Sugarcoat escrita por Camélia Bardon


Capítulo 10
Only a Human




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Permaneço mais cinco minutos observando o ponto onde Cassy estivera. Talvez tenham sido dez. Ou vinte. Sei que a única coisa que fez eu me mexer foram as mensagens de Sam vibrando no bolso da calça.

 

Indiana Sam Jones: "Ei, você ainda está vivo?"

"Sei que ainda são 6h15, mas você é bem pontual..."

"Só me diz se você ainda vem. Pode ser?”

"Desculpe, eu me distraí. Acabei de chegar. Em qual portão vocês estão?"

Indiana Sam Jones: "Portão C. Eu tô usando aquela camiseta florida rosa e laranja que compramos em Havana, não tem erro."

 

Sam é um ótimo amigo, mas eu espero que o tempo em Seattle renove suas ideias do que é um guarda-roupa aceitável para um futuro homem de negócios...

De qualquer maneira, ainda posso dizer isso a ele pessoalmente. Portanto, aperto o passo, pois estou no portão A e são alguns minutos consideráveis de caminhada até alcançar o destino do dia de hoje. Aliás, o penúltimo. Ainda vou retornar para o Joanna's.

É Yelena quem me vê primeiro. Ela abre um sorriso de orelha a orelha, e puxa Sam pela manga da famigerada camiseta florida. Provavelmente estávamos bêbados quando a compramos – é horrível. Mesmo com a aparência com uns pontinhos negativos, Sam parece mais feliz do que já esteve a vida toda.

— Ian! — Yelena parte para o abraço, porquanto que ainda estamos trabalhando num cumprimento que ambos entendam. O retribuo, afagando suas costas amigavelmente. — Oi! Cassy não vem?

Lanço um olhar de soslaio, e aposto que minha cara está das piores, porque ele curva os lábios para baixo enquanto eu nego com a cabeça para ela.

— Cassy pediu desculpas por não poder estar aqui, mas mandou o abraço para que eu repassasse para vocês.

É a vez de Sam abrir os braços para me confortar. Jogo fora o conceito de masculinidade frágil e me atiro no refúgio de duas pessoas carinhosas. Digo isso porque Yelena veio junto, talvez pressentindo que eu precisasse daquilo mais do que o aparente. Vou contar a Sam o que aconteceu, mas depois que ele tiver chegado a Seattle. Por enquanto, estamos só nos despedindo.

— Não quer mesmo ficar com a gente na cidade, ao invés de voltar para Salisbury? — Sam oferece.

— Não. Meus pais estão me esperando voltar. E outra, até lá ainda tem um mês. Vou me enjoar de LA em dois tempos.

— Bem, só não volte para Havana!

Nós três rimos, concordando sem discussão. Pelos próximos minutos, conversamos – ou tentamos conversar – sobre tudo que nos assombrava. Sobre o futuro de Sam na empresa do pai, sobre como ele não se sentia pronto pra assumir essa tarefa, sobre como ele não sentiria falta nenhuma de Salisbury, com exceção de mim. Já Yelena comenta que ainda tem certa apreensão em ser descoberta pelo pai, mas que está animada pela perspectiva de conhecer o mundo e ser mais do que apenas uma peça nos esquemas corruptos de outra pessoa. Sam a enxerga como ela é, e é apenas isso que importa.

Quando nosso tempo estoura, preparo mais dois adeuses. Esses, porém, tenho a ciência de que são temporários. É bem provável que eles dois visitem Salisbury nas férias.

O chão desaparece dos meus pés quando eles dão as mãos e vão juntos para uma nova vida. Abro um sorriso e aceno como se fizesse alguma ideia do que faria a seguir. Como saímos de uma fuga em Havana para isso?

De qualquer maneira, rumei de volta para o Joanna's. A pé. Adoraria sentir uma dor física, para compensar a psicológica. Essa, só viria mais tarde, quando a ficha caísse de vez.

════ ⋆ ☼ ⋆ ════

Finalmente conheci Lucy, a proprietária, e tive alguém para dividir as aventuras de Cassy enquanto esteve aqui. "Boa menina, aquela", ela comentou, com o forte sotaque sulista. Engraçado como algumas pessoas não perdem o sotaque mesmo após anos morando num lugar. Fico me perguntando se o meu britânico soa como o sulista deles. Provavelmente. "Pagava tudo direitinho, deixava o quarto arrumado... boa menina mesmo". Eu sei, Lucy.

De repente, aquelas duas camas no quarto tornam o vazio maior. No entanto, qualquer outro lugar parece errado.

Terei que esperar pelo menos mais dezoito horas para ter notícias de Cassy. Enquanto isso, o melhor modo de arrumar sua vida é arrumando também seu quarto.

O lado bom de estabilizar numa pensão são as gavetas. Então, abro a mala que estou postergando organizar desde a chegada a LA e retiro todas as roupas de lá. Não encontro nada perto da florida rosa e laranja, com a graça divina. Está mais para branco, cinza, azul e preto. Estampas? Raridade. Separo as roupas sujas para perguntar a Lucy onde fica a lavanderia mais próxima – ou se há alguma aqui – e abro a primeira gaveta para guardar as limpas lá.

Não estávamos só e eu e as roupas. Na primeira gaveta, todas as fotos e a polaroid, guardada cuidadosamente na embalagem térmica. É como se eu estivesse assistindo um fantasma do passado, bem diante de mim. Reúno as fotos com as mãos, e praticamente cambaleio até a cama para espalhá-las novamente.

Conto as que conheço. Sam e Yelena no jipe amarelo-limão, em meio a uma discussão bilíngue. O casal no Tamara's. Algumas outras de lugares aqui que tenho a impressão de já ter visto antes, mas não ter a certeza de onde exatamente. A que tirei dela, com o cabelo molhado e todo grudado na testa.

Faltam apenas duas. As que ela tirou de mim.

De algum modo, saber que ela optou por levar apenas essas e deixou o restante comigo, é aterrorizante e consolador, simultaneamente. Pior ainda: deixou a câmera comigo. Não era seu bem mais precioso?

Curioso, puxo a embalagem térmica e retiro de lá a polaroid. Da "fissura" onde saem as fotos, encontro um papel com a marca d'água do Tamara's – onde e quando ela roubara? –, perfeitamente encaixável. É um bilhete. Ah, céus... As surpresas nunca acabam hoje, universo?

Com os dedos trêmulos, analiso o bilhete. Sua caligrafia é redonda e floreada, exatamente como imaginava. Acabo por sorrir com o pensamento.

 

"’Vencedor’ e ‘perdedor’ são apenas palavras. É um novo dia. Invente um novo mundo para explorar. Crie momentos lindos e os registre. Nunca vou me esquecer de você, então... espero que tente o mesmo. Eu amo você.

Cassy-O"

 

Abraço a câmera e o bilhete, me deitando de barriga para cima para fechar os olhos.

Eu estava torcendo para sonhar com uma canção de ninar que me tirasse daquele pesadelo.


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Notas finais do capítulo

Música do capítulo: https://www.youtube.com/watch?v=8vjcgJRd6uI
De onde tirei o nome e a personalidade inteirinha da Cassy (trabalho também do George Ezra): https://www.youtube.com/watch?v=ubztYMkI3fY

Taí, gente. Eu quero abraçar o Ian, pobrezinho. Esse é o último capítulo, cronologicamente falando. Mas ainda temos o epílogo, então segurem os lencinhos.



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