Cassis (Série Alestia I) escrita por Jane Viesseli


Capítulo 29
Ameaça




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Aquele dia estava sendo como qualquer outro entediante dia para Merryn, que precisava permanecer dentro da Floresta do Lodo para se proteger dos nocivos raios solares. Durante o dia, Tibérius infiltrava-se em Alestia a fim de analisar suas composições militares e a atuação do rei, e, portanto, a não-viva permanecia sozinha e enfada. Ela já havia tentado sair no sol, uma única vez, arrependendo-se amargamente no momento em que a luz ultravioleta tocou sua pele, causando rápidas e profundas queimaduras de terceiro grau, que lhe custaram uma boa quantidade de vitae para que nenhuma cicatriz permanecesse em seu rosto perfeito.

No entanto, naquele dia em especial, a criança da noite sente algo diferente no ar, um aroma parecido com o de romãs, misturado a algo cítrico que ela não conseguia distinguir. A vampira se locomove sobre as árvores, chegando à beira da floresta – mas ainda se mantendo coberta pelas folhagens – e avistando, à distância, o comboio composto de uma carruagem e seis cavaleiros, que margeavam o grande rio em direção ao norte.

Merryn estreita os olhos, aumentando sua concentração como se isso pudesse melhorar sua visão, tentando a todo custo enxergar além dos minúsculos cavalinhos que se afastavam cada vez mais. Ela bufa, frustrada, observando com certa raiva enquanto seu único passatempo se distanciava cada vez mais, subindo o rio.

A não-viva fecha os olhos, recostando-se no tronco da árvore e aceitando, momentaneamente, sua enfadada sina de pobreza e falta do que fazer. Entretanto, quando sua mente começou a divagar por luxos, riquezas e bailes, a vampira foi açoitada por uma lembrança que envolvia coroas e cheiro de romãs, uma lembrança de seu primeiro encontro com Sara de Alestia, quando ambas foram apresentadas à corte em um grande baile, e a princesa roubou toda a atenção da monarquia.

― Sim! – grita felicíssima, deixando os caninos salientes à mostra. – Sua majestade, Sara de Alestia, está naquele comboio com a minha criança! – Ri, analisando a sombra das árvores para saber em que momento viria o entardecer, de repente se dando conta que escuras nuvens de chuva vinham do leste, engolindo o céu de Alestia pouco a pouco, e também, qualquer influência do sol sobre a terra.

Merryn sorri maliciosa, aguardando pacientemente por quase uma hora até que as nuvens escurecessem o céu e a permitissem sair de seu esconderijo. A vampira salta das árvores com ansiedade, entrando em Alestia e também margeando o rio com o máximo de velocidade que suas condições imortais lhe permitiam ter, até que seus olhos finalmente encontrassem os cavalos da rainha, parados frente ao grande lago.

A não-viva salta no rio, ainda sorridente e já sentindo o gosto da vitória em sua boca, pois ainda naquele dia teria o objeto de seu capricho em suas mãos. Ela realmente estava disposta a esperar que o nascimento do herdeiro de Alestia acontecesse, entretanto, quando percebeu que Sara estava fora do castelo, tão apresentável quanto um leitão assado sobre uma bandeja para sua realização pessoal, não pensou duas vezes em alcançar seus objetivos com suas próprias mãos e provar que era capaz de fazer qualquer coisa, mesmo que isso fosse contra as vontades de Tibérius.

Mesmo nadando contra a corrente natural do rio, Merryn conseguiu chegar ao lago antes que os alestianos partissem. Ela nada com força, atravessando o restante do percurso completamente submersa, sentindo uma leve quantidade de vitae ser extinta de seu corpo devido ao grande esforço que fazia. E quando finalmente emergiu, já às margens do lago e próxima demais dos patéticos humanos, a vampira avançou contra as damas ali presentes, fatidicamente descobrindo que a rainha não estava entre elas e que havia cometido um erro estratégico.

As moças gritam ao vê-la saindo das águas como uma horrenda aparição, e diante de tanto escândalo Merryn atacou, rapidamente apanhando a dama de companhia mais próxima, enfiando o punhal em seu estômago e subindo a lâmina até que tocasse o esterno. Houve um grito e depois muito sangue, e depois mais nada, pois Maria, a mais jovem de todas as donzelas, foi jogada às margens do lago como um objeto estragado, sangrando mais do que o seu humilde corpo poderia suportar.

As mãos da gestante envolvem a barriga de forma protetora diante dos gritos apavorados de suas damas, que corriam apavoradas para o interior da carruagem, enquanto os dois soldados mais próximos empunhavam suas espadas.

― Uma vampira! – gritam o veredicto, para que os homens que acompanhavam a rainha ficassem cientes de sua presença, antes de investirem contra a não-viva com coragem e brutalidade.

Sara sente os soldados ao seu redor se locomoverem, um deles agarrando seu braço com firmeza e a conduzindo em direção à carruagem onde, segundo ele, estaria segura. Os demais pretendiam dar-lhe cobertura, e enquanto a operação de escolta acontecia, a rainha pôde ouvir a não-viva chamar o seu nome:

― Eu procuro Sara de Alestia! – anuncia Merryn com voz firme, desviando das espadas com mais facilidade do que os soldados esperavam, avançando e saltando sobre a carruagem sem demonstrar esforço. – Senti o seu cheiro nos domínios de Aurora, enquanto margeavam o rio e sei que está aqui. Venha até mim, majestade!

A rainha arregala os olhos, ouvindo os apavorantes gritos de suas acompanhantes soarem de dentro do veículo. Como ela podia desviar tão agilmente das investidas de seus soldados? Seria as habilidades de um não-vivo assim tão superiores aos dos humanos, a ponto de desviaram de homens tão habilidosos como se não passassem de um amontoado inútil de metal? Sua mente começa a trabalhar rápido, buscando explicações e motivos para o que estava acontecendo, como se isso pudesse ajudá-la de alguma forma.

Sara analisa suas palavras, acreditando que a vampira se escondia em Aurora, não se dando conta de que, ao citar o nome do reino, Merryn não necessariamente estava dando uma pista sobre a localização de seu esconderijo. E diante das roupas encharcadas e manchadas de sangue, a humana não demorou muito para perceber que ela havia os seguidos pelas águas profundas do rio, aparecendo de repente e atacando Maria, que infelizmente deveria estar em seu caminho.

Ambos os soldados que vigiavam a carruagem tentam apanhá-la, inutilmente competindo contra sua velocidade elevada. Eles eram os mais jovens da guarda da rainha, possuindo muita energia e habilidade com a espada, mas, ao contrário do que esperavam, seus reflexos não se mostravam suficientes para combater a rapidez da vampira.

Num movimento inesperado, um dos homens é golpeado na cabeça, perdendo o seu elmo e deixando seu pescoço totalmente exposto. A não-viva avança contra ele, pelas costas, agarrando o seu tronco com os braços e afundando os caninos em sua garganta, somente para puxá-los, logo depois, rasgando pele, carne e veia ao mesmo tempo, e abandonando o corpo do alestiano a própria sorte, enquanto se debulhava em sangue e grunhidos.

― Morra criatura amaldiçoada! – brada o segundo soldado, confiante demais para notar que todo o seu treinamento não era o suficiente para salvá-lo.

― Pelos céus! – exclama Sara, sentindo o medo tomar conta de seu corpo e uma imensa vontade de vomitar se alojar em sua garganta, ao ver a quantidade de sangue que manchava a armadura brilhante do homem caído, cujos sinais vitais diminuíam a cada segundo.

Em meio ao confronto, o cocheiro, munido de um pedaço de pau, corre em direção às margens do lago, deixando as damas para trás e os cavalos desprotegidos e apavorados, o que não tardou em resultar em desastre. Reconhecendo o perigo que a vampira representava para suas vidas, como uma predadora anormal da natureza, os equinos disparam rumo a lugar nenhum, levando consigo todas as acompanhantes da realeza e o único lugar seguro em que Sara poderia se abrigar naquele instante.

― Isso não pode estar acontecendo – sussurra Sara, percebendo a nova movimentação dos soldados, que se uniam ao seu redor para impedir qualquer avanço, à medida que a vampira cravava seu punhal no pescoço de seu segundo oponente, matando-o instantaneamente.

A rainha sente os pelos de seus braços se eriçarem, como se já soubesse que todo aquele esforço não teria um resultado satisfatório e a morte estivesse ali para levá-la. O cheiro do medo exalava de seus poros e seu tronco subia e descia freneticamente, enquanto tentava fazer sua voz soar alta e firme.

― O que você fez à moça perto do lago? – inicia, imaginando se ainda havia esperanças para ajudar Maria, já que o cocheiro, repleto de medo, fugia para o outro lado sem sequer verificar suas condições.

― Eu a matei!— Ri, ameaçando uma aproximação e fazendo os soldados avançarem um passo. – Rasguei-a como uma folha seca – declara vitoriosa, exibindo o punhal e as mãos ensanguentadas, numa tentativa muito bem-sucedida de amedrontar a rainha.

Merryn sorri, aproveitando o momento dramático para lamber a lâmina do punhal e apreciar o sabor do vitae do cavaleiro, além do delicioso gosto da vitória, que já contava como certa. Seus cabelos negros se mantinham presos num belo coque, como se toda aquela luta não lhe oferecesse nenhum tipo de desafio, e seu rosto era tão belo que parecia esculpido em mármore, levando Sara a pensar que, se as circunstâncias fossem outras, nunca teria desconfiado se tratar de uma não-viva.

― Quem é você? – questiona, analisando suas roupas finas e cogitando que aquela vampira, aquela coisa que um dia havia sido uma mulher, deveria ter pertencido à nobreza de algum reino.

― Merryn, majestade, nós já nos encontramos antes, há muito tempo, mas acredito que seu ego não a permita se lembrar de alguém como eu – ironiza, depositando sobre a rainha toda a soberba que, na verdade, pertencia a ela própria.

Sara franze a testa, buscando na memória onde já havia escutado aquele nome, recordando-se vagamente de uma portoenense homônima, que havia debutado juntamente a ela no grande baile de apresentação à monarquia. Entretanto, há alguns meses, quando seu pai ainda era vivo, a notícia de seu desaparecimento e da suspeita de sua morte se espalhou por todos os reinos do sul, que lastimaram a perda de uma monarca tão jovem e promissora.

― Merryn – chama Sara, nitidamente atordoada diante daquela revelação tão importante. – Você é a filha desaparecida da Terra dos Portos, que todos pensam ter sido assassinada. Então você não morreu.

― Vossa majestade se lembra de mim. – Sorri maliciosa, com os olhos cintilando de cobiça, ansiando que aquela conversa tola terminasse para que pudesse cravar seu punhal no corpo de Sara e roubar o seu filho. – Não pertenço mais àquela família ou àquela terra, lancei fora minha vida humana e não me interesso por mais nada que venha dela. Somente a eternidade me é importante e tudo o que ela pode me dar, e você, majestade, tem algo que eu quero.

Um vento forte começa a soprar, balançando as águas do lago e trazendo um leve chuvisco para a região. Com as gotículas de chuva brilhando em suas armaduras, os soldados se deram conta de três fatores bastante desanimadores para o que estavam prestes a enfrentar: (1) a noite já começava a cair, (2) não havia tochas e (3) a tempestade havia os alcançado bem antes do esperado, e quando o aguaceiro realmente começasse a cair, a batalha que estava por vir se tornaria ainda mais difícil.

― E o que você quer?

― Quero o que você carrega no ventre – sibila através de seu sorriso, como uma serpente chacoalhando sua cauda, ao mesmo tempo em que ajeitava o punhal entre os dedos para usá-lo novamente. – Tibérius me prometeu tudo neste reino, eu escolhi a criança e ele me concedeu, agora estou aqui para reivindicá-la! – ameaça com um rosnado, avançando sobre os soldados e iniciando uma sangrenta luta.

Sara recua alguns passos, assustando-se com o momento em que as espadas de seus defensores se chocaram com a lâmina ensanguentada de Merryn. Ela era rápida, possuía boa agilidade e girava a lâmina entre os dedos com muita habilidade, sendo capaz de desviar dos ataques dos guerreiros e ainda ajeitá-la nas mãos para um contra-ataque. Contudo, diferente de seus primeiros oponentes, a vampira estava lidando com soldados experientes, de bons reflexos, não tão fáceis de enganar e que estavam dispostos a destruí-la ou morrerem tentando, antes que a escuridão da noite caísse e matasse a todos.

Com ataques simultâneos e bem sincronizados, os quatro soldados conseguiram ocupar plenamente a atenção de Merryn, afastando-a de seu alvo principal para que pudesse lidar com todos eles. As espadas cortavam o vento e a chuva com velocidade, numa coreografia de guerra tão bem-feita, que não tardou para que a vampira fosse atingida pelos soldados, perdendo dois dedos da mão esquerda e adquirindo um profundo talho em suas costas.

Em contrapartida, ela pouco fez aos soldados, cujas armaduras eram leves, mas, ao mesmo tempo, muito bem reforçadas, uma técnica de forja que somente os mestres ferreiros de Narbor possuíam. A cada vez que a ponta de seu punhal tentava perfurar as couraças brilhantes, Sara sentia o ranger agudo e irritante do encontro dos metais penetrar seus ouvidos, arrepiando-a desde a coluna até os braços.

Percebendo que seus ataques pouco a favoreciam diante de quatro experientes soldados, Merryn não viu alternativa a não ser desviar-se deles, e, na primeira oportunidade, avançar sobre Sara e torná-la sua refém. Os soldados jaziam em círculo ao seu redor, golpeando-a não só individualmente, mas também em duplas e em trios, como se lutassem juntos há séculos e um estivesse em perfeita sintonia com o outro.

A vampira desvia do primeiro golpe, que quase arrancou-lhe a cabeça, desvia do segundo com o auxílio do punhal e do terceiro movimento de espada, encontrando a brecha de que necessitava. Ela salta para fora do círculo com uma cambalhota, correndo em direção a humana com rapidez e apontando sua lâmina para a garganta da rainha, fazendo todos os homens congelarem em seus lugares, visivelmente vencidos e amargando o fato de terem a deixado escapar.

― Aguardo há dias por este momento. – exulta Merryn, manipulando o punhal da garganta para o ventre de Sara. – Apesar de todos os esforços de seu rei em nos manter longe, não há exército capaz de defendê-la agora, neste lugar tão distante – balbucia como uma serpente.

― Não!!! – grita Sara, vulnerável, vendo-a retrair o punhal para deferir o golpe que lhe rasgaria roupa e pele, e abriria caminho ao seu filho, isso se também não o matasse.

― Sara! – Ouve-se logo em seguida. A voz alarmada de Cassis ecoa com um grito, acompanhada dos trotes dos cavalos de sua guarda pessoal, que pouco parecia preocupada com a chuva.

O rei estava se despedindo de Sir Thorkus momentos antes, quando o chanceler o abordou, anunciando a saída da rainha para um objetivo desconhecido. Ambos os vampiros partiram da Cidadela logo em seguida, preocupados, dividindo-se no meio do caminho para que pudessem vasculhar a maior parte de terras possível, com o ancião seguindo rumo à fortaleza oeste, um grupo de oito homens para o leste e o rei, com seus cavaleiros, para o norte.

Os cavalos corriam com valentia, levantando pedaços de terra e grama conforme os seus cascos açoitavam o chão. Houve um momento torturante de procura até que o vampiro pudesse captar o cheiro de sangue no ar, o inconfundível e delicioso aroma de sangue humano. O pior lhe sobreveio naquele momento e, com a imagem desastrosa de uma cabeça numa bandeja, Cassis parou o seu cavalo com um puxão forte nas rédeas, abriu seu odre com evidente desespero e entornou tudo o que havia em seu interior goela abaixo, pois, se Tibérius havia pegado a sua mulher, ele precisaria estar extremamente saciado para matá-lo sem que seu predador se distraísse com o sangue que deveria ter sido derramado.

Os soldados o assistem, ficando secretamente enojados quando uma pequena trilha de vitae escorre pelo canto direito de sua boca. O líquido rubro contrastava com a pele pálida do não-vivo, e quando ele finalmente baixou o odre, com os caninos salientes e a gengiva ainda avermelhada pelo sangue, parecia ainda mais ameaçador e nocivo do que antes.

Os cavalos se inquietam ao seu redor, reconhecendo a periculosidade de sua presença e dando aos soldados certo trabalho na tarefa de acalmá-los. Entretanto, antes que tal calmaria pudesse ser atingida, Cassis toca seu garanhão real em mais uma corrida, rumo ao local que seus instintos e o cheiro de sangue no ar diziam ser correto, obrigando os soldados a exercerem todas as suas habilidades na retomada do controle de seus cavalos.

Quando os olhos do rei estavam perto o suficiente para avistar o comboio de Sara, a voz da rainha rasgou seus ouvidos em aflição. E diante de tanta agonia, o vampiro não pôde evitar gritar de volta, pois precisava mostrar que ele havia chegado a tempo, que ela não estava mais sozinha e que conseguiria salvá-la.

Ele estava ali e a levaria para casa, foi o que se passou na cabeça da rainha, ao virar o rosto em direção à voz de Cassis, que pulava de seu cavalo ainda em movimento. Sara o vê saltar do cavalo, entretanto, quando seus pés tocaram o solo, o vampiro simplesmente desapareceu, embalando numa corrida veloz demais para que seus olhos pudessem acompanhar.

Houve tempo apenas para desembainhar sua espada, pois seu corpo logo se chocou ao de Merryn, retirando-a de perto de sua rainha e a fazendo cambalear com o movimento veloz e tão próximo de seu corpo. Repentinamente o cenário se tornou lento novamente, permitindo aos confusos humanos avistarem o rei, a alguns metros de distância, com o punhal atravessado em seu ombro esquerdo, enquanto sua espada permanecia fincada no estômago de Merryn, com a ponta exposta do outro lado de seu corpo.

― Sua não-vida termina aqui, maldita! – rosna Cassis com os caninos ainda à mostra, lançando-a para trás com um chute e fazendo-a sair de sua lâmina afiada e deixar, por acidente, o punhal ainda fincado em seu braço.

― Você não sabe com quem está lidando – grita no mesmo tom, irritando-se pelo estrago feito em seu belíssimo corpo.

― Tu é que não sabes com quem está lidando.

Um simples corte na região abdominal não era o suficiente para cessar a imortalidade da vampira rebelde e ambos sabiam disso, mas havia sido o suficiente para fazer a sede arranhar sua garganta, visto que já estava em batalha durante um bom tempo e suas reservas de sangue haviam sido usadas quase que completamente.

― Não pode me impedir de pegar o que me pertence.

― Nada aqui lhe pertence! – rebate, mesmo sem saber do que falava.

― Penso que sim.

― Não pensará em mais nada quando arrancar essa sua cabeça imunda com minhas próprias mãos! – ameaça, em alto e bom som, devolvendo a espada para a bainha e jogando-a ao chão.

Sara ofega, sentindo novamente aquela sensação congelante de alerta dominar seu corpo. Suas pernas estavam travadas de medo e mesmo que seus quatro cavaleiros tivessem se unido à guarda pessoal do rei, somente para protegê-la, ela não conseguia sentir-se verdadeiramente segura ou sequer desviar o olhar de Cassis, que parecia se tornar outra pessoa agora que entrava pessoalmente na batalha.

― Sua humana está paralisada de medo – sussurra a vampira, desejando que somente Cassis ouvisse sua provocação, ao passo que já sentia o ardor em sua garganta aumentar devido a grande perda de vitae. – Imagine como ficará quando arrancar a criança de seu ventre enquanto ainda estiver viva.

O vampiro rosna furioso, avançando contra sua inimiga e deixando nítido o quanto era superior a Merryn, em experiência e em todas as demais qualidades de guerra, como se uma escadaria inteira separassem as habilidades um do outro. A vampira não passava de uma criança, no fim das contas, uma tola e teimosa criança que acreditava poder fazer tudo, pelo simples fato de ser uma não-viva, como se isso a tornasse indestrutível e a morte final nunca fosse bater em sua porta.

Cassis podia prever todos os seus movimentos e perceber que, apesar de saber segurar uma arma, ela não tinha o suficiente para vencê-lo. Com uma rasteira o rei mandou-a para o chão, segurando-lhe pelo pescoço com o braço ferido e exercendo tanta força para mantê-la ali, que sequer parecia sentir algum tipo de dor. Com a mão livre, ele apanhou o punhal que descansava em seu ombro e o afundou no coração da não-viva, paralisando naquela posição.

Os olhos de Merryn se arregalam levemente antes dela paralisar por completo, pois era assim que o vampiro queria que ela morresse: sofrendo sem sequer conseguir exteriorizar sua dor ou sua agonia. Cassis sorri maliciosamente para o belo rosto da vampira, deixando transparecer toda a maldade que o dominava em momentos de batalha, porque, como todo vampiro, ele havia sido treinado para matar sem remorsos ou ser ele a ser morto. Diante disso, o rei sequer hesitou ao se levantar, apanhar sua espada bastarda, retirá-la da bainha e perfurar, lentamente, a garganta da não-viva.

Uma poça de sangue empapava a grama já molhada pela chuva, ao mesmo tempo em que os olhos de Merryn se tornavam vermelhos com o frenesi. Contudo, com o punhal que a paralisara, seu predador interior não teve chance de se mostrar, de buscar alimento ou qualquer outra coisa que os salvassem.

A lâmina de Cassis toca a coluna vertebral da vampira, fazendo-o sorrir novamente e amaldiçoá-la em pensamento. E, com um golpe rápido e forte, ele retirou a espada da carne de sua inimiga, ajustando a empunhadura e golpeando-a fortemente no mesmo local, a fim de decapitá-la e fazê-la encontrar a morte final.

Houve um leve tremor no corpo feminino enquanto o tempo retomava o período de imortalidade que lhe era de direito, deixando o lindo rosto de Merryn cadavérico e fétido, mas não totalmente decomposto. Os soldados murmuram diante do fedor e da morte, ao mesmo tempo em que pareciam fascinados com a valentia de seu rei e da forma com que ele lutava.

Em contrapartida, quando Cassis levantou os seus olhos do defunto, sentiu todo o seu corpo tremer ao ver o horror estampado no rosto de Sara, que havia assistido a toda aquela cena sangrenta e seu método nada humano de batalhar. Seus olhos se tornaram pesarosos de repente, pois sua rainha havia visto um lado seu que não conhecia, o lado de batalha, uma parte tão fria e sangrenta quanto à de qualquer outro vampiro, mas que ela não esperava, não imaginava e não havia gostado.

Sara estava horrorizada e ele via isso em seu rosto.

― Quem era ela? – pergunta com calma, dirigindo-se a um dos soldados e analisando as tristes perdas daquele fim de tarde. Cada palavra que saía de sua boca estava sendo minuciosamente calculada, pois um ar diferente começava a pairar sobre eles e não era causada pela chuva.

― Ela se identificou como Merryn, majestade – responde o soldado, aproximando-se do rei como se não estivesse enojado com o cheiro pútrido e explicando-lhe toda a ocorrência, assim como a rápida ligação que a rainha fizera da não-viva com a donzela desaparecida da Terra dos Portos.

O vampiro ordena a coleta dos corpos humanos, para que retornassem à Cidadela e tivessem um funeral digno junto às suas famílias, afinal, aquelas pessoas haviam acabado de morrer no lugar de sua rainha. A noite começava a cair e a chuva a aumentar, obrigando os soldados a agirem rápido e jogarem os corpos sobre os cavalos com desrespeito, para que pudessem voltar ao castelo antes que o trajeto fosse engolido pelo breu.

E enquanto os cavaleiros trabalhavam, o rei ousou se aproximar de sua rainha, lentamente, como se ela pudesse surtar e correr a qualquer momento. Sara estava molhada e com frio, sentindo os dentes baterem conforme o medo abandonava seu corpo e a deixava apenas com as pernas trêmulas.

― Eu a conhecia – diz ela, quando o vampiro estava próximo o bastante. – Não éramos íntimas, mas eu a conhecia. Deve ser uma rebelde, pois citou o nome de Tibérius e uma promessa, foi tudo muito rápido e confuso. Ela parecia ter raiva de mim, porém, eu não entendo o porquê. Simplesmente não entendo! – afirma na defensiva, cuspindo as palavras com velocidade como se o vampiro estivesse lhe “exigindo” um esclarecimento com o olhar.

― Tudo bem – acalma ele –, não tem importância.

― Tem sim! – rebate, agora soando irritada. – Eu a conhecia, a vi respirar e dançar e agir como uma moça normal, e repentinamente ela se coloca a minha frente totalmente mudada, tenta me matar e morre como se sua existência não tivesse importância. Merryn desaparecerá sem que ninguém saiba seu paradeiro, como uma moribunda sem nome e sem valor. Isso não deveria acontecer.

― Pare. Veja como isso está soando ridículo, Sara, essa vampira quase te matou e você ainda ousa sentir compaixão? – questiona, contendo sua indignação para que sua voz soasse calma e controlada, já que a rainha parecia estar fora de si.

Sara se cala, fechando os olhos com força. Ela reconhecia que nenhuma daquelas palavras fazia sentido, que Cassis estava certo e que sentir compaixão por alguém que nitidamente tentou contra sua vida e a de seu bebê, era inaceitável. Com a mente confusa e os tremores em seu corpo, Sara sentia-se à beira de uma crise histérica, algo muito pior do que o enfado que a levou àquele trágico passeio. Tudo lhe parecia errado naquele momento: ela estar ali parecia errado, sentir compaixão parecia errado, matá-la parecia errado e o seu marido ter as mãos manchadas de sangue parecia ainda mais errado.

― As coisas não precisavam ser desse jeito – sussurra, sentindo uma lágrima solitária escorrer por seu rosto e se camuflar com as gotas de chuva.

― E de que outro jeito seria? Você morta e o nosso bebê nas mãos de Tibérius, caso ele sobrevivesse por ser retirado de seu ventre antes da hora?

― Precisamos avisar a família.

― Não vamos fazer isso.

― Eles devem sentir falta dela.

― Ao contrário do que imagina, eles sequer sabem no que ela se tornou, acreditam que ela morreu e por isso já choraram o seu luto – diz ele, achando toda aquela conversa bastante desnecessária e já começando a se alterar.

― Isso não os isenta de sentirem falta da filha – rebate, também elevando a voz e lembrando-se da falta que sentia de sua própria família.

― Quem sentiria falta de um monstro? – lança ele, sem considerar que ele próprio poderia ser colocado naquela categoria.

― Seres com sentimentos e que sabem amar – golpeia Sara, acertando o vampiro com mais força do que realmente gostaria. – Diferente de vocês, nós, humanos, sentimos falta de quem amamos!

O rosto de Cassis se contorce por meros segundos, um pequeno deslize em seu controle emocional que denunciou toda a sua mágoa com aquelas palavras. Sua mente compreendia perfeitamente a confusão de sua rainha e sabia que sua fala não tinha um significado real, que era dita pelo calor do momento e apenas da boca para fora, contudo, ele não pôde deixar de se sentir ferido.

Depois de tudo o que havia vivenciado em sua não-vida, o vampiro acreditava que finalmente estava construindo alguma coisa importante e dando um sentido real para sua imortalidade, além de, através de Sara, descobrir que havia um resquício de humanidade a ser preservada em seu coração. E agora, palavras ir racionais e tomadas pela raiva lhe diziam o contrário, o acusando de ser o monstro que sempre temeu ser e o condenando a nunca conseguir amar.

― Não avisaremos ninguém – responde somente, retornando para o cadáver de Merryn e encerrando àquela desagradável conversa, pois, em sua mente, acreditava ser melhor a família de Merryn acreditar na morte de uma linda e sorridente filha humana, do que descobrirem a criatura horrenda que ela havia se tornado e serem obrigados a viver mais um luto, desta vez, terrível e decepcionante.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado!
Estamos quase chegando ao fim deste livro, mas, desde já, quero agradecer a todos os que estão lendo esta história ❤️. A previsão é de que a história se encerre na virada do ano, e ainda teremos um especial de Natal (capítulo duplo no dia 25) para aumentar a diversão da festividade para todos vocês.



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