Kadamon, A Travessia escrita por Kyrion


Capítulo 2
Canto 2




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Alguns dias se passaram. Muitos? Foram vários. O lugar tornara-se familiar aos poucos, embora nunca cessassem as surpresas; haveria sempre um novo cômodo inexplorado, um caminho ainda não percorrido. Mas passado o tempo, o problema mudava: os destinos eram sempre os mesmos.

Phiyo fora tratado com respeito desde o começo, mas sua gentileza fez com que o respeito aos poucos se tornasse simpatia, e lhe rendeu muitos conhecidos, e alguns afetos. Sorrisos eram respondidos com sorrisos, e mãos educadas trocavam gestos, e raros toques. Havia ainda alguma deferência por parte dos outros ao ‘alado’ que os visitava, criando uma distância que era, por vezes, sofrida.

Cabe dizer que era um local habitado por toda sorte de seres, expressados em muitas formas concebíveis; um rápido olhar flagraria pelos, penas e talvez escamas, garras, presas, caudas e grande riqueza de corpos e membros, adornos e olhos. Ah, os olhos, brilhos únicos e especiais, no máximo copiados por seu gêmeo, alojado no mesmo rosto. Não que não houvesse um ou outro caso de trigêmeos...

Todos esses habitantes eram inteligentes no sentido básico da palavra, e todos se expressavam com alguma clareza, ainda que com certa particularidade. As línguas se misturavam, mas o entendimento reinava em uma língua comum, ou em gestos expressivos e simples, uma vez que todos eram ao menos dotados de quatro membros semelhantes.

Mesmo imerso em tamanha variedade e riqueza de indivíduos, algo fazia o Kyrion despontar. E isto lhe fora várias vezes bom, mau, e péssimo. Mas em geral, o fazia solitário.

***

Os ferimentos já estavam sarados, reduzidos a pequenas marcas sob o pelo, percebidas pelos dedos. E provavelmente aquelas marcas também sumiriam. As idas à biblioteca restringiam-se ao mero prazer da leitura, já que não lhe ocorria mais um tema para pesquisa. As explorações continuavam, igualmente; não lhe negavam passagem. Vez ou outra flagrara olhares preocupados ou constrangidos ao perguntar se poderia entrar em determinado aposento, ou passar por certa porta. Sempre recebera respostas positivas, mas pelo desconforto exibido, às vezes abstinha-se de entrar. Outras vezes entrava. Ou ainda, como dessa vez, não havia ninguém por perto para expressar qualquer coisa.

Vira-se em um aposento belo, de teto alto e todo branco, adornado com vários véus claros que pendiam do alto e prendiam-se às paredes. O chão também era forrado por um alto tapete não tingido, e Phiyo tirou a sandália que lhe providenciaram para sentir seu conforto nos pés, a maciez e a textura entre seus dedos.

Na parede à esquerda, estava um espelho, e, à direita, uma janela. Algo que lera voltara-lhe à mente: o espelho que via – e do qual duvidara da existência – mostrava o interior de quem de frente a ele se postava. A descrição da rica moldura prateada representando folhas e parreira, com dois crescentes em cada lado, mostrava-se agora real frente a seus olhos. Era uma obra bela e imponente, alta o bastante para qualquer habitante do lugar ver-se por inteiro.

No entanto, era temido. Sua existência era sombria, e sua função obscura. Afinal, que interior ele refletia? Mostrava a essência da alma, quando desprovida de corpo? Mostrava desejos e sonhos, sem qualquer inibição? Mostrava aquilo que nós julgamos ser, dentro de nossas mentes? Ou aquilo que os outros veem e não nós, perdidos em nosso egoísmo?

Phiyo adiantou-se lentamente, temeroso como qualquer um ficaria, de encarar-se sem qualquer proteção. A Luz da janela banhava totalmente o ambiente, tornando fácil observar-se dali. Os últimos passos ele deu de olhos fechados, e virou-se para o espelho.

***

Por que estava ali? Tentava convencer-se de que era muito mais do que mera curiosidade. De que o que visse poderia ajudar a determinar seu caminho, sua razão para estar ali, seu motivo e seu amanhã. Por que ainda não abrira os olhos? Faltava coragem para se ver? Não; a inquietude de não ter um caminho, de não ser ninguém já o incomodava demais, e ver qualquer coisa ali poderia ser melhor. Seu interior poderia ser assim tão terrível? Alguém já o teria condenado.

Então seu medo tornou-se claro, a razão para ter cerrado os olhos com tamanha força. E esse entendimento o fez abri-los.

Seu medo fora correspondido. Mas sua angústia permaneceu sem resposta. Nada havia no espelho.

***

Phiyo poderia ter ficado longamente observando a janela invadida pela luz que tocava todo o cômodo, e cuja vista era tão somente outra bela varanda daquele complexo prédio, do outro lado. Poderia observar o tapete macio, um tanto empoeirado, mas ainda em sua cor original, estendendo-se por todo o chão. Os muitos véus, finos e delicados, como teias de aranha se pendurariam dos galhos e se agitariam facilmente com qualquer brisa. Tudo isso estava no espelho, e podia ser visto.

Porque sua imagem não estava ali para atrapalhar sua visão.

***

Seu medo era justamente aquele. Medo de encarar todo o vazio de sentido e significado que experimentava, e tentava disfarçar com passeios, estudos, visitas. O vazio que sorria, acenava e encantava os outros com belas palavras. O vazio que se escondia por trás de um belo rutilar de olhos turquesa. O vazio que se adornava de mantos confortáveis, esvoaçantes, que tinha o cabelo trançado e adornado, que tinha os ferimentos cuidados por mãos amorosas.

O vazio estava ali no espelho, e nenhum olhar poderia ser mais pesado e duro que aquela falta de olhos que Phiyo observava. Seus joelhos cederam sob seu peso e seu corpo caiu em toda sua altura, amortecido pelo tapete (era por isso que era tão macio? Para salvaguardar os desiludidos?). Uma forte dor percorreu-lhe o torso, do peito às costas em seu lado direito, seguido por um calor que escorria lentamente. Um de seus ferimentos reabrira e tingia o manto com um tom violento. Mas nem isso o espelho ousara refletir.

Então aquele par de olhos transbordou. E um observador muito atento teria notado que a lágrima, e somente ela, teve uma gêmea do outro lado daquela superfície gelada e cruel do espelho.

***

Os dias continuaram passando, insensíveis a dor de qualquer ser; o ousado sol percorria seu trajeto de sempre, seguido pela escuridão costumeira, abusada. E sob eles a vida continuou no grande complexo.

Algumas línguas indiscretas logo espalharam que o ferimento se devia com certeza a alguma proeza ou loucura que o Kyrion tentara fazer durante sua recuperação, e este nada fez para corrigir o engano. Ouviu pacientemente o curandeiro orientar-lhe repouso, e fingiu não notar a surpresa deste ao ver que o corte mostrava-se mais fundo do que era quando o Kyrion chegou àquelas terras, vindo do céu. Para este cuidadoso e preocupado companheiro, somente, Kyrion sentiu vontade de justificar-se, mas não sabia como fazê-lo. Disse somente que talvez tivesse se esforçado demais, e se machucara quando menos esperava. Não era uma mentira.

Ninguém soube de sua visita ao espelho, nem das visitas que se seguiram. O ferimento manteve-se um mistério, mas fora cicatrizando aos poucos. As demais visitas nem de longe produziram um efeito tão devastador quanto a primeira, mas todas tinham a mesma resposta. O mesmo vazio.

***

Os mais sensíveis puderam notar a mudança discreta. Diz-se os mais sensíveis, porque não havia “mais próximos”. Uma pequena perda de peso, no corpo já magro por baixo das roupas longas. O olhar mais perdido, passeando por janelas e varandas, com o brilho contido. As saudações mais atrasadas, quando a mente devaneava, e o peso do silêncio era aterrador. De todos, talvez a pequena Aciru, que se autoproclamara dama de companhia do Kyrion, fosse a mais sensível às mudanças. Seu “amo” nunca fora seco ou ingrato a ela, mas ela sentia a tristeza dele arrepiando os pelos de sua nuca.

Ela sentia enorme vontade de compreendê-lo, ajudá-lo. Seu coração jovem (séculos de sabedoria em sua espécie não completavam ainda sequer metade do que chamamos “juventude”) se permitira cativar pelo ser que lhe inspirara fascínio quando chegou, e talvez tenha sido esse nobre sentimento de devoção que a impelira a segui-lo, enquanto este se encaminhava, talvez pela centésima vez, ao quarto do espelho.

Seguira-o por muitos corredores, disfarçara perfeitamente sua intenção a todos os demais que encontrara no caminho – ela era conhecida e até mesmo querida, estando há mais tempo ali que a maioria, e notória por sua conversa adorável. Ninguém suspeitava dela. Suspeita não era sequer um sentimento que fincasse raízes muito fundas na mente daqueles habitantes, abençoados em seu eterno ir e vir e mais puros de coração do que quase todos que nos cercam em outros planos... mas estamos divagando, voltemos à pequena e sua empreitada.

Seu plano parecia bem sucedido, e ela vira o Kyrion parar em meio a um corredor vazio, frente a uma porta, como se tomado pela dúvida de entrar ou não. Após alguns segundos, depois de algo que parecera a Aciru um longo suspiro, a mão cinzenta girou a maçaneta e entrou, sem qualquer ruído.

A pequena, aflita, aguardou alguns segundos antes de se adiantar, sem fazer qualquer som. Nem um morcego ouviria seus passos, dotados da leveza de seu povo, ou talvez até mais que todos eles. A fechadura não lhe rendeu nenhuma visão do interior, nem a parte de baixo da porta, muito rente ao chão de pedras para que pudesse espiar. Não se ouvia som de passos no interior do quarto.

Dúvida e compaixão se digladiaram no coração da jovem, impelindo-a ora a deixa-lo em paz com seus sentimentos, ora a entrar e fazer o que pudesse por ele, mesmo que nada significasse. Não temia a ira do Kyrion. Ela já o conhecia bem o bastante para saber que ele não se enfureceria, nem a agrediria de nenhuma forma. Temia somente decepcioná-lo.

Abençoada pela coragem breve e pela pouca precaução dos jovens, que ainda não se viciaram na cisma que faz dos mais adultos seres tão parados e pensantes, tomou sua decisão e abriu a porta.

***

Aciru conhecia aquele lugar, e não se espantou com a beleza que se abria diante de seus olhos. Via-se em um grande e belo jardim de inverno.

Era um espaço amplo, cercado por quatro paredes e com um altíssimo teto de vidro. Grandes canteiros formavam três círculos concêntricos, cortados por quatro pequenos caminhos que davam no centro, todos em pedra rústica. Neles cresciam pequenas árvores em diferentes e ricos tons de verde, e entre elas, arbustos e flores rasteiras ocupavam primorosamente os espaços, oferecendo belas e minúsculas flores de todas as cores, e carregando o ar de um perfume fresco.

Talvez tão impressionante quanto o jardim, fosse o imenso vitral circular na parede oposta à porta. Era tão grande que, fosse preso ao chão, muitos casais poderiam bailar sobre ele confortavelmente. Era composto de infinitos fragmentos coloridos, num mosaico belíssimo e abstrato, de tal forma construído que um tom passava ao outro delicadamente, os olhos facilmente se perdendo em suas camadas e curvas, sem saber onde isto acabava e aquilo começava. A luz perpassava-o e todo o ar tingia-se daqueles tons, e mesmo as paredes pareciam agora salpicadas pelas mesmas flores coloridas que se exibiam no jardim.

“Achei que nem mesmo você conheceria esse jardim, mesmo habitando este lugar há tantos e tantos anos, Aciru. Mas suponho que esteja enganado. Desde que o descobri, é um de meus pontos favoritos.”

***

A voz do Kyrion trouxe de volta a pequena, mesmerizada que ficava pelo encanto do lugar mesmo após tanto tempo. Em um lugar tão colorido, sua palidez era ainda mais gritante, e o Kyrion nem precisaria de bons olhos para percebê-la. “Pelo jeito, acertei em minhas duas suposições. A primeira, que você conhecia esse jardim. A segunda, que você estava me seguindo. Pude confirmar por sua cara de saudosismo ao ver lugar e bem... por sua cara de espanto, agora.”

A pequena ficou tão vermelha que parecia outra flor, nascida no lugar errado. Sua fluência nas palavras falhava-lhe talvez pela primeira vez na vida. “Eu... ah... perdão, Kyrion... não queria, não devia... bisbilhotar. Eu sinto muito.”

A expressão do Kyrion era branda, enquanto estava sentado em um banco de pedra à direita da porta de entrada, entre o primeiro e o segundo canteiros. “Sim, você sente.” Ele olhou para a pequena, insegura, e sorriu, acenando-lhe para que se aproximasse. “Você sente” ele repetiu “E é por isso que está aqui. Porque sentiu. E quer saber o que sentiu em mim, e a razão.”

Aciru despregou-se do chão no momento em que vira o Kyrion sorrir, e no mesmo instante precipitou-se em sua direção. No último segundo, sua educação a freou, para que não se atirasse nos braços do mendeva, o que achava desrespeitoso. “Por que está triste, Kyrion? O que houve nas últimas semanas?” suas mãos pegavam nos mantos do outro e apoiavam em seus joelhos. “Peço desculpas por segui-lo. Mas eu posso ajudar? Posso fazer alguma coisa? Ainda está muito machucado?”

O outro abanou de leve a cabeça, talvez para que algumas perguntas se soltassem de suas orelhas. “Acalme-se, estou bem. Não precisa pedir perdão, eu é que devo lhe agradecer.” Ao olhar intrigado da pequena, o Kyrion prosseguiu “Você não foi a única a notar. Mas foi a única que cometeu o absurdo de vir me perguntar pessoalmente. E isso fez toda a diferença.” Ele pegou a pequena mão de dedos delicados, com pequenas garras, e pôs entre as suas, tão maiores. “Obrigado por vir até mim. Por acabar com essa distância. Por se preocupar.”

Kyrion saiu do banco e ajoelhou-se no chão, ficando quase na mesma altura que a pequenina Aciru, e a abraçou. Suas mangas longas envolveram a pequena, retesada sob os braços do outro, surpresa como estava. Mas quando deu por si, lançou os curtos braços ao redor do pescoço do outro com um gritinho, trançando os dedos sob os cabelos compridos. Desta vez foram as grandes mãos do Kyrion que acariciaram os cabelos daquela jovem cabeça, presos em várias tranças elaboradas e coquetes, enquanto falava:

“Não se preocupe comigo, de verdade. Somente não consigo me encontrar aqui. Sou muito bem tratado por você e por todos, talvez mais do que eu mereça. Mas continuar assim me faz muito só. Não quero ser diferente de vocês, não fiz nada para ser temido ou reverenciado.” Kyrion sentia-se surpreso por conseguir falar tão abertamente àquela que para ele era somente uma criança, ainda que muito madura para sua fase.

“Por favor, ajude-me a contar a todos que serei um de vocês até que alguma missão, qualquer que seja, me force a partir. E ajude-me a acreditar que tenho algo a cumprir, e que não sou somente um vazio.”

A pequena aconchegou-se ao pescoço do outro, quase coberta por seus cabelos e roçando a bochecha nos pelos cinzentos “Claro que sim Kyrion, qualquer um que pise em Kadamon é um de nós, e você o é desde que pousou em uma das pontes. Entendi o que quer dizer, e vou ajudá-lo. Os mendevas foram considerados sagrados por muito tempo, e muitos nem sequer acreditavam que vocês existiam em nosso plano... mas então você veio, e provou até aos velhos mais rabugentos que estão aí!” a pequena soltou um pequeno riso. “Não sei qual missão o trouxe, mas vou ajuda-lo quando ela chegar, pode ter certeza.”.

Havia muita convicção na resposta da pequena para que Kyrion duvidasse. “Sei disso, Aciru. Até lá, cuide para que eu não fique feio, e me faça companhia.”

A pequena afastou-se do abraço com um sorriso que começava nos olhos, e brilhava tanto que fazia o vitral um pouco menos iluminado “Claro que sim! E tomarei conta para que não emagreça mais, sim senhor!”

O Kyrion riu,abaixando a cabeça como uma criança que reconhecesse o sentido das palavras da mãe. “Está certo. Vou resolver uma coisa agora, mas quero encontrar você novamente até o jantar. E antes de ir...” ele se aproximou da pequena outra vez. “Quero contar-lhe um segredo.”

A orelha da pequena agitou-se um pouco de expectativa, aguardando. “Os mendevas têm muitos nomes. Nomes para serem chamados em outros planos, nomes usados por seus exércitos quando comandam como generais. Nomes nos festivais, quando fazem sua arte. Nomes que usam entre si e ninguém mais jamais ouviu.” A voz do Kyrion sussurrava as palavras lentamente, como um contador de histórias. “E há os nomes que dão para os amigos. Como um presente. E ao ouvir esse nome, o mendeva sabe que está seguro, e próximo a alguém que ama. Dou o meu a você, Aciru. Meu nome é Phiyo.”

Phiyo levantou-se e encarou os olhos enormes da pequena, banhados em deleite. Ela arremeteu-se mais uma vez abraçando suas pernas, dizendo algo como “muitomuitomuitoobrigada-eununcavouesquecer-oucontarpraalguém!”      numa velocidade enlouquecida antes de se soltar e dizer com mais calma. “Vou ficar só mais um pouco, com o jardim! Sempre me admiro que atrás de uma porta tão chata existe algo tão lindo!” ela quase bailava “Então nos veremos em breve, Phiyo!” ela saboreou o nome enquanto o sussurrava, para ninguém ouvir.

Sorrindo e acenando, Phiyo foi até a porta e saiu do belo jardim. Seguiu pelo corredor, subiu um lance de escadas, fez duas curvas à direita e seguiu mais uma vez, sem ver ninguém no caminho. Viu-se frente a uma porta bem semelhante à do jardim, somente um pouco menor e com a maçaneta menos gasta, talvez por ser bem pouco usada.

Este era de fato o quarto do espelho, o destino que ele poupara Aciru de conhecer.


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