Kadamon, A Travessia escrita por Kyrion


Capítulo 3
Canto 3


Notas iniciais do capítulo

A postagem desse livro não será muito regular, mas evitarei espaços longos. Também procuro manter trechos curtos e mais ágeis.
Perguntas, sugestões e qualquer tipo de interação é bem-vinda! ^.-.^



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Phiyo entrou no quarto um pouco distraído. O que mais o impulsionava a ir até ali? Esperança? Masoquismo? Hábito? Várias vezes se vira ali sem saber exatamente o que o motivava. Talvez isso fosse um reflexo de seu vazio interior, fazer coisas sem decidir por elas. Um reflexo...

Encaminhou-se descalço pelo tapete, sua superfície nodosa já familiar aos seus pés. Com a mão estendida bem alto, conseguia cutucar aqui e ali os véus pendurados, em suas elegantes e diáfanas curvas pelo teto. Por todo o trajeto tentou entreter-se, para adiar seu encontro inevitável. Por fim, nada havendo de interessante no quarto, acabou postado frente ao espelho.

Este mostrava a janela atrás dele como se ele não fosse sequer um fantasma.

Tudo o que Kyrion fez foi suspirar, e torcer o lábio. Cansara-se de sofrer por isso, pensava. Não havia nem sombra, nem uma minúscula forma turva no espelho, que refletia todo o restante do quarto com perfeição.

Bom, talvez ele fosse isso mesmo, um grande nada. Talvez um nada que outros gostavam de reverenciar, um nada educado, um nada de certa forma culto e talvez até um nada quase bonito. Um nada de orelhas pontudas, alto, com uma cauda que se movia com sua irritação.

Mas pegou-se pensando na pequena Aciru. Inocente e bondosa, ela foi contra sua própria educação para poder aproximar-se dele e ajuda-lo. Mesmo sendo jovem, era uma jovem sábia, coerente, uma jovem de alguns séculos de vida. Ela não poria seus valores de lado por nada.

Tal pensamento encheu-o de carinho, enquanto olhava para o chão. Talvez ele pudesse se tornar algo ali. Teria essa chance, de se aproximar, de se dignificar. Recordou-se de uma lição valiosa que aprendera com as torres gigantes em uma de suas experiências passadas: a de que havia um momento certo. Essa convicção o acalentara, na mesma proporção em que testava sua paciência.

Mas aquilo era o bastante por enquanto. O bastante para fazê-lo sair daquele quarto. Retornou de seus pensamentos e voltou para si, de frente ao espelho, movendo- se para ir embora. Mas parou.

Poderia jurar. Poderia dizer por tudo o que conhecia como sagrado. Como um raio que lhe acertasse, e na mesma velocidade, vira o espelho antes de ir embora.

E algo o olhara de volta.

***

Não conseguira discerni-lo perfeitamente, fora mais do que rápido. Quase absurdo. Mas fora perceptível. Phiyo vira alguém no espelho, provavelmente na mesma posição em que ele próprio estava, mas não era ele. Tinha sua altura, mas parecera mais corpulento e de uma cor escura. Talvez cinza como uma tempestade ou tom semelhante. Também não parecia ter os cabelos longos que o próprio Phiyo trazia, pois seriam fáceis de ver. E tinha olhos, olhos que devolveram seu olhar.

Seria aquilo então como um portal, e não um espelho? Mas por que refletiria o quarto, como o fazia agora, como se nada houvesse acontecido? Se aquilo fora outro ser, aparecera naquele mesmo quarto.

Phiyo tentava se lembrar do que lera a respeito, mas somente se detinha na antiga descrição de que o temido espelho refletia o interior de quem estivesse à sua frente. Não podia ser um outro lugar ou outro mundo, senão algo dentro dele. Mas que “eu” era aquele, que percebera de forma tão fugaz? E por que aparecera desta vez e não em nenhuma outra, e justo quando se preparava para partir?

Começou a pensar no que houvera de diferente, e só se lembrava do encontro com a pequena Aciru. O carinho que eles trocaram, a pequena cumplicidade. Aquilo poderia estar preenchendo seu vazio aos poucos, criando para ele uma identidade. Ele encontrara um pouco de si no afeto que ela lhe despendia. Isso era parte do que ele era: o objeto de afeição da pequena.

A ideia rolou-lhe no pensamento por um tempo e, por fim, assentou-se. Tentaria rever aquele reflexo em alguma outra ocasião, tentaria induzi-lo a aparecer. Se estivesse certo, o espelho poderia estar mostrando uma força em potencial, latente, mas ainda não presente. Um devir. Mas ainda não estava certo de sua teoria, e não sabia o que poderia fazer para trazer aquela imagem de volta.

Enquanto pensava nisso, algo no canto de sua visão o fez levantar a cabeça, mais uma vez na direção do espelho.

Pena não ter havido por ali ninguém próximo o bastante para ouvir, através das grossas paredes de pedra, a gargalhada do Kyrion, como nunca fizera naquele lugar.

***

Quem passasse perto da porta fechado do quarto do Kyrion teria uma oportunidade rara, talvez única. Ouvi-lo rir como uma criança, até quase soluçar, acompanhado pela de voz, essa sim, de uma criança em deleite. E ninguém suspeitaria que havia ali um grande plano em ação.

***

Havia muitos lugares no complexo que serviam como refeitórios comunitários; muitos possuíam longas mesas, com bancos contínuos igualmente longos, onde todos ficavam lado a lado. Outros eram dotados de muitas mesas menores, para grupos restritos. Alguns estavam às margens das enormes varandas que descortinavam a paisagem e os jardins suspensos do complexo, enquanto outras eram simples, pacíficos, quase monásticos.

Um dos refeitórios cobertos, de longas mesas, ficava próximo aos aposentos do Kyrion e era frequentado por ele. Não raro era visto ali, só ou acompanhado, às vezes com sua pequena protegida, outras com um bibliotecário com quem tinha longas discussões sobre vários temas. Em geral, muitas cabeças se viravam e educadamente sorriam, ou acenavam. E assim começou também neste jantar.

Mas muitas cabeças mais se viraram. Muitas, muitas mais.

Kyrion entrara imperiosamente, as mãos postas à frente dentro das mangas, olhos quase fechados em um rosto solene. Aciru vinha alguns passos adiante, uma versão diminuta na mesma pose garbosa, traída às vezes por um discreto risinho.

O que chamara a atenção não foi nem a entrada estranhamente régia e formal da dupla, nem a lentidão de sua marcha.

Foram seus cabelos.

A pequena trazia na cabeça uma obra-prima da engenharia: seu cabelo longo vinha torcido desde a nuca, formando um arco circular perfeito a partir do lado direito e terminando no mesmo lugar, descendo à esquerda, todo ornado em tranças que faziam uma espiral. Acima de cada orelha, um pequeno pompom arrepiado, enquanto sua dócil franja erguia-se reta como uma marquise.

O Kyrion, por sua vez, ostentava um grande e irregular volume sobre a cabeça, com pontas aqui e ali espalhadas, encimadas por uma mecha que parecia um esguicho. Em algum lugar no meio, pendia um pente, aparentemente esquecido ali. Em cada lado do rosto, um enorme cacho descia devidamente adornado com um laço de fita.

A plateia do exótico desfile não sabia bem como reagir. Não ofenderiam seu hóspede com um riso, mas tampouco alguém conseguiria elogiá-lo. Ninguém compreendeu a razão de uma aparência tão grotesca.

Quando ao lado de um espaço vago, os dois recém-chegados viraram-se para sentar. Kyrion adiantou-se e sentou, fazendo sua massa de cabelo quicar fofamente, pendendo para frente. Um soluço se fez ouvir, e em outro lugar um acesso de tosse. A pequena de pronto adiantou-se “Queira me permitir corrigir seu penteado, Kyrion.” Ao que foi prontamente respondido “Faça a gentileza, pequena dama.”. Aciru então pegou-lhe o pente dos cabelos, espanou rapidamente o chumaço acima, espichando-se ao máximo (o que causou mais alguns risinhos sufocados) antes de colocá-lo exatamente no mesmo lugar, perdido na montanha. “Obrigado, Aciru. Você é muito prática.”

Os risinhos começaram a escapar com mais frequência, aqui e ali ao longo da mesa, com certo ar de desespero e seguidos por reprimendas. Aciru mal se continha, seu pequeno corpo contorcendo-se para não rir. “Sempre disponha, Senhor.”

O Kyrion virou-se bruscamente para o homem à sua esquerda (causando mais uma perigosa oscilação capilar), logo ao lado de onde Aciru sentava-se. “Queira por gentileza passar-me um pão.”

O outro, ligeiramente aturdido, respondeu tão logo pode “Pois não, senhor.” E pegando o pão, começou a procurar uma maneira de passa-lo ao outro, tendo por obstáculo a arquitetura capilar da pequena, temendo ser indelicado na fineza do trato. Risos pipocaram de quase todos que viram seu desconforto.

A cena então se concluiu com o desfecho do impasse. Kyrion passara a mão por dentro do anel de cabelo da jovem, para pegá-lo. “Obrigado, meu caro senhufff”. Sua frase perdeu-se com a queda catastrófica de seu próprio edifício frontal.

Como se uma sineta tocasse para o sinal de largada, todo o salão irrompeu em risos, inclusive os dois que tramaram toda a situação. Alguns solícitos, desesperados para salvar a dignidade do Kyrion, começaram a inglória tarefa de reerguer o tufo, ao mesmo tempo em que ficavam na terrível dúvida se deveriam ou não tocá-lo. A situação tornava-se mais cômica, fazendo os risos soarem quase histéricos, e o próprio Kyrion perdia-se de rir na grande massa em que se afogara.

Aciru jogou-se às gargalhadas no colo do outro, fazendo com que ambos caíssem no chão, e assim ficaram, descontrolados e abraçados, por um tempo longo e bom demais para ser esquecido.

***

Depois daquela noite – mesmo que parte do jantar tenha sido perdido, com alguns pratos vindo parar no chão – as visitas do Kyrion passaram a ser mais bem vindas, e seu contato enriquecera muito. A reverência deu lugar à afinidade, e mais risos uniam-se ao seu pelos vastos salões. Visitas foram feitas e piadas, nunca antes cogitadas por seu conteúdo questionável, podiam enfim ser contadas, para a alegria dos presentes. E ainda várias vezes, pela simples diversão do ato, Kyrion aceitava participar com Aciru – e várias outras crianças, e até mesmo alguns adultos cuja alma brilhava igualmente lúdica – das sessões dedicadas ao parecer ridículo, esdrúxulo ou maluco, algo que a pequena dominara com mestria e prazer.


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