Confia em mim? escrita por Gabi Mohannak


Capítulo 4
Capítulo 3


Notas iniciais do capítulo

Capítulo narrado por Eliza.
Ano: 2018



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Eliza

 

Agora que Julia abaixou o volume ensurdecedor do rádio bluetooth e eu finalmente consigo ouvir meus próprios pensamentos, repasso mentalmente quem são os amigos dela que conhecerei hoje: Vanessa e seu irmão Douglas; Renata e seu irmão Luan; Ana e Flávio – e esses dois últimos não são irmãos de ninguém.

Dessa lista toda, eu conheci apenas o segundo par de irmãos: Renata e Luan. Mesmo que Julia não tivesse me dito antes de eles chegarem, eu não teria dificuldades em descobrir que os dois são irmãos, porque seus traços são quase iguais embora ele seja pelo menos dez centímetros mais alto que ela.

O garoto seguiu minha prima até o lado de fora da casa e foi responsável pela diminuição do volume – e por esse motivo, já gosto dele. A menina, não fica atrás já que, para não me deixar sozinha continua na cozinha me fazendo companhia e, por isso, ganha minha simpatia. Ela usa uma franja que quase lhe cobre as sobrancelhas o restante de seus cabelos negros lisíssimos foram cortados bem retinhos abaixo dos ombros. Os cabelos de seu irmão são do mesmo tom, mas ele os usa bem curtos, como se quase raspados na nuca e mais compridos e arrepiados em cima.

Luan é galante, Renata é simpática e eles têm grandes pares de olhos castanho-claros cercados de cílios grossos e quando sorriem exibem grandes dentes brancos perfeitamente alinhados. Ambos são bonitos – se é isso que você quer saber – e Renata me pergunta amenidades sobre minha vida em São Paulo.

Minutos mais tarde ouvimos a porta da frente se abrindo e se fechando.

— Ô de casa – uma voz feminina grita da sala.

— Na cozinha! – Renata grita de volta, e então, diz para mim – Vanessa chegou.

Uma menina de pele morena reluzente entra na cozinha e abre um enorme sorriso. As compridas mechas de seu cabelo são divididas em tranças finas que mesclam os fios negros naturais com cor-de-rosa vibrante. Ela é pequena como eu e bem magrinha, mas caminha com a segurança de um gigante.

Quando um garoto entra atrás dela, eu presumo que ele seja Douglas. Eles se parecem embora ele seja uns bons dez centímetros mais alto e use o cabelo em um black power baixo. Quando passa pela porta, ele está mexendo no celular com semblante concentrado, mas ao ouvir Vanessa e Renata dando gritinhos baixos enquanto se abraçam e ele levanta a cabeça e revira os olhos.

Contenho o sorriso que seu gesto me causou quando ele se vira para mim com as sobrancelhas levemente franzidas.

— Eu não te conheço – afirma e se aproxima com o braço estendido para me cumprimentar. 

— Eu sou a Liz – digo e retribuo o gesto.

— Ah, é, a prima da Julia né?

— Eu mesma – confirmo.

— Legal. Vais ficar aqui por quanto tempo?

— Um ano mais ou menos – ele ainda está segurando minha mão. Estamos movendo os braços para cima e para baixo enquanto falamos.

— Caraca – ele diz e seus olhos se arregalam um pouco.

Ele não diz seu nome, mas finalmente solta minha mão. Sorrio para ele.

— Não sejas indelicado – a garota intervém. Se dirigindo a mim ela diz – Seja bem-vinda. Eu sou Vanessa e o mal-educado é meu irmão Douglas.

— Prazer – eu digo olhando para ela e depois para ele.

— Tu já está aqui faz uns dias né? – Renata pergunta.

— Pouco mais de duas semanas – eu assinto.

— Legal! Estás gostando? – Vanessa é quem fala.

— Muito – eu sorrio para as duas.

— Aqui é demais! Mas e a Julia, heim? – Pergunta percebendo que a anfitriã não está conosco.

— Lá fora com o Luan – Renata faz um maneio de cabeça na direção da porta.

— Tô vazando então, pessoal – Douglas diz caminhando em direção ao quintal.

— Também vou para dar um beijinho nela – Vanessa diz e depois pergunta para mim – E tu, Liz, não vens?

— Estou cuidando do arroz – aponto para a panela, mas acho que todos sabemos que nada vai acontecer por pelo menos dez minutos.

— Até mais tarde então - dando de ombros, ela vai atrás do irmão.

Renata olha para a porta e eu acho que está pensando se deve ou ir não atrás dos amigos. Depois de um suspiro ela se volta para mim.

— Eu já volto – e então corre porta a fora e eu fico sozinha na cozinha.

Me sinto aliviada. Até agora tudo bem. Nenhum constrangimento tão grande.

Quando chego em uma nova cidade, eu nunca sei o que esperar, mas dessa vez, sinto que vai dar tudo certo e que talvez nem precise me esforçar tanto. Até agora Renata, Luan, Vanessa e Douglas me pareceram pessoas simpáticas, e embora eu saiba que ainda há mais gente por vir, não estou tão nervosa e ansiosa quanto estava quando começamos os preparativos hoje de manhã.

Os minutos se passam e alguém volta a erguer o volume do lado de fora da casa, mas ainda está bem mais baixo do que antes. Desligo o fogo sob o arroz e começo a abrir os armários em busca de um pano de prato.

— Tu não és a Julia – a voz masculina me sobressalta.

Me viro para encarar o garoto que é louro e tem olhos castanhos. Seus cabelos são curtos mas de algum modo, sobre cada ombro pende um longo dread que sai de trás da cabeça. Suponho que seja o garoto de quem Julia gosta menos, mas como era mesmo o nome dele?

— É, eu não sou ela – digo o óbvio. – Meu nome é Eliza.

Seria mais fácil se todos tivessem chegado juntos porque assim já teríamos acabado com essa parte, mas a sessão de cumprimentos continua e eu me vejo mais uma vez com o braço esticado em direção a alguém. O garoto encara minha mão como se decidisse se deve segura-la ou não. Depois do que parece um longo momento ele dá de ombros – no que eu imagino ser uma expressão de “ah, porque não?” – e me cumprimenta com um movimento bem rápido antes de soltar.

— Legal – ele diz, os olhos semicerrados, desconfiados. – E tu és quem mesmo, Eliza?

— Quem é você? – Retruco sem pensar, mas me arrependo logo em seguida porque ele provavelmente, frequenta essa casa e a intrusa aqui sou eu.

Com as mãos espalmadas acima dos ombros, em sinal de rendição, ele dá um passo para trás. E antes que eu possa dizer qualquer coisa, Luan e Renata voltam a cozinha. Por algum motivo meu corpo é tomado de alívio, estou realmente feliz que eles estejam aqui para me livrar dessa situação.

— Fala, Flávio – Luan diz enquanto eles se cumprimentam, primeiro com um aperto de mãos bastante sonoro, depois com um encontro de ombros.

Flávio sussurra alguma coisa no ouvido de Luan que cai na gargalhada. Os dois deixam a cozinha e Renata revira os olhos. Acho que ela também não é a maior fã do garoto, mas não posso dizer com certeza. Ela me ajuda a achar o guardanapo de pano que eu queria e nós vamos para o quintal levando conosco a panela de arroz.

Os três meninos do grupo estão ao redor da churrasqueira que já está coberta de pedaços de carne e gomos de linguiça. Julia e Vanessa estão tirando cadeiras de dentro do quartinho e eu coloco o arroz em cima de uma das mesas, do lado de fora da casa. Observo à volta enquanto Renata me pergunta se eu estou animada para conhecer a escola e se eu já me adaptei à casa nova.

Uma garota loura passa pela porta da cozinha que dá acesso ao quintal e seus cabelos voam para o rosto, fazendo com que ela feche os olhos. Assumo que é Ana, a última das amigas que Julia esperava para o churrasco dessa tarde. Ela é baixa como assim como eu e Vanessa, e seus cabelos ondulados lhe caem abaixo do queixo, levemente despontados, cheios de estilo.

Quando ela consegue se livrar dos fios revoltos, seus olhos passam de mim para Julia freneticamente, mas é na minha direção que ela caminha.

— Tu deves ser a Eliza – ela diz e me abraça timidamente. – Eu sou a Ana.

— Muito prazer – eu digo sorrindo para ela.

— Tu és igualzinha à sua prima! – Agora ela segura uma mecha do meu cabelo e brinca com ela entre os dedos. – Vocês têm até o mesmo cabelo.

— Tu achas que a gente é parecida? – Julia interrompe se aproximando.

— Tu não? – Vanessa retruca.

— Eu não acho muito não – minha prima franze o cenho me examinando como se nós não tivéssemos passado as duas últimas semanas juntas.

Julia e eu temos cabelos castanhos lisos-ondulados até a metade das costas, é verdade. O mesmo tom dos cabelos das nossas mães. Acho até que somos um pouco parecidas fisicamente, e claro, ambas temos 16 anos, mas somos muito diferentes em todo o resto.

Ela nasceu e morou a vida inteira na mesma cidade, na mesma casa, com seu pai e sua mãe que tem empregos que não os mandam para longe e isso faz com que ela pertença a esse lugar e as praias e a essa casa. Eu morei com meus pais até meus sete anos e depois disso, quando ele faleceu, minha mãe e eu começamos a viajar pelo Brasil, o que faz com que eu seja de São Paulo e de todo lugar.

Minha mãe me preparou para assumir certas responsabilidades com que Julia ainda não parece nem sonhar. Quer exemplos? Eu sei cozinhar e lavar roupa, é da minha natureza me oferecer para ajudar em casa e eu sempre mantenho tudo o mais organizado possível, como se eu quisesse deixar tudo pronto caso eu precise me mudar às pressas mais uma vez.

Julia, ao contrário, vive em meio ao caos e se encontra nele como se suas coisas estivessem catalogadas. Os sapatos moram no chão e as roupas sobre os móveis. No verão você pode esperar ver botas de cano alto ao lado da cama, tanto quanto esperaria ver um par de chinelos e ela não sabe fazer nem ovo frito. Nenhuma de nós é melhor ou pior por isso, mas é impossível ignorar as diferenças entre as duas.

Ela adora um holofote quando, na maior parte do tempo, tudo o que eu quero é passar despercebida. Eu sou mais calada do que minha prima e, no conforto do meu quarto, ouço músicas de que gosto com meus fones de ouvido. Julia é falante e ecoa sua música por caixas de som a todo o vapor, como se pretendesse animar um bairro inteiro. São as nossas diferenças que fazem com que seja bom viver junto, porque enquanto ela entra na minha vida deixando pequenas marcas da sua bagunça, eu entro na dela e discretamente organizo o posso alcançar.

Seus amigos não podem ver isso ainda e talvez nunca vejam.

— Estás de brincadeira? – Flávio levanta a voz, me trazendo de volta para a conversa. – Entrei na casa preparado para te dar um susto, – ele aponta para Julia – mas quem tomou o susto fui eu.

— Tu és é um idiota, não é parâmetro – a voz de Douglas soa brincalhona e os outros riem. – Não tem nada a ver.

— Vocês viram a cor do olho dela? – Luan diz olhando fixamente para mim.

— Incrível – Renata concorda com a cabeça.

— O da Julia é castanho – diz Ana, que larga minha madeixa e se vira para confirmar o que acaba de dizer.

Acompanho seu movimento e me sinto desconfortável ao perceber que todos os convidados estão chegando mais perto de nós para nos examinar mais cautelosamente. Os olhos deles passam de Julia para mim e depois de volta para ela. Preciso pensar numa maneira de mudar o foco.

— Julia é mais alta – digo e minha voz soa como uma acusação. Alarmada.

— Isso é verdade – ela diz com um sorriso, como se tivesse ganhado um ponto.

— Pouca coisa – Vanessa diz.

Ana, Renata, Luan, Vanessa, Douglas e Flávio analisam minuciosamente.

— E bem mais bronzeada – continuo na esperança de que eles parem de se voltar para mim.

— Ah, sem essa! Vocês são iguaizinhas – Flávio está irredutível. – Eu poderia muito bem falar com uma, pensando que é a outra.

— Isso é porque tu és maconheiro e confuso, não porque elas são parecidas – Douglas diz e os outros riem.

— O Doug tá certo – Luan diz – é impossível confundir as duas.

Há alguma coisa na sua voz e na maneira como ele está me olhando, mas eu não tenho tempo de perceber o quê. A discussão continua acalorada e quando olho para o Julia percebo que ela está tão desconfortável quanto eu.

Quem diria que, a última das amigas dela, chegaria causando tanto alvoroço?

*

Julia e seus amigos passaram o início da tarde na piscina e, embora eu esteja com meu traje de banho por baixo da roupa, ainda estou tímida demais para ficar de biquíni diante de seis desconhecidos e então, hoje preferi usar a velha carta “estou menstruada” e passar a tarde inteira de shorts e camiseta.

Quando Renata e Vanessa insistiram que eu me juntasse a elas, tirei meus tênis e me sentei na borda da piscina, deixando meus pés mergulhados na água, mas pouco tempo depois começou a chuviscar e todos tivemos que sair da água. Agora estamos todos embaixo do rancho, sentados no chão ou em cadeiras, comendo há pelo menos uma hora e, ou meu arroz estava bom e por isso acabou rápido, ou eu posso ter subestimado a fome de oito adolescentes e fiz pouco.

Todos, exceto Ana e eu, estão um pouco embriagados e risonhos já que os garotos trouxeram bebidas alcóolicas coloridas embaladas em garrafas pet pequenas. Eu não sou uma das pessoas corajosas o bastante para beber a gororoba e, francamente, eu sou medrosa demais para encarar possíveis consequências de beber sendo menor de idade.  

Eles compartilham comigo suas lembranças das últimas vezes em que saíram juntos. Pelo que eu entendi, eles sempre se reúnem na praia para uma espécie de luau que rende muitas gargalhadas, porque geralmente a maioria deles está chapado e, os que não estão, podem contar as histórias com mais propriedade.

A maioria de nós está incomodado com a música há tempo demais e Julia finalmente se dá por vencida e concorda em tirar da música sertaneja. Eu comemoro secretamente porque já estava tendo uma overdose enquanto ela se levanta para selecionar outra playlist, mas todos exceto Ana se manifestam contra suas escolhas musicais então ela elege Luan parear seu celular à caixa de som.

Ele se levanta e pega seu celular em cima da mesa. Pelo tanto que ele bebeu, imaginei que estaria ao menos cambaleante, mas a segurança de seus passos e movimentos me surpreende. Seu sorriso e sua risada rouca parecem contagiar todos os outros amigos – e eu também – quando ele diz em tom brincalhão que nós finalmente começaremos a nos divertir.

Luan está usando uma bermuda estampada com listras irregulares de azul e verde e como os outros meninos, dispensa a camiseta, deixando o tórax exposto. Observo seu corpo por um breve momento. Ele é magro, mas não é esquelético como Flávio. Seus ombros são largos, de modo que, quando está em pé, é impossível que passe despercebido. Volto meus olhos para seu rosto e noto que ele está olhando para mim, então desvio apressadamente meus olhos para o vão entre minhas pernas cruzadas.

Tenho certeza de que estou corando, mas quando a música invade as caixas, eu abstraio do constrangimento que causei a mim mesma e sorrio para o chão. Não sei o que esperava que Luan colocasse, mas não achei que seria o mesmo tipo de música que eu ouço, afinal, ele e Julia andam juntos, e eu sei que ela não gosta do estilo.

— Ai, sério, gente? – Julia choraminga. – “Deixe-me ir”?

— É, Luan, essa música já deu o que tinha que dar – Ana concorda com minha prima.

Ninguém parece ouvir as duas ou se importar. Finalmente a grande maioria está satisfeita com a playlist e quase em coro, nós cantamos o primeiro verso até que uma das meninas grita.

— Aêee! Mais uma das nossas – quando levanto a cabeça para ver quem foi. Renata está com o dedo apontado para mim, com um largo sorriso no rosto.

— Isso aí, garota! – Vanessa também sorri para mim e mostra a língua para Ana que retribui o gesto.

Luan vem até mim com uma garrafa de plástico cheia até a metade de bebida azul. Acho que ele tem a intenção de brindar, então levanto meu copo de refrigerante e encontramos nossas mãos, dizendo “tim-tim”. Por uma fração de segundos nossos dedos roçam e ele pisca para mim antes de cantar à plenos pulmões.

— “Então diz que não me quer por perto, mas diz olhando nos meus olhos”[1]— mas é interrompido por uma garrafa vazia que o atinge no peito. – Quem foi que jogou isso?

— Vai sentar, Luan – Julia diz, e de repente, não parece mais embriagada. – Tu és um bêbado insuportável.

 

[1]  Música “Deixe-me ir” – 1Kilo (2017)


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