Kadamon, A Travessia escrita por Kyrion


Capítulo 1
Canto 1


Notas iniciais do capítulo

Essa estória é aquela que carrego há mais tempo no peito, e por isso talvez a mais sincera, a mais confusa e mais inacabada delas. Espero que algo precioso possa nascer do contato entre estas palavras e quem vier a lê-las.
O feedback será bem vindo. ^.-.^



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Pés exaustos tocaram o solo. Aquele repouso era real? Talvez finalmente tivesse a chance de descansar, de abandonar-se, de fechar os olhos.

Olhos. Olhos espantados brilhando de volta. Gestos corridos. Lábios rápidos demais, formando palavras demais. Ao mesmo tempo. Seus joelhos se renderam e seu corpo tombava de encontro ao chão, mas mãos fortes, anônimas, o seguraram. E seu calor bastou para que sua alma se entregasse ao esquecimento

***

“Quem é ele? Veio do céu. É um dos alados. Mas as asas sumiram...” “É aquele a quem chamam de Kryon (‘Lampejo’).”

“É Kyrion.”

“O Kyrion? O sussurro dos anjos?” “É o que dizem.”

“Não era ele o autor da canção de todos os sonhos?” “Dizem isso também.”

“Ele parece tão comum...”

“Achou mesmo? Achei que parecia surreal. Mesmo para os padrões desse lugar.” “Algo com as asas grandes, a cauda longa, não é? E aquele cabelo comprido.” “É. E por estar tão ferido.”

“Mas ele não era invencível?”

“Não disseram que era lindo, como se fosse obra dos próprios deuses?” “E que ele é capaz de trazer à realidade aquilo que só existe nas ilusões?” “É. Dizem que tudo isso é verdade.”

Mas nenhuma dessas verdades foi dita pelo próprio Kyrion.

***

Não sabia como chegara ali, mas sentia-se bem. Sentia-se em casa. À sua frente uma enorme construção branca, no cume de um morro, circundada por várias construções menores ao seu redor, como pequenas casas e varandas igualmente brancas. Parecia um palácio, ou castelo. Talvez um templo. Pacífico e vagamente familiar.

Havia uma brisa suave e constante, que trazia uma voz distante e tensa. Parecia pedir alguma coisa. Não devia ser importante.

Seus pés descalços subiram a rua sinuosa de pedras que levava até o topo, através do lugar deserto. Mas estava incrivelmente limpo, como se todos tivessem acabado de sair. Ou talvez outros estivessem prestes a chegar. Ele não sabia. Mas sua cauda ondulava delicadamente em todo o seu comprimento, transparecendo sua satisfação.

Mas havia aquela voz ecoante, e um pouco triste. Mas que coisa! Não o deixava em paz! Logo agora que parecia ter voltado, depois de tanto tempo...

Mais alguns passos e alcançou a porta da grande construção, enorme e pesada, de madeira. Havia também pequenas portas nas laterais, mais simples. Talvez entrar pela maior não fosse apropriado, as menores eram para ele. Mas estavam trancadas.

“Volta, Senhor. Há coisas que deves cumprir aqui.” O vento formava palavras. E ele suspirou. “Irei”.

Abriu as asas e deixou-se levar pelo vento. Aquele lugar esperaria por ele, e continuaria a guardar seu caminho. O que quer que fosse. Voltava agora para o mundo real, partindo, uma vez mais, dos planos dos sonhos.

***

 

Mãos erguiam seu corpo, depositavam-no em lugar macio. Eram ágeis, caridosas. Algumas tinham boa vontade e carne forte; outras tinham experiência e ossos nodosos. Nenhuma garra lhe cortou, mas por várias vezes sentiu dor. Dor antiga e dor recente. Aquelas mãos não queriam feri-lo, estavam todas preocupadas, como se cuidassem de uma carga preciosa e temessem por seu futuro.

E mesmo com toda dor, e com a dor dessas mãos, houve o leve conforto de seu carinho. E um novo sono veio, vazio, embalado no toque dessas mãos.

***

“Olá, Senhor Kyrion. Por favor, não se mova muito, ou pode sofrer com algum ferimento.”

“Não é preciso me chamar assim.” Saiu a voz rouca, um pouco entrecortada por um repuxão de dor e cansaço.

“Mas é o modo correto de chamá-lo, Senhor.” E sequer sabiam seu verdadeiro nome. Ele estava cansado demais para discutir.

“Acho que nunca estive aqui antes.”

“De fato, Kyrion. Honra-nos com sua visita.” A voz do curandeiro oscilou por um momento. “Se me for permitido, posso saber onde se feriu dessa forma?”

“Não me recordo. Mas foi uma longa viagem.” Era uma resposta sincera. “Compreendo. Talvez se recorde melhor mais tarde, depois de repousar. A maioria

dos ferimentos foi superficial, e não houve necessidade de pontos. Em breve estará bem, Kyrion. Se precisar de qualquer coisa, basta chamar-me.” E saiu. Parecia honesto e solícito.

E estar sozinho mais uma vez o fez pensar. Pensar sobre o que tinha que fazer ali, e não se lembrava. Do nome, memória distante, daquilo que teria de ser, ou daquilo que fora por último. Mendeva. Sua espécie. Ou talvez sua condição. Sua história escorria-lhe por entre os dedos, como se pertencesse a um passado remoto. Mas sua história começava de fato no passado remoto.

O que fazia ele no presente?

***

Roupas largas, como mantos, de farfalhar suave e aspecto confortável, envolviam o corpo em recuperação. Dedos trabalhavam virando páginas, ocasionalmente; olhos ágeis percorriam muitas frases e uma mente aguçada as armazenava, analisava, organizava. Um verdadeiro balé. Outras mãos, mais novas e gorduchas, entretinham-se trançando os cabelos do outro, e seus lábios pouco se moviam, para não atrapalhar a concentração do leitor, mas vez ou outra relaxavam em seu trabalho, e deixavam fugir um risinho.

A capa foi fechada, e o suspiro ouvido poderia ter vindo igualmente do livro, e de seu leitor.

“Quê procuras, Kyrion? Talvez possa ajudá-lo.” A voz enunciou doce, bem jovem, bem menina.

“Várias coisas. Um pouco sobre a origem deste povo. As lendas sobre o meu.” “São realmente longas histórias... Belas histórias.”

O outro se ajeitou na cadeira, mas moveu pouco a cabeça, para que a pequena continuasse bailando os dedos no seu cabelo, como parecia gostar tanto. “Acredita mesmo que os mendevas vieram do céu, Aciru?

 

“De onde mais viriam, Kyrion? Mesmo que nem todos sejam alados, eles não são deste mundo.” E a pequena mordeu o lábio, temendo por sua pouca habilidade no controle de sua língua, e por seu hábito de falar demais. “Quis dizer ‘vocês’... perdão, Kyrion. Esqueço que estou na presença de um mendeva, e que até mesmo tenho a chance de tocá-lo!”

O Kyrion sorriu, e mesmo estando de costas para a jovem, sentiu que ela relaxara um pouco com sua tranquilidade. “Não se ocupe disso. Somos somente outro povo. E mesmo que tenhamos vindo do ‘céu’, não é o Paraíso. A Shambhalla que vocês chamam. É apenas outro lugar. E chegamos aqui porque nossos mundos se tocam.” Ao ouvir essas palavras, a pequena guardou silêncio. As palavras contrastavam com suas crenças. Haveria momento para conciliar as duas visões...

***

O lugar em que estava era como um enorme complexo de prédios irregulares, que se misturavam e mesclavam-se em diferentes ângulos e andares, quase sempre com cômodos de imensos espaços. O teto, em geral, erguia-se muito, muito acima; as janelas eram igualmente altas. Salões sucediam salões, corredores sucediam corredores. Varandas de enormes arcos sustentavam-se a uma altura quase absurda, nas partes mais altas. Mas todo aquele lugar era de certa forma habitado ou frequentado por alguém.

Era, portanto, uma oportunidade rara a que teve o Kyrion certa manhã, ainda muito cedo para as atividades do dia, quando se viu só em uma dessas citadas varandas altíssimas.

***

O sol subia lentamente, e o céu parecia ter escolhido com cuidado todos os tons de cinza, azul e rosa que ficam bonitos juntos naquela aurora. O ar estava fresco e o mundo era sombreado; a estrela precisava estar alta para encher de luz todos aqueles altos prédios. Aquele par de olhos turquesa se deliciou o máximo que pôde, pousando em tudo o que conseguia alcançar, e era muito o que aquele olhar alcançava. Uma vez satisfeito, repousou numa mancha azul particularmente confortável do céu, e ficou. O tempo passou longamente.

“Haverá o momento de nos encontrarmos uma vez mais. É uma das razões para estar aqui.” Disse uma voz suave próxima ao distraído Kyrion. Mas era uma voz tão familiar e num tom tão pacífico, que não chegou a sobressaltá-lo. Aliás, não parecia real. Talvez ele tivesse ingressado no plano dos sonhos por acidente, e por isso a manhã parecia estender-se tanto.

Voltando o rosto e aprumando o corpo no banco onde estava encostado ao peitoril da varanda, este respondeu. “É possível. Talvez provável. Não o vejo desde que partiu por sua vez dos jardins e dos Bosques Profundos, quando retornei do deserto e das Torres.” Aquilo parecia ter-se passado num passado longínquo, e talvez assim tenha sido. Ele achava que tinha lido uma menção a essa história na biblioteca. Mais uma lenda na mitologia dos mendevas.

“Acredito que sim. Tivemos missões diferentes a cumprir.” Respondeu o outro, simplesmente.

O Kyrion deu voz a algo que o inquietava demais: “Por que você sempre se lembra do que acontece? Lembra as missões que cumpriu, as histórias que viveu, os corpos que habitou, e provavelmente mesmo dos nomes que teve, todos eles. Não lembro do que vim fazer aqui, do que sou ou deveria ser.” Ele tinha plena consciência

 

do quanto suas palavras soavam imaturas e frustradas tão logo saíam de sua boca, e detestava esse fato, mas não conseguia contê-las. “Quase nada me vem à memória, só a sensação de que algo é necessário, precisa ser cumprido. E lembro-me de você. E outros como você.”

“Outros como nós.” Disse o outro, e riu, algo que o Kyrion sentiu mais do que viu, naquela luz difusa da manhã, e na incógnita dos sonhos. O outro deu um passo à frente, e ele pôde ver mais claramente. Um ser entre o dourado e o branco, ainda mais alto do que ele. Seu rosto longo ainda se abria em um sorriso. “Se de tudo soubéssemos, não cumpriríamos com o que devemos. E não desenvolveríamos nossa confiança com os demais. Conhecimento demais nos deixa muito solitários.”

O Kyrion respondeu com um baixo muxoxo. Sabia que ele estava certo, e talvez soubesse disso antes mesmo de perguntar. “Além do mais” o dourado prosseguiu “estamos ainda em planos diferentes. Estou mais perto de nossas origens, e por isso tenho a memória um pouco mais preservada. Perderei muita coisa quando estiver mais denso novamente.”

***

“Você mudou de cor.” Disse o dourado, após um longo período de silêncio. “Você foi branco, e agora é cinza e prateado. E seus olhos também, são turquesa.”

“Isso é bom ou mau?”

O outro deu de ombros. “Não sei onde isso se encaixa na sua vida atual. Talvez não seja nada” e depois acrescentou. “Mas são bonitos assim, Phiyo.”

O cinza sentiu-se alegre por ter sido chamado de outra forma, um nome que quase se esquecera de possuir. Todos ali o chamavam Kyrion por sua posição.

Quis agradecer ao outro por ter devolvido uma parte tão significativa dele mesmo, mas não conseguiu. Quis perguntar-lhe o nome também, para chamá-lo quando precisasse, ou mesmo quando estivesse só, pelo simples fato de ser alguém diferente, mas seus lábios estavam como que selados. E o outro se fora.

A manhã já era dourada e azul quando Phiyo abriu os olhos e viu-se na varanda, enquanto tímidos observadores paravam alguns segundos, em total silêncio.


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