Cassis (Série Alestia I) escrita por Jane Viesseli


Capítulo 5
A Decisão de Sara




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O céu permaneceu nublado nos dias que se seguiram à morte de Richard, como se o mundo oferecesse os seus pêsames pelo acontecimento tão cruel. Cartas e mais cartas chegaram a Alestia, seladas com os mais variados brasões dos reinos do sul e do norte, apenas para comprovar que a notícia havia se espalhado com a velocidade de um tornado.

Aquele poderia ser considerado o momento mais doloroso para o rei desde a morte de sua mulher. Arthur sabia que o fim de todo ser humano era a morte, era voltar ao pó, e isso nunca o amedrontou, mas a verdade era que ele nunca imaginou enterrar um de seus filhos, nunca esperou que eles partissem primeiro.

O funeral ocorreu de forma solene, ocupando todo o período da manhã numa cerimônia de cremação íntima, diante do túmulo da família real. Somente alguns poucos empregados do castelo puderam comparecer, por servirem ao príncipe com frequência e deterem uma afeição respeitosa por ele, entretanto, pouquíssimos eram os que realmente tinham algo a dizer aos familiares.

Cassis também esteve presente no evento matinal, mantendo-se firme ao lado do rei como se já fizesse parte de sua família, apesar de não ter avistado a imagem de sua noiva durante todo o período.

Apesar dos raios ultravioletas serem letais para os de sua espécie, ele possuía uma habilidade bastante difícil de se aprender, uma disciplina que o permitia estar sob a luz solar sem sofrer grandes danos. Thorkus estava com ele, é claro, pois a especialidade do filho teria que ser aprendida de algum lugar e ninguém melhor do que o seu mentor para ensiná-lo. A cobertura de nuvens no céu também colaborou com suas presenças no funeral, aumentando em, pelo menos, uma hora, o tempo de suas permanências ali, o suficiente para acompanhar a cerimônia até àquele momento, o final.

Nada parecia consolar Arthur naquele momento, o brilho havia fugido de sua face e, diante de tão grande pesar, o rei mal conseguia caminhar. Nem mesmo a mão de Sir Thorkus, que tocou seu ombro em condolências, pôde lhe proporcionar algum apoio ou conforto. Muito pelo contrário, seu aperto frio teve um efeito oposto, fazendo todo o corpo de sua majestade estremecer e sentir como se a aura de morte ainda pairasse por sobre sua família, os espreitando e escolhendo sua próxima vítima.

O enterro, onde as cinzas de Richard seriam armazenadas no mausoléu real juntamente à sua coroa, estava prestes a acontecer quando Sara finalmente tomou coragem para se apresentar. Com o caminhar lento ela se aproxima do pequeno grupo, cansada e derrotada demais para conversar com qualquer um deles, ou dar as devidas atenções aos membros do clã vampiro que ali se faziam presentes.

Seus cabelos presos numa trança clássica e sem vida deixavam à mostra as marcas de suas noites mal dormidas, e seus olhos melancólicos foram rápidos ao focar a pequena urna de ouro, com as cinzas de seu irmão. Seu coração se aperta e o ar foge de seus pulmões de repente, forçando-a a segurar os soluços que novamente tentavam fugir de sua garganta.

Richard estava morto e ela não sabia o que fazer com aquela aliança ou o que pensar sobre aquelas criaturas tão obscuras. Ela nunca mais veria o seu belo rosto, não haveriam mais provocações, delações ou brigas pelas últimas uvas do café da manhã, e, o que mais feria o seu coração: ela nunca havia lhe dito um simples “eu te amo”, mesmo sabendo que o amava, e já não tinha mais tempo de corrigir isso. Agora era tarde, muito tarde para qualquer arrependimento.

O sepulcro real foi aberto, liberando a passagem dos soldados para uma galeria subterrânea que continha os restos e objetos de todos os antigos governantes de Alestia. A urna de Richard é levada para o seu interior e logo depois foi possível ouvir as batidas dos martelos contra as estacas, enquanto os cavaleiros entalhavam o nome do menino no local que lhe serviria de abrigo.

O corpo de Sara estremece a cada martelada, como se fossem elas a matá-lo e não a criatura horrenda que invadiu o castelo no meio de sua festa. Seus olhos se erguem da abertura da galeria ao pensar em Zino, focando de forma certeira o rosto inexpressivo de Cassis, que a observava atentamente do outro lado.

― Por que tenho de fazer isso? – sussurra ele para o mentor ao seu lado. – Há tantos não-vivos mais capacitados do que eu, por que me escolheste para tal missão? Estou inerte há tanto tempo que me sinto enferrujado, nem sequer fui capaz de salvar a vida do menino, o herdeiro legítimo do trono.

A lembrança do deboche de Zino lhe corroía a mente desde àquela noite, pois realmente havia hesitado, e os milésimos de segundos em que vacilou, custaram a vida do príncipe. Não que Cassis se sentisse culpado por seu falecimento, mas, para os não-vivos, hesitar poderia custar-lhe a própria existência e por isso era algo impensável, imperdoável e inadmissível.

― És o mais qualificado – sussurra Thorkus em resposta –, não exatamente por força ou habilidades de luta, mas por sua experiência em lidar com os mortais, principalmente as damas. Faça isso pelo clã, Cassis, e pela milady também.

― Sabes muito bem que não quero me envolver com humanos, ainda mais as donzelas. Está querendo demais ao pedir-me para contrair matrimônio com Lady Sara!

Thorkus entrelaça os dedos a frente do corpo de forma relaxada e observa a princesa em questão, que ainda os encarava fixa e indiscretamente. Sua dor era quase palpável, nem sequer parecendo àquela menina irritante que conhecera durante o baile de noivado e de que tanto ouvia falar.

― Pense na seguinte questão – recomeça ele, chamando a atenção do vampiro mais novo –, se um ancião aceitasse o compromisso em seu lugar, achas mesmo que seria gentil ou cortês com uma senhorita como ela? – pergunta retoricamente. – Há muito eles perderam sua sensibilidade, ou achas que depois de tantos anos e tantas mortes, aqueles velhos imortais continuam compassivos às emoções humanas? Achas que seu mentor é sensível aos sentimentos humanos?

Cassis analisa criteriosamente as palavras do pai. Ele sabia que o mentor jamais se voluntariaria para aquela aliança, apesar de considerá-la importante, e tinha ciência que ele não se importava tanto assim com os humanos, somente com a estabilidade e a sobrevivência do clã.

Sua atenção se volta para a humana, enquanto sua mente divagava, imaginando o que seria dela se um ancião assumisse o seu lugar, agindo com brutalidade para consumar o enlace matrimonial, machucando-a com palavras ou até fisicamente quando seu gênio difícil os irritasse, tornando sua frágil vida mortal um verdadeiro terror. Mas, em contrapartida a tais pensamentos, vinha o fato dele próprio já ter cometido tantos erros, como poderia ele ser melhor que seus anciãos?

Sara fecha os olhos, finalmente quebrando o contato visual, suspirando pesadamente antes de mover os lábios numa prece muda. O vampiro podia ler seus lábios com facilidade, percebendo, inclusive, que Sara pedia aos céus para que tudo voltasse a ser como antes. Logo depois ela se retira, retornando silenciosamente para sua solitária clausura.

― Ela me acusa, não é? – pergunta Cassis.

― Existem muitas habilidades peculiares espalhadas dentre os clãs de todo o mundo, mas ler mentes certamente não é a minha – diz Thorkus com voz descontraída, mas soltando um longo suspiro logo em seguida. – Porém, creio que a senhorita em questão não o culpe. Talvez esteja apenas sentindo a dor de sua perda e refletindo sobre o que deve fazer. Dê tempo a ela!

― Assim o farei… E, caso tenha aparentado o contrário, não penso em desistir de meu compromisso, pelo clã e pela milady.

O ancião repuxa os lábios num sorriso torto e discreto, pois sabia desde o princípio que o filho não desistiria do combinado depois de suas palavras. Afinal, poderia não ter o poder de ler mentes, mas era dono de uma ótima habilidade de persuasão. Thorkus toca seu ombro em aprovação e logo se retira, sendo seguido, minutos depois, por Cassis, cuja mente permanecia na missão de fazer àquela aliança dar certo.

Longe dali estava Sara, que havia retornado para o interior da construção com a mesma rapidez com que saíra. Aquelas paredes tão familiares lhe traziam imenso conforto, como se nenhum inimigo pudesse feri-la enquanto estivesse dentre elas. Sua mente, porém, logo interrompe sua doce ilusão, lembrando-a que nenhum lugar era realmente seguro quando um vampiro decidia atacar.

Com a verdade em mente, sua caminhada logo se torna desolada e sem rumo. Os corredores pareciam ficar mais escuros e frios a cada passo, e quando uma gigantesca porta de madeira surge em seu caminho, a princesa precisou de alguns segundos para se dar conta de onde estava, antes de enfim empurrá-la e abrir passagem.

Aquela era a segunda sala mais importante de todo o castelo, na opinião do rei, a chamada Sala das Lembranças, que não continha mais do que duas ou três poltronas e candelabros no solo, já que seu valor estava pendurado nas paredes.

Sara percorre a extremidade do cômodo a partir da porta, observando atentamente os retratos de todos aqueles que já realizaram um grande feito pelo rei, tornando-se dignos de terem seus rostos lembrados para sempre. Na parede seguinte, estavam as pinturas daqueles que pertenceram a realeza de Alestia, com cada membro da linhagem real sendo representado por, pelo menos, quatro retratos: infância, juventude, coroação ou casamento, e a velhice.

Contudo, quando os seus olhos alcançaram o único retrato de seu irmão, ela parou, sentindo o imenso pesar de nunca ver a continuação daquela pintura solitária. Os cabelos castanhos e bem-arrumados da pintura pareciam dar ainda mais vida aos olhos de Richard, que também eram castanhos e que tanto se igualavam aos de sua mãe.

― Como pôde ser tão imprudente? O que será do papai sem você? – Suspira, deixando o silêncio se estender por quase um minuto enquanto seus pensamentos voavam. – Eu que sempre precisei de você, não é? Você era pequeno demais quando mamãe morreu, não sentiu a perda dela como eu. Mesmo com suas brincadeiras irritantes e suas provocações, você nunca me deixava sozinha, e, apesar de tudo, isso me impulsionou a seguir em frente. Agora só me resta lamentar as palavras não ditas, os carinhos recusados e os sorrisos não aproveitados!

Outro silêncio se alastra sobre o ambiente, parecendo ainda mais gélido que o anterior devido ao peso de suas palavras, fazendo a sala parecer ainda mais mórbida do que realmente era. Sara havia mergulhado tão profundamente nas lembranças do irmão, que nem sequer notou o tempo passar e o rei se aproximar com passos lentos e silenciosos.

― O que farei agora? – sussurra em meio aos seus devaneios.

― Só você pode definir – diz o rei, chamando a atenção da filha para a realidade e fazendo-a notar sua presença –, não posso mais lhe obrigar a casar com ele, não tenho mais forças…

Sara analisa o rosto angustiado do pai, sentindo seu próprio semblante também se tornar sofrido. Em outros tempos, o Rei Arthur de Alestia foi intitulado de Inabalável, devido as diversas batalhas que enfrentou e saiu vitorioso, como se nada naquele mundo pudesse lhe colocar medo. Contudo, não era mais isso que Sara conseguia enxergar em seus olhos inchados, no corpo sem forças que buscava apoio no batente da porta, no rosto que parecia ter envelhecido muitos anos em apenas dois dias. O rei parecia como qualquer outro homem arrasado da face da terra: sem pompa, sem riqueza, sem imunidade e sem esperança.

A princesa retorna seu olhar para o retrato de Richard, deixando que uma nova onda de pensamentos lhe invadisse a mente. Sua testa se enruga levemente e os punhos delicados se fecham com determinação, enquanto seu cérebro remoía tais ideias e ideais. E quando ela tomou fôlego para falar, sua decisão já estava feita:

― Vou seguir em frente! Não quero mais nenhum pai chorando a morte de seu filho. – Vira-se para o rei, estufando o peito e erguendo o queixo levemente, tentando mostrar ao pai que poderia ser uma boa sucessora de seu trono, mesmo que a sociedade não confiasse nas habilidades de uma mulher. – Não quero nenhum rebelde em nossas terras, não quero os alestianos se escondendo por medo do anoitecer, não quero mais fingir que não sei de nada. Poupar-me da existência do perigo não irá fazê-lo desaparecer… Irei me casar com àquele que chamam de Cassis, o Sanguinário, para proteger o meu povo e mostrarei a todos que Lady Sara de Alestia não é uma nobre qualquer! – Termina, com uma pontada de raiva na voz, raiva de si mesma por sempre se manter alheia aos problemas de seu reino e por ser aquilo que todos esperavam que fosse: submissa e incapaz.

― Ele também é um vampiro, Sara.

― Um vampiro que deseja o mesmo que nós: paz. Se buscamos o mesmo objetivo e somos inimigos de um mesmo oponente, o tornarei meu aliado. Entretanto, lhe deixarei claro que se romper com os termos da aliança de convivência, não hesitarei em ordenar sua morte!

― Você não o conhece, não o ama.

― Muitas mulheres se casam sem amor, por que comigo haveria de ser diferente? – interrompe. – Não almejo amor, tenho objetivos maiores do que este: quero cuidar do meu reino, dando-lhe a paz e a segurança que merece. Se para conseguir subir ao trono eu preciso de um marido, então me casarei, e se realmente tiver de me casar com Cassis para atingir meu alvo, assim o farei.

― Esta é a minha princesa – diz o rei, tentando parecer orgulhoso, mas preocupado demais para realmente apoiar a decisão de Sara.— A coroa às vezes precisa se abster de suas próprias vontades pelo bem do povo.

Sua frase, apesar de verdadeira, não retratava o que seu coração desejava naquele momento. Sara era tudo o que lhe restava, sua única família, e o rei não tinha mais certeza se queria vê-la casada com um ser de espécie tão detestável e perigosa. Mas o que poderia fazer a respeito? Sara precisava estar casada para ser coroada ou a monarquia lhe retiraria o direito de sucessão, alegando que uma mulher não seria capaz de comandar um reino sozinha.

Richard era o filho homem, sendo assim, o verdadeiro herdeiro da coroa, era ele que vinha sendo preparado para ascender ao trono. Entretanto, com a sua morte, o direito à coroa agora pertencia a Sara, que possuía total direito de assumir ou não o posto de majestade. E, se a princesa estava disposta a se casar para que não houvesse mais empecilhos à sua coroação, não tinha nada que o rei pudesse fazer para impedi-la.


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