Cassis (Série Alestia I) escrita por Jane Viesseli


Capítulo 9
Contendo-se




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/783798/chapter/9

O Sol já tinha nascido quando o não-vivo avistou os portões da Cidadela Principal. Havia cavalgado metade do percurso e caminhado o restante dele a fim de poupar o cavalo já exausto, não conseguindo cumprir o trajeto da volta antes do despertar dos alestianos.

Dois soldados guardavam a entrada, abordando todos os novos visitantes e conferindo cargas e decretos reais, antes de finalmente liberarem a passagem. Mesmo distante, Cassis podia sentir o cheiro deles, o odor cítrico de suas peles misturado com o suor fixado nas armaduras, o cheiro de um ser vivo, que parecia bastante convidativo para um vampiro faminto como ele.

O imortal estava ciente da baixa quantidade de sangue em seu organismo, a secura na garganta parecia arranhá-lo e um constante alerta apitava em sua cabeça, gritando: “Cuidado! Você está mal alimentado, ele pode estar à espreita, esperando para sair”.

Ele precisava se alimentar o quanto antes e, com esta convicção em mente, o príncipe subiu em seu cavalo, exigindo dele um último esforço para levá-lo ao castelo. O cavalo dispara em direção aos portões da Cidadela, ignorando as ordens de parada dos dois guardas e se embrenhando casas adentro em direção à segurança do castelo.

Alguns alestianos pareciam estranhamente surpresos por vê-lo, como se estivesse desaparecido há décadas, enquanto outros corriam assustados diante da velocidade do cavalo e saltavam para fora do caminho para não serem atropelados. Cassis podia sentir o cheiro deles, de todos eles, humanos com a sedução correndo nas veias. Sua garganta sedenta ardia por um gole daquele vitae tão tentador, mas, por sorte, o garanhão não sentia o mesmo e continuou seu poderoso galope até os portões do castelo, que rapidamente foram abertos para ele, o príncipe.

O vampiro para o cavalo bruscamente, largando-o no pátio principal à mercê dos soldados, enquanto se dirigia rapidamente para a sala de banquetes. A grande mesa de madeira já estava vazia devido ao fim do período de desjejum, não havia nada ali, nem mesmo uma taça de vitae e Cassis não pôde evitar socar o móvel em frustração.

Uma jovem criada adentra o salão às pressas, atraída pelo barulho de seu golpe e pensando se tratar de alguma visita inesperada do rei, parando instantaneamente ao ver o monstro que a espreitava.

― Traga-me vitae – ordena, amparando o corpo na mesa como se estivesse sofrendo. – Agora! – grita, fazendo a criada se retirar com um pulo.

Já era possível senti-lo, era possível detectar a força e o instinto assassino dele. Cassis ouvia sua razão gritar por um pouco de vitae, enquanto sua selvageria ficava cada vez mais forte, pulsando em seu peito como um monstro querendo sair para brincar.

Sara surge logo atrás, estava retornando de um passeio pelo jardim quando ouviu seu berro irritado e o seguiu até ali. Ela estava possessa por se tornar piada entre as más-línguas de Alestia e vê-lo tão de repente pareceu aumentar a chama de sua fúria, cegando-a completamente para o fato dele não parecer bem naquele momento, de que algo realmente perigoso estava acontecendo.

― Onde esteve esse tempo todo? Exijo explicações – começa ela com tom autoritário, cruzando os braços de maneira nada elegante.

Houve silêncio!

Cassis vira-se lentamente, olhando fundo nos olhos de Sara como se tentasse hipnotizá-la, seduzi-la, fazendo sua aproximação cessar rapidamente. Seus olhos não pareciam monótonos como antes, nem tampouco carregavam a mesma cor, mas transbordavam um desejo doentio em sua tonalidade rósea, como se algo dentro dele tivesse sido ligado de repente.

Era difícil segurar, difícil resistir! O vampiro pôde sentir o seu cheiro antes mesmo que cruzasse o batente da porta, sentindo também o poder da sede aumentar com a simples ideia de provar de seu sangue. E agora, olhando para ela, ele estava tentado a se aproximar da pele branca e macia de seu pescoço, para olhar mais de perto o perfeito emaranhado de veias que se espalhavam por baixo da fina camada de epiderme.

O príncipe havia passado tempo demais sem alimento e as palavras de Justino lhe trouxeram lembranças perigosas demais para manter-se na memória. Ele se aproxima devagar, diminuindo o espaço entre eles com os olhos fixos na pele branca, enquanto as palavras “sangue” e “doce” borbulhavam em sua mente, e, com as costas dos dedos, o vampiro percorre toda a lateral do rosto de Sara, que sentia pela primeira vez a frieza de seu corpo.

A humana sente os dedos gelados descerem à curvatura de seu pescoço, fazendo sua respiração travar, contudo, antes que pudesse pronunciar qualquer arquejo, o rosto do próprio vampiro já se aproximava do local, respirando profundamente sua pele e aumentando seu desejo de sangue. Ela podia sentir o corpo se retesando e a respiração soltar-se de forma ofegante, o medo a paralisando por completo e a impedindo de fugir. O imortal toca seu pescoço com os lábios frios, roçando a pele da princesa numa dança sensual, enquanto já salientava seus poderosos caninos.

― Aqui está seu vitae, vossa alteza – anuncia a criada, adentrando o salão com pressa e soltando um grito, ao presenciar o vampiro sobre o pescoço de sua alteza.

Assim como o cheiro de Sara pareceu acionar um gatilho dentro de si, o grito da empregada o desligou, e no momento em que foi emitido, Cassis empurrou o corpo da humana para longe, atravessando o salão com uma velocidade sobre-humana e tomando o jarro de vitae das mãos da criada antes que fosse lançado ao chão.

Num momento ele estava à frente de Sara e, no momento seguinte, diante da serviçal, entornando sofregamente o vitae animal goela abaixo e fazendo a jovem correr apavorada.

― Monstro! Fique onde está! – ordenava mentalmente.

Ele a queria, ele desejava provar do sangue de Sara e, como se não bastasse isso, ele era forte… E quem era ele? A besta sanguinária que todo vampiro carregava dentro de si, o selvagem predador que habitava dentro de Cassis, que agora o tentava a provar o líquido rubro e quente de sua mulher.

Cassis tinha muito a perder: o reino, seu novo status, o pouco de respeito que havia lutado para conseguir dentro do conselho vampiro e entre os generais. E ainda tinha Thorkus, que o transformara, o ensinara e que agora confiava nele para àquela tarefa. Lutar contra o monstro era difícil, uma queda de braço contra si mesmo, e, para sua infelicidade, a batalha se tornava mais complicada quando estava tão mal alimentado como naquele momento.

A princesa permanecia lá, parada e em transe, não sabendo ao certo o que havia acontecido ali ou que poderia ter ocorrido caso ele não se afastasse. Tudo estava confuso, ela não conhecia a espécie vampira o suficiente para entender àquelas reações e o porquê dele não a ter mordido, quando estava nítido que era isso o que pretendia.

Saindo de seu torpor, Sara pisca algumas vezes para clarear a visão embaçada e atordoada, apenas para abri-los com atenção e ver Cassis absorver ansiosamente seu vitae animal direto do jarro, tolerando que parte do líquido rubro escorresse pelo canto de seus lábios e manchasse sua armadura de couro.

Margarida aparece de repente, vinda pela mesma porta que a criada para averiguar o motivo de seu alvoroço e dando de cara com o vampiro ensanguentado, que já baixava o utensílio vazio e apertava os olhos com força para conter a turbulência dentro de si. Aquela era certamente a cena mais assombrosa que a copeira-chefe já havia visto.

Somente quando se sentiu realmente farto e fora de perigo, foi que o não-vivo abriu os olhos, que pareciam mais brilhantes diante da alimentação tão necessária. Entretanto, ao se dar conta da mulher a sua frente e da presença de Sara atrás de si, o brilho de seus orbes subitamente desapareceu atrás de uma nuvem de melancolia.

Os olhos de Margarida, apesar de surpresos, pareceram se encher de uma importante compreensão, como se uma grande questão de sua vida acabasse de ter sido entendida, apesar de Cassis não fazer ideia do que se tratava. Com um sorriso cálido a senhora retira seu velho e encardido avental, oferecendo-o ao vampiro em troca do jarro vazio e retirando-se logo em seguida, como se aquilo não lhe causasse horror.

Apesar de, a princípio, estar enfurecida com seu desaparecimento, Sara não pode deixar de ser modelada por toda aquela situação. Primeiro com o avanço do vampiro, que pareceu quebrar-lhe toda a fúria e encher-lhe de pavor, e, depois, com a reação de Margarida, que tentou aceitá-lo em sua selvageria e compreender seu comportamento a partir das poucas informações que tinha de sua raça, mostrando-lhe que ela ainda estava despreparada para governar e precisava amadurecer para se tornar uma grande rainha.

― Me perdoe – pede ele após um longo silêncio. – Não irá se repetir.

― O que foi isso… Que acabou de acontecer? – pergunta pausadamente, aproximando-se devagar. – Quero dizer, não parecia ser você.

― Esqueça! Não é nada que deva temer – menti.

A feridade estava marcada em seu rosto e em suas roupas, mesmo tentando limpá-los com o velho pano em suas mãos. Cassis não ousava olhar para a princesa que estava cada vez mais próxima, o casamento poderia não ser real, mas ele tinha um resquício de esperança de manter ao menos uma amizade entre eles, uma esperança alimentada principalmente pela promessa que fizera ao rei. Entretanto, não ajudaria nada se ele a assustasse.

Sara surge ao seu lado subitamente, tocando seu pulso direito para retirá-lo de seus devaneios, ao mesmo tempo em que analisava seus orbes castanhos. A coloração era a mesma de quando o conheceu e, naquele momento, ela teve certeza de que algo muito além das forças do vampiro o estava influenciando a pouco, resultando no tom róseo de seus olhos. A curiosidade então cintilou em seu próprio olhar.

― Conte-me – recomeça Sara, observando-o baixar as mãos com o pano lentamente –, como funciona sua alimentação? Quero dizer, por que você bebe tanto, em tão pouco tempo? – questiona, encarando o avental sangrento por alguns segundos, antes de voltar sua atenção para o rosto masculino.

― Entenda, Sara, não existe outro alimento para um vampiro a não ser o sangue, alimentar-se dele é algo tão natural para mim, quanto respirar é para você. O vitae animal não é tão bom ou saboroso quanto o de um humano, mas é possível que um vampiro sobreviva somente com ele, aprendendo a tolerar seu gosto amargo depois de certo tempo… Sua pergunta tem, portanto, uma resposta bastante simples: preciso de vitae e gosto de me manter sempre saciado, para, quando houver necessidade, aplicar minhas reservas em combate.

― Quando se refere à saciedade, de quanto exatamente está falando?

― De um animal grande, como um carneiro adulto, por dia – confessa com naturalidade, fazendo a humana arregalar os olhos –, mas costumo dividir a quantidade em pequenas taças, você sequer dará conta.

― Certo! – gagueja. – Obrigada pela… Consideração.

Um estranho silêncio se instala entre eles, da parte de Cassis por achar que aquele constrangedor momento de perguntas e respostas ainda não tinha terminado, e, da parte de Sara, pela estranha consideração que de repente ele mostrava ter por ela, ao tentar amenizar a ensanguentada realidade de sua alimentação.

― Pergunte – incentiva o vampiro, sabendo que havia mais perguntas de onde àquelas vieram.

― O que acontece quando suas… Reservas, terminam? – lança depois de um longo suspiro, pausando levemente para se lembrar da forma com que Cassis se referiu ao vitae em seu corpo. – Você morre?

― Se morresse, certamente não lhe contaria – zomba, abrindo um sorriso torto –, falar sobre o que nos mata não é muito aconselhável no meu mundo, mas como a resposta é negativa, acho que posso lhe contar este segredo. Quando minhas reservas estão no fim, a intensidade de minha sede aumenta e se não for possível adquirir vitae pelo meio racional, acabo entrando em frenesi.

― Frenesi? O que é isso? – pergunta, sentindo a conversa bem mais leve depois da tentativa de piada do príncipe. Ela sequer sabia que vampiros podiam ter senso de humor.

― É o estado em que o vampiro se descontrola e necessita de vitae a todo custo. Ele libera seu lado animal, seu besta interior, e seu lado racional simplesmente desaparece, sendo aprisionado em algum lugar de sua cabeça até que o predador esteja saciado.

― Tudo isso é horrível, como consegue lidar com essa coisa?

― Quando se é um vampiro, você aprende algumas técnicas.

― E a sua é manter sua reserva sempre cheia! – conclui a princesa, tentando ligar a informação que recebera à mudança de cor de sua íris, fazendo o vampiro arregalar os olhos levemente com sua constatação certeira, de um assunto que ele certamente não gostaria de entrar.

O casal troca um breve olhar, como se um estivesse tentando adivinhar o que se passava na mente do outro. O príncipe não ousava confirmar a informação e tampouco a humana esperava que o fizesse, já que não havia perguntado e sim afirmado tal situação.

Sara ergue a mão direita em direção ao rosto de Cassis, tocando sua barba rala com ponta dos dedos e limpando um resquício de sangue contido ali, sentindo sua pele quente novamente, como no dia em que se casaram. Ela encara a pequena mancha vermelha nos dedos, retendo a todo custo uma careta enojada ao lembrar-se nitidamente de seu sabor enferrujado.

Assim como Margarida, ela sorri, fazendo a testa do vampiro franzir em confusão. Não era àquela a reação que ele esperava da humana e tudo se tornou ainda mais equívoco quando, sem dizer nada, Sara acariciou seu rosto com a manga comprida do vestido, limpando o restante da vermelhidão ali contida como se aquilo não a desagradasse.

Aceitação, ou, pelo menos, o princípio dela, resumiria bem aquela cena. Contudo, Cassis não pode se sentir menos embaraçado com aquela demonstração feminina de preocupação e estima. Ao se dar conta de seu acanhamento e da forma com que sua atitude poderia ser interpretada, Sara imediatamente recua.

― Não pense que o tratarei melhor por causa disso, ainda não gosto de você. – Cruza os braços na defensiva.

― Entendo. – Sorri satisfeito, não pretendendo pressioná-la com qualquer tipo de comentário. A singela anuência de Sara já lhe era o suficiente para o momento. – Sinto muito pelo vestido, creio que isso não sairá com tanta facilidade depois de seco. – comenta, mudando de assunto.

― Tudo bem, eu quis fazer isso, no fim das contas – confessa, sentindo o rosto queimar ao imaginar que sua afirmação também pudesse indicar uma afeição muito maior do que realmente sentia.

― É claro, estamos jogando conforme as suas regras, não é? – comenta despreocupado, não dando a devida atenção para os rubores de Sara e fazendo-a concordar com a cabeça.

― Ouça, tenho mais algumas perguntas a lhe fazer. Quando estiver livre de seus afazeres, pode conceder-me uma conferência?

― Certamente – concorda o vampiro, preparando-se para se retirar. – Direi tudo o que desejar saber e ficarei grato se também me falar um pouco sobre você… Amanhã de manhã? – propõe ele, fazendo uma leve reverência enquanto aguardava uma resposta.

― Cl-Claro – gagueja, não conseguindo imaginar o porquê teria de falar sobre si mesma, afinal, o que uma simples humana teria de tão importante para falar, a ponto de atiçar o interesse de um imortal?

― Iremos a Cidadela, logo após o desjejum, esteja pronta – anuncia, retirando-se logo em seguida para evitar questionamentos desnecessários, depositando o pano sujo sobre a mesa no meio do caminho.

Sara fica para trás, sentindo as bochechas corarem novamente ao perceber que sua conferência seria feita durante um passeio, o que mais lhe parecia uma espécie de cortejo do que de fato uma reunião.

Há muito tempo a humana não visitava a Cidadela Principal. Quando criança, ela adorava fugir dos soldados para se aventurar nas vielas da Cidadela, mas, após a morte de sua mãe, nove anos antes, parte de sua energia aventureira desapareceu e Sara nunca mais deixou o castelo. Pensar nisso deixava-a com uma sensação estranha, uma mistura de saudade e expectativa. Será que as coisas continuavam iguais? Será que os alestianos ainda se lembravam de seu rosto?

A mistura de sentimentos de repente se transforma em ansiedade, como se a princesa estivesse saindo de um casulo depois de um longo tempo de hibernação e vendo uma oportunidade única em sua vida. E a sensação era tão boa, que Sara não pôde deixar de sorrir diante da proposta de deixar o castelo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado :D



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Cassis (Série Alestia I)" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.