcar na xícara de café que ela também insistiu em pagar. — Nossa família é de classe média, mas somos três irmãos e eu sou a caçula, então... Eu e o Lucas, o mais velho, sempre tivemos um senso de responsabilidade maior. A do meio, Nina, só por Deus. Mas o Lucas recebia mais porque fazia faculdade e... Bom, eu dava duro para acompanhar o ritmo dele.

Tomando uma pausa para saborear a bebida, Cassy suspirou.

— Aí, a vovó sempre me dava um bolinho de dinheiro nos aniversários e nos Natais. Escondido, parecia que estava me repassando um arquivo confidencial — então, ela ri baixinho, talvez constrangida por compartilhar essa lembrança infantil com um estranho. — E aí economizei todos esses bolinhos para viajar. Formei-me no ensino médio, esperei a maioridade e parti direto para cá. Já faz quatro anos.

— Então, você tem 22 — concluí, fazendo as contas de cabeça.

— Isso aí. E você?

— 19 — foi minha vez de rir um pouco contido.

— Nossa, me senti uma idosa agora — Cassy ri com maldade.

Ergo uma sobrancelha, também tomando um gole do meu café. Cassy imita meu gesto, arqueando as sobrancelhas em tom de deboche.

— Por quê?

— Ora, porque agora terei que me policiar mais com os flertes. Não sei como são os ingleses, já pensou se resolvo dizer que você é lindo e você me denuncia por pedofilia?

Pisco em confusão pela segunda vez no dia com o modo com que Cassy é direta na fala. Agradeço ao poder secreto da melanina por camuflar a vermelhidão em minhas bochechas, pois senão já teria entregado o ponto muito rápido. Pior que não saber o que é um flerte, é receber um e não saber como reagir. Por sorte, Cassy parece saber exatamente o que fazer.

Mas não importa agora, importa?

Observo-a repousar a xícara na mesa e erguer-se de leve na cadeira da frente. Algo no modo em que ela cessa o falatório para fazer isso me hipnotiza de uma maneira que mal consigo respirar normalmente. Quando penso que Cassy vai se aproximar demais, ela me surpreende colocando a câmera em frente de nós e fotografa minha cara de idiota.

Sinto-me traído.

— Ei!

— Viu só? Eu te disse que era lindo — com um sorriso vitorioso, Cassy me exibe sua nova aquisição: um raro momento em que me arrisco a exibir um sorriso. Alterno o olhar entre ela e a foto, ainda não sabendo como reagir.

Quando estou pronto para tentar dizer algo, Cassy olha por cima do meu ombro. Volto-me para trás para ver qual é a interrupção, quando vejo uma figura mais do que familiar adentrar a cafeteria parecendo que levou um banho. Infelizmente, é só suor.

— Caramba, você é difícil de rastrear! — Sam puxa uma cadeira da outra mesa e se senta conosco sem qualquer cerimônia. — Eu explico no caminho, mas vamos ter que dar o fora daqui. Agora. Tem uma cubana no meu encalço e eu não tenho a menor ideia do que fazer.


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Notas finais do capítulo

Nobare uana si us tuguedá, buri don mera nou ♪ opa, música errada! A desse capítulo é essa aqui: https://www.youtube.com/watch?v=5PU5rKdPiSE

Sam não foi embora, voltou com o rabo entre as pernas e temos uma "fuga" implícita. O que mais esperar, né non? Até o próximo ♥



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