Shadowstorm escrita por Capitain


Capítulo 1
Chuva




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A chuva não parava de cair, encharcando completamente o corpo do soldado. Não que ele se importasse. Naquele momento, enquanto ele corria o mais rápido que podia, movido pelo puro desespero, poucas coisas importavam. O estalo alto da bala passando próximo ao seu corpo o fez mover-se ainda mais depressa. Alguns segundos mais tarde, ele ouviu o ruído da arma que havia disparado aquela bala, a centenas de metros de distância, confundindo-se com o som dos raios que assolavam o morro.

Ele olhou ao redor, procurando abrigo. Havia apenas mato, um caminho sinuoso coberto de lama e, à sua frente, as primeiras casas da favela nova esperança, dependuradas na beira do morro. Ainda correndo, o soldado desceu o barranco, cobrindo-se totalmente de lama, e cortando os braços e pernas nas pedras, pedaços de entulho e lixo que compunham parte da lama da encosta. Assim que chegou ao final, ele ouviu a bala novamente, seguida do disparo, segundos depois. Levantou-se e continuou correndo.

Entre os grupos de casebres empilhados uns sobre os outros, havia um beco estreito, e, no final deste, uma escadaria. Enquanto se aproximava, procurava freneticamente um lugar onde pudesse se esconder. Eles mentiram, Ele pensava, e eu vou morrer. Corria à toda velocidade, os pingos grossos acertando seu rosto como pedras, e os casebres se aproximavam, devagar demais. A quanto tempo ele estava em campo aberto? Será que estava se movendo rápido o suficiente para evitar o próximo tiro? Quanto tempo havia se passado desde o último disparo?  As casas estavam logo ali. Dez metros. Cinco. Dois.

Ele se jogou ao chão, protegendo-se atrás de uma parede, enquanto recuperava o fôlego. Estivera correndo pelas últimas duas horas, e tremia com o frio. As pernas já começavam a doer, com o ácido lático. Sangrava de vários cortes e respirava de maneira entrecortada. Lentamente, ele começou a se mover, mantendo-se escondido pela parede de tijolos. Mais um estalo, e uma parte da parede estourou, perto dele, cobrindo-o de poeira de tijolo e pedaços de argamassa. Havia um furo na parede, do tamanho de um punho fechado.

Ele voltou a se mover, descendo o beco, o mais perto das paredes que conseguiu. Mais ou menos na metade do caminho até a escadaria, ele parou entre dois casebres. Não parecia ter ninguém vivendo ali, mas ele tinha certeza de que pelo menos uma ou duas famílias moravam nas redondezas, pois ele as tinha visto, na porta das casas, olhando para os carros de combate enquanto eles passavam, semanas antes. Ele, sentado na traseira de um caminhão do exército, segurando seu rifle e lado a lado com seus companheiros de batalhão, apenas uma semana antes. Como as coisas tinham chegado a esse ponto?

 Eu preciso sair daqui, o soldado pensou. Logo, a milícia mandaria gente a pé. Cinco? Dez? demais para derrubar com nada além de padras. Os casebres ao redor ofereciam um pouco de proteção por hora, mas se eles descessem o morro... tenho que contar para alguém. Algum jornal, alguém importante. Eu preciso contar pra todo mundo. Ele checou o bolso, pra ver se o pendrive ainda estava lá. Estava. A prova da mentira deles. A prova de que ele não tinha ficado louco. De que tudo fora mentira o tempo todo. A verdade...

Um ruído começou, lentamente, a se sobressair acima da chuva. Começou como uma espécie de vibração grave e distante, mas logo ganhou corpo e se aproximou. Um ruído reconhecível, simples, aterrorizante. Hélices. Eles mandaram um quadcóptero. O ruído grave estava bem perto agora, talvez sobre o morro, talvez sobre a favela. As janelas dos casebres começaram a vibrar, e o vento provocado pelas hélices varava o topo do morro, tornando a chuva quase horizontal. Eu tenho que sair daqui agora. Eles ainda não o tinham visto, mas era questão de tempo. O soldado levantou, e recomeçou a correr, agora em direção à escadaria. se conseguisse descer, estaria bem no meio da favela. Estaria salvo. As suas pernas protestaram com dor, enquanto ele chapinhava na corrente de água que descia o beco, se aproximando da escada a cada momento. Ela estava tão perto agora. Ele iria conseguir.

As hélices chegaram mais perto. E a escadaria também. Quase lá. O ruído agora era quase ensurdecedor, e o deslocamento de ar vido dos rotores transformava a chuva em uma neblina branca. Eles me viram. A escada estava a oito metros. Cinco. Três. A adrenalina nas veias não era suficiente para poupá-lo da dor que ele sentiu quando a bala o atingiu, como uma marreta chocando-se contra suas costas. Ele continuou correndo, com um buraco no tronco, logo acima do rim direito. Quase lá. O segundo tiro atravesso seu peito, explodindo suas costelas, rasgando seu pulmão, abrindo um buraco enorme no seu uniforme.

Eu vou morrer. Ele pensou, ao cair. A escada estava a apenas um metro de distância agora. A água da chuva corria ao seu redor, sobre ele, dentro dele. Ele não conseguia respirar. Não conseguia pensar, o mundo se fora. Só havia a dor. Ele podia sentir os contornos do pendrive, ainda na sua mão. Não via nada. Não sentia nenhum cheiro.  Ouvia apenas o som excruciante da maldita hélice, e sentia apenas uma dor pulsante.

Tentou respirar mais uma vez, e seu pulmão gorgolejou. Uma sensação de calor começou a se espalhar por seu corpo, e aterrorizado, ele percebeu que estava deitado em uma poça de seu próprio sangue.

Tudo estava se apagando, sumindo, se embotando, até que nada sobrou. Nada além do calor e do irresistível convite a fechar os olhos. No conforto dos seus últimos segundos, antes do calor partir, ele abriu a mão. Não viu a correnteza levar o pendrive para longe. Não viu a aeronave pousar, ou as pessoas assistindo silenciosamente por trás das cortinas, com as luzes apagadas. Não viu a milícia cercar o beco, nem sentiu quando chutaram seu cadáver.

Ele estava morto.

E a chuva em breve levaria o sangue embora.


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