Cassis (Série Alestia I) escrita por Jane Viesseli


Capítulo 33
Subjugando-o




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Bem longe da Cidadela, rumando para o noroeste, o predador procurava outro lugar habitável para se divertir, matar e caçar. Alestia já não lhe parecia confiável, pois aquele era o povo “dela”, era a família “dela” e em respeito ao gesto “dela”, aquele terreno e todas as pessoas que moravam nele não lhe eram mais convidativas.

Não, o Sanguinário não fazia aquilo de caso pensado ou por amor, pois tudo o que pertencia a Cassis estava muito bem soterrado em seu interior. Aquela era uma reação natural guiada unicamente por seu instinto, que respeitava o ato que o ajudou a sobreviver.

O vampiro corria livremente por entre a campina, logo cruzando o grande rio e o margeando, pelos domínios de Aurora, até os limites da Terra Neutra, onde instintivamente acreditou ser o lugar ideal para brincar. Ele não se importava com limites entre reinos ou a presença de outros vampiros, pois, devido a sua veneração por vitae e seu fetiche por matar, o predador tornava-se letal para qualquer um que se levantasse contra ele.

Havia apenas um ser que o Sanguinário, em toda a sua animalidade e ferocidade, não queria encontrar, um único ser cuja imagem nunca pudera esquecer e cujo coração parado queimava de ódio. E, foi em uma rápida pausa em sua corrida pela Terra Neutra, numa tentativa falha de farejar o habitat humano mais próximo, que ele o encontrou: o mesmo ser que o subjugara à Cassis da última vez em que estivera livre.

― Fizeste de novo – diz Thorkus com sua voz impassível, mas o rosto demonstrando um resquício de tristeza e preocupação –, aceitaste vitae humano novamente. – Suspira.

O predador o encara, reconhecendo a fisionomia do ancião no mesmo instante e assumindo uma posição defensiva, enquanto mostrava os caninos em sinal de ameaça.

― Lembra-se de mim?

― O juiz! – responde com um rosnado, falando pela primeira vez naquela noite, numa pronúncia animalesca e assustadora.

― Então já sabes o que lhe aguarda, não é?

― Você vai morrer – alerta, subindo levemente o tom de voz, girando a cabeça como um alongamento e mudando o posicionamento de seu corpo para algo mais ofensivo.

― Apesar de seu título, não és tão bom quanto pensas, Sanguinário. – Houve outro rosnado. – Mesmo com o pior dos vitae, ainda posso vencê-lo. Lembre-se: tudo o que sabes, fui eu que lhe ensinei, contudo, não lhe ensinei tudo o que sei!

O vampiro o observa, arreganhando ainda mais os dentes e esperando o melhor momento para atacar. Thorkus sabia que a mente de vampiros em frenesi pouco compreendia de frases bem elaboradas, que eles apenas colocavam em palavras o que seus instintos queriam fazer, mas, ainda sim, o ancião continuou a se pronunciar:

― És perigoso demais para ficar solto, matando a bel prazer. Não admitirei que seja livre para colocar nossa aliança com os humanos em risco, muitos reinos no sul e no norte ainda não concordam com este elo, com esta nova definição de “harmonia”. Eles estão apenas aguardando que erremos, para colocarem suas espadas em nossos corações e o fogo em nossos corpos.

― Quero… Sangue – anuncia o selvagem, pausadamente, tentando intimidá-lo.

― Você quer, mas meu filho não, e em respeito à vontade dele, não o deixarei ficar livre esta noite – responde calmamente, para depois explodir a terra ao redor de seus pés, deixando enormes sulcos no lugar, devido a sua investida cruel e veloz.

Thorkus era apenas um vulto negro na escuridão da noite, e, apesar da pele pálida, por muitas vezes seu corpo pareceu se camuflar a ela, como se seu corpo se desintegrasse repentinamente e se materializasse em outra direção, golpeando o Sanguinário por um ângulo inesperado. Apesar de não explicar a muitos não-vivos, suas roupas pretas lhe serviam justamente para esse propósito e seu honorável título lhe fora dado exatamente por essa habilidade, a de se misturar ao manto noturno como se fizesse parte dele.

Seus movimentos eram rápidos e precisos, demonstrando toda a qualidade de sua luta e de sua técnica, que eram nitidamente superiores às de Cassis. Num segundo Thorkus estava lá, no segundo seguinte não estava mais, e a única coisa de que o predador tinha certeza, era que o ancião carregava uma estaca consigo a fim de paralisá-lo.

Não é possível crer nas fábulas. Uma simples estaca no coração nunca mataria um vampiro definitivamente, apenas o imobilizaria assim como uma flecha, um galho, um punhal ou uma espada no mesmo local. O coração servia unicamente para distribuir o vitae pelo corpo e ajudar o vampiro em suas funções diárias como se mover, correr ou lutar, portanto, qualquer objeto que o perfurasse o interromperia de cumprir sua função e o corpo dos não-vivos ficaria duro como uma rocha, apesar de suas mentes ainda permanecerem em alerta. E era por isso que o Senhor da Noite faria uso do projétil de madeira, porque neutralizar o corpo era o primeiro passo para aprisionar o monstro.

O vampiro em frenesi ataca, energizado pelo sangue fresco que ainda habitava o seu corpo. Seus golpes eram ferozes e buscavam freneticamente atingir o oponente a fim de desnorteá-lo, mesmo que por meros segundos, para que pudesse lhe tomar a arma de madeira. Aos olhos humanos os golpes poderiam parecer vir de todos os lados, com os lutadores não sendo mais do que borrões e distorções de ar, entretanto, para os olhos experientes dos não-vivos, cada movimento era muito bem definido, efetuado e compreendido.

Direita, esquerda, chute, cotovelo, rasteira, direita novamente. A sequência de golpes do Sanguinário era sempre muito bem executada, podendo deixar qualquer oponente no chão, embora não fosse suficiente para derribar o ancião, mesmo com a vantagem do vitae. Anos luz de experiência separavam um vampiro do outro e era por isso que Cassis periodicamente treinava com o ancião, que seu nome ainda não havia sido cogitado para assumir uma posição no conselho do clã, apesar de já ter idade o suficiente.

― Você ainda tem muito que aprender – diz Thorkus, arcando o tronco para trás para desviar de um chute alto –, mas para ensiná-lo, preciso que volte a si.

― Morra – rosna o Sanguinário, irritado.

Como o juiz de seu próprio filho, o ancião tinha de subjugar o monstro e devolvê-lo ao seu cárcere no interior de Cassis, contudo, para isso, ele tinha de esquecer que existia alguma espécie de elo familiar entre eles.

Apesar das investidas furiosas do predador, seus olhos não conseguiram ficar indiferentes quando o ancião atacou, aproveitando-se daquela mesma esquiva em que seu corpo se encontrava arcado para trás. Girando levemente o corpo para o lado esquerdo, Thorkus apanhou a estaca que estava presa ao seu coldre e enterrou no coração do predador sem qualquer tipo de hesitação.

Não houve tempo sequer do Sanguinário retornar de seu último chute, pois no meio dele é que veio o contragolpe, rápido e inesperado. E quando a madeira acertou-lhe o coração, o corpo todo do vampiro se entorpeceu e paralisou, deixando o temível predador novamente sob o comando do lorde, sob o domínio de quem ele intitulava ser O Juiz.

O ancião ampara o corpo imobilizado, o lançando sobre o ombro, e com os olhos ainda abertos e totalmente alerta, o vampiro assistiu, indefeso, o seu corpo ser carregado para o nostálgico castelo que fora levado na primeira vez, há muitos anos. A escuridão da noite logo foi substituída pela luz dos candelabros, indicando que já estavam no interior da fortaleza de Thorkus, e na sequência, foram trocadas novamente pela escuridão, pois o ancião o estava levando para o fosso.

Diante daquele profundo buraco especialmente criado para aquele tipo de processo, com paredes tão grossas quanto os da própria fortaleza, Thorkus retirou a estaca do Sanguinário e o atirou cova adentro, tampando a aberta logo em seguida com uma placa de pedra e três grossas correntes, pois era ali que o processo de purificação de vitae aconteceria.

― Não! – grita o predador, quando consegue retomar o controle de seu corpo, pouco antes do ancião bloquear a saída do fosso.

― Já é a segunda vez que o prendo, deveria saber como funciona – diz Thorkus em resposta, do lado de fora. – Enquanto o vitae humano não abandonar o seu corpo, não poderemos substituí-lo pelo animal, e se não efetuarmos a troca, não poderá retornar a Alestia.

― Não! – vocifera novamente, batendo contra as paredes do fosso em busca de uma saída.

― Essa fortaleza é antiga, mas a fenda foi criada por mim para conter um não-vivo. Agora seja um bom menino, pare de se exaltar e deixe Cassis voltar. – Suspira, com o semblante parecendo entristecido, retirando-se em seguida e deixando o vampiro aprisionado para trás, esbravejando com sua própria solidão.

Thorkus sabia o que tinha de fazer, a contensão do frenesi e a purificação do vitae era sempre feita por partes, numa espécie de receita que ele próprio havia criado: primeiro passo, imobilizar o Sanguinário; segundo passo, trancafiá-lo; terceiro passo, deixá-lo aprisionado até que o estado de frenesi chegue ao fim; quarto passo, deixá-lo sem alimento até que seu corpo entre em inanição.

O ancião já havia feito aquilo com outros vampiros em frenesi que se perderam na Terra Neutra, mas com Cassis era diferente, sempre diferente, e isso nunca quis dizer “mais fácil”. Com ele a responsabilidade sempre lhe pesava sobre os ombros, não como decepção, porque qualquer não-vivo é sujeito ao frenesi, mas como preocupação, pois aquele era o garoto a quem ele transformou.

Dois meses se passaram desde o incidente com Tibérius. O frenesi perdera seu efeito cerca de vinte e seis horas depois do aprisionamento, permitindo que a razão de Cassis assumisse o controle e se habituasse ao sangue humano, fazendo-o se sentir mais forte e bem-disposto do que nunca. Entretanto, ao se dar conta de onde estava e do que deveria ter feito para estar ali, o rei permitiu que seu corpo desabasse no chão, abatido.

Pacientemente ele esperou, até que o índice de vitae humano se tornasse baixo em seu corpo, acarretando um novo frenesi, onde seu predador tentou desesperadamente procurar alimento, sem sequer se lembrar como havia parado ali, e depois, não houve mais nada. Thorkus acompanhava tudo do lado de fora, cada reação, cada grito e até mesmo o silêncio do verdadeiro Cassis, que se recusava a pronunciar qualquer palavra até que a desintoxicação estivesse concluída e ele pudesse voltar a ser ele mesmo.

A letargia por escassez de sangue era o mais próximo que um vampiro poderia chegar da experiência de dormir, a mente fica entorpecida, o raciocínio torna-se quase nulo e a visão escurece. Era de certo uma experiência interessante de se passar, todavia, também era uma coisa perigosa de se tentar, visto que, quando a última gota de sangue fosse utilizada e as reservas chegassem a zero, o vampiro encontraria sua morte final. E foi somente quando Cassis entorpeceu que o ancião pôde abrir o fosso e retirá-lo de sua clausura, obrigando o vitae animal a escorrer por sua garganta e o despertando de seu torpor.

― Soube notícias de Alestia? – pergunta o ancião, adentrando a enorme sala onde Cassis se encontrava, sentado frente a uma lareira que não era acessa há séculos. O alvorecer estava magnífico naquela manhã, entrando à sala numa luz cálida e graciosa, deixando cada móvel antigo com uma aparência apaixonante.

― Não – responde somente, pois apesar de revitalizado, o sabor do vitae humano ainda permanecia em sua memória, o tentando, e esta era sempre a parte mais difícil de conter.

― Creio que o conselho saiba de algo, mas ainda não lhes tive contato. – Pausa, caminhando até a janela como se pretendesse admirar o amanhecer. – De qualquer forma, ainda sou responsável por tua não-vida e segundo nossas leis tenho de assumir a responsabilidade por seus atos.

― Novamente limpando minha sujeira.

― Depositamos tudo nessa aliança e um novo massacre por parte de seu predador é inaceitável. Esta situação certamente será difícil de contornar e tornar-se-á ainda mais complexa se os anciãos souberem de algo que ainda não saibamos, algo que, de acordo com nossas leis, possa condená-lo ao extermínio.

― Se a máscara que nos escondia caiu, estas regras não careceriam vigorar mais, não é mesmo? – comenta, mais como uma dúvida do que de fato como uma afronta.

― Nas atuais circunstâncias, algumas leis foram realmente revogadas, mas as que se mantém devem ser seguidas. Leis são leis, não importa como ou onde você está, e são elas que garantem pelo menos um resquício de ordem em nosso meio deturpado. Somente rebeldes questionam nossas tradições, portanto, não ouse fazer isso novamente! Agora, recomendo que retorne e averígue o que de fato aconteceu em Alestia.

― Acha que fiz algo grave?

― Sim. – Volta-se para Cassis, o analisando

― E vai me contar suas suspeitas?

― Não.

― Irritante – retruca em pensamento, fazendo uma leve careta.

― Não leio pensamentos, mas sou excelente em ler semblantes, e pelo seu rosto, tenho certeza de que está me ofendendo.

O rei se ajeita na poltrona, escondendo um pouco mais o rosto para que não ficasse tão exposto e não pudesse ser interpretado tão facilmente, pois, por alguma razão que ele não sabia explicar, Thorkus sempre sabia tudo a seu respeito, como se ele ainda fosse uma criança da noite ou um livro completamente aberto.

― Tenho receio do que acharei – diz Cassis.

― E desde quando tens medo de algo?

― Desde que conheci Sara – admite, sentindo a mente pesar ao imaginá-la, sem ter nenhuma notícia de seu estado ou de onde estava. – Regredi em minhas habilidades de ser indiferente e não me importar com humanos.

― Tenha medo, mas não seja refém dele. És um vampiro, perdeste sua coroa, porém, ainda és mais poderoso que os humanos. Uma hora você terá de voltar para casa e, a meu ver, esta hora é agora. A bastarda o aguarda no hall de entrada – diz o ancião, referindo-se a espada perdida em batalha, que foi resgatada, limpa e afiada para retornar às mãos de seu legítimo dono.

O ancião se retira com passos silenciosos, dirigindo-se para alguma parte desconhecida da fortaleza enquanto Cassis permanecia ali, parado e em silêncio. Por muito tempo ele achou que aquele castelo e aquelas terras eram o seu lar, e, mesmo após o casamento, sempre considerou aquelas paredes como a sua verdadeira casa. Entretanto, depois das palavras do ancião, o não-vivo percebeu que aquele lugar não lhe passava mais conforto e até mesmo aquela poltrona, que sempre fora a sua preferida, não lhe parecia mais aconchegante e receptiva.

― Entendo – concorda por fim –, é hora de voltar para casa.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado ^-^



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