Cassis (Série Alestia I) escrita por Jane Viesseli


Capítulo 20
Recomeço




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Henrique solta uma risada irônica, debochando do suposto amor do imortal e fazendo o vitae fervilhar nas veias do vampiro.

― Amar? Vampiros não amam, matam e tomam sangue humano.

Cassis força a lâmina da espada contra a pele branca, levemente, irritando-se ainda mais com a petulância de Henrique. A princesa engasga com o ar, assustada, arregalando os olhos para a possibilidade de o aço perfurar a carne em que tocava, mas sua reação inconsciente serviu perfeitamente para lembrar a ambos os homens que ela ainda estava ali e que não seria correto infligir uma dama a um banho de sangue.

― Vá embora – ordena Cassis, com os olhos fixos nos dele.

― Eu voltarei – confronta Henrique.

― Se voltar, eu o mato!

― Quando eu voltar, eu é que terei o prazer de matá-lo – ameaça.

― Veremos.

O não-vivo retira a pressão que fazia através da espada, porém, em nenhum momento baixou o instrumento mortal, deixando claro que Henrique estava livre para ir, mas que, se decidisse ficar, não obteria sucesso em sua disputa pela donzela.

― Quero uma escolta de seis homens para encaminhá-lo até a fronteira – ordena ele aos soldados. – Certifiquem-se de que sua alteza deixe Alestia ainda esta noite, e se ele se recusar a ir, quero que o matem. Isso é uma ordem!

― Vossa alteza, se o matarmos declararemos guerra contra Aurora – alerta um soldado, não se intimidando com a ideia de matar um membro de família real, mas preferindo lembrá-lo das consequências.

― Então, que assim seja! – exclama com seriedade, não vacilando sequer com a ideia de uma guerra explodir entre velhos aliados.

― Sim, senhor! – respondem os soldados, guiando Henrique em direção à saída do castelo, da Cidadela e, consequentemente, do reino.

A princesa suspira ao vê-lo partir, aliviada, mas sentindo a amizade que um dia tiveram se romper definitivamente. A partir daquela noite, Sara de Alestia e Henrique de Aurora não seriam apenas amigos fazendo política, pois ela se recusava a demonstrar qualquer tipo de apreço pelo homem que ele tinha se tornado.

― Tudo bem? – pergunta Cassis, quando tudo se tornou silencioso.

― Sim, agora está tudo bem – responde sem jeito, não sabendo exatamente como abordá-lo depois de tudo o que ouvira sair de sua boca.

― Foi um belo tapa aquele – comenta casualmente, tentando tornar a situação menos constrangedora e fazendo-a rir.

― Doeu. Acho que não soube bem onde bater.

― Ow, não, você soube exatamente onde bater – cutuca, fazendo-a rir novamente e se orgulhar de si mesma, pois se um homem experiente em lutas lhe dizia que havia dado um bom golpe, ela acreditava.

Um silêncio constrangedor se instala no cômodo, pois nenhum deles sabia como continuar aquela conversa. Sara aperta o robe contra o seu corpo, enquanto Cassis guardava a espada de volta à bainha, de repente se lembrando da situação com Henrique e do terrível beijo que havia recebido.

Ela une as mãos como numa prece, disfarçadamente as aproximando do rosto e limpando os lábios, a fim de se livrar do toque asqueroso que ainda parecia impregnado em sua boca. Contudo, Cassis estreita os olhos diante do gesto, porque, mesmo que ela tentasse dissimular, ele podia ler seus movimentos e expressões, e sabia exatamente o que a estava incomodando.

Com movimentos lentos e cuidadosamente pensados, ele volta a fechar a porta do cômodo, aproximando-se de Sara logo em seguida, que umedece os lábios nervosamente, atraindo ainda mais a sua atenção devido a sua sedução inconsciente. Um sorriso torto surge nos lábios do não-vivo, enquanto seu polegar se elevava para tocar os lábios da humana e contornar, com movimentos lentos, o desenho de sua boca.

― O que está fazendo? – pergunta surpresa, sentindo a voz sair sufocada.

― Retirando o toque dele de você. Não precisa fazer nada, apenas me permita tocá-la – explica, abraçando-a em seguida.

Os braços aquecidos a envolvem, trazendo-lhe uma sensação boa e reconfortante, ao mesmo tempo em que sua mente viajava, permitindo que seus braços inconscientemente o rodeassem e correspondessem ao abraço. Não houve repulsa ou hesitação em seu gesto e isso significou muito para Cassis, que diante da lembrança de sua confissão, não conteve o impulso de deslizar a mão até o rosto feminino e beijá-la.

O vampiro sentia-se tragado por ela. Com o rosto de Sara tão próximo ao seu, a aproximação havia sido inevitável, pois, da mesma forma que os não-vivos podiam atrair possíveis presas, a princesa estava começando a exercer influências devastadoras sobre ele. Sua não-vida havia mudado radicalmente depois de aceitar àquele plano de aliança, mas sua remissão começou no momento em que seus lábios tocaram os dela pela primeira vez.

Sara fecha os olhos assim que sente o calor dos lábios de Cassis irradiar para os seus, achando que nunca mais conseguiria resistir à sua aproximação, apesar de, naquele instante, estar realmente apreciando o ato de não resistir. Suas mãos se apertam ao redor da armadura de couro, pouco antes dos lábios se separarem e uma pequena fenda, de exatos quinze centímetros, se abrir entre eles.

― Me perdoe, acho que me excedi – confessa ele, sem coragem para de fato se afastar, como todo cavalheiro sinceramente culpado costumava fazer.

― Não se desculpe — ofega, tentando se recompor mentalmente –, isso é normal para um casal, não é? Quero dizer…

― Eu te amo – interrompe.

― O que disse? – questiona atordoada.

― Pode duvidar de minhas palavras ou até mesmo zombar de mim, se quiser, mas eu preciso dizer: eu te amo, Sara!

― Mas…

― Por favor, deixe-me terminar – pede, deixando escapar um resquício de ansiedade em seu rosto sempre tão controlado. – Admito que no início era tudo uma fachada, uma missão colocada a mim pelo conselho, que deveria cumprir com rigor e seriedade, mas agora está tudo diferente, você tornou tudo diferente. Disseram-me que me casaria com uma princesa mimada e histérica, porém, esqueceram de mencionar que ela também era inteligente, atenciosa e gentil, capaz de curar as feridas mais profundas de um vampiro. – Pausa, lembrando-se de Henrique por um momento. – Quando soube que ele pretendia levá-la, achei que a perderia e pensei: “eles são iguais, de uma mesma raça”. Isso me cortou por dentro, me deixou com medo, entende? Cassis, o Sanguinário, destruidor de reinos, sentiu medo por causa de uma donzela, medo de perder esta donzela.

Sara surpreendeu-se grandemente diante de suas palavras. Muitos foram os guerreiros que se prostraram diante da força de Cassis e agora ele estava ali, confessando sentir medo por causa de uma simples humana.

― Eu queria matá-lo – admite, continuando seu raciocínio –, independente do que me aconteceria depois ou do que pensaria a meu respeito, eu pretendia assassiná-lo. Só não o fiz porque ouvi você dizer… Repita Sara – pede com expectativa –, repita o que disse a ele, em sua decisão final.

― Eu... – Sente a voz falhar. – Eu disse que quero ficar em meu reino, com o meu povo e com você, Cassis, porque eu o amo. – Pausa, olhando-o nos olhos. – Confesso que o detestava, no início, chegando a pensar que minha vida seria um tormento ao seu lado, mas você nunca foi o que eu imaginava – confessa, sentindo vergonha pelas coisas que pensara a respeito dele, no passado –, era diferente, melhor. Pude ver que por trás das regras e do comportamento imposto por sua raça, existia um homem de verdade, o verdadeiro Cassis, por quem acabei me apaixonando.

O silêncio predominou novamente. Cassis estava nitidamente refletindo sobre suas palavras, dando a Sara uma insegurança bastante incômoda. O que ele acharia de tudo aquilo? Será que suas palavras não foram boas o bastante? A mente do vampiro era tão misteriosa para Sara, quanto a dela era para ele, e enquanto as dúvidas borbulhavam em sua humanidade, seu rosto assumia diversas expressões distintas, uma seguida da outra.

― No que está pensando? – questiona ele.

― Estou pensando no que você deve estar pensando.

― E necessita de tantas caretas? – cutuca, incomodado. – Não penso tão mal ao seu respeito, como você imagina.

― Desculpe – pede, constrangida. – Então, no que está pensando?

O vampiro se cala, oferecendo seu braço em vez de palavras, e agradecendo mentalmente pela princesa aceitar ser conduzida sem questionar-lhe a respeito, já que suas palavras pareciam não ser suficientes para explicar a profundidade do que pretendia fazer.

Ambos caminham para fora do cômodo, percorrendo os corredores silenciosos em direção à sala do trono, atraindo a atenção de alguns soldados em guarda pelo caminho. E conforme adentravam o grande salão, Cassis ordenava aos dois homens à porta que não permitissem a entrada de ninguém, pois queriam conversar a sós.

― Por que estamos aqui? – pergunta Sara.

― Porque este é o lugar onde tudo começou – responde somente, conduzindo-a ao lugar exato onde a cerimônia de casamento foi realizada, e, logo, onde tudo havia começado.

― Eu não entendo – começa a dizer, calando-se de repente ao ver o vampiro se ajoelhar a sua frente e tomar suas mãos em sinal de petição.

O que não foi dito em palavras acabou sendo muito bem entendido através do movimento, pela princesa, que sentia uma mistura de surpresa e ansiedade ao vê-lo ajoelhado diante de si, com a pose galante de um cavalheiro.

― Sara! Aceita se casar comigo, de verdade?

― E-eu – gagueja, tomando fôlego e levando três longos segundos para continuar –, eu aceito!

― Por livre e espontânea vontade? – pergunta ele, só para ter certeza.

― Por livre e espontânea vontade.

― Mesmo que eu não possa lhe dar um herdeiro? – questiona com sinceridade, percebendo o sorriso dela vacilar por um instante.

― Mesmo assim, de todo o meu coração – confirma convicta.

Com as mãos de Sara sobre as suas, Cassis coloca sua atenção unicamente na esquerda, retirando o anel que ela usava, depositando um demorado beijo em seu dorso antes de recolocar a joia, como se fosse à primeira vez, renovando o elo que os unia e fazendo a princesa sentir que o seu “feliz para sempre” finalmente havia começado.

Sara sorri, aguardando que o vampiro se levantasse para, misteriosamente, caminhar para o lado direito do trono, atraindo o olhar de Cassis e fazendo-o finamente notar a belíssima harpa que descansava ali, junto a um banco de madeira bem esculpido.

― De onde veio?

― Era da minha mãe. Estava guardada nos aposentos do rei, mas achei que já era hora de tirá-la de lá.

Ele se aproxima do instrumento, admirando sua textura e aparência, subitamente erguendo uma mão para tocá-lo.

― Não – alerta ela, como uma mãe repreendendo uma criança pequena. – Um instrumento é como uma espada, se não sabe manusear, é melhor não tocar ou algo pode dar errado.

― Então, mostre-me como se faz, deixe-me ouvi-la tocar.

Sara confirma com a cabeça, achando o momento perfeitamente viável para mostrar a ele a habilidade herdada de sua mãe, mesmo que estivesse destreinada. Ela se senta no banco e seus olhos logo se fecham, ao mesmo tempo em que os dedos longos se levantavam em direção às cordas, relando-as gentilmente como se as estivessem cumprimentando depois de um longo tempo.

― A música pode não sair muito boa, faz muitos anos que não dedilho – murmura ainda de olhos fechados.

― Não tem importância – sussurra de volta, observando-a abrir os olhos e dedilhar as primeiras notas de uma canção que Cassis não conhecia.

Lentamente, corda após corda, Sara dava forma a sua música, atraindo a atenção dos soldados que guardavam a porta, que nunca mais a viram tocar depois da morte da rainha. Cassis percebe um padrão na melodia, como se a princesa estivesse repetindo o mesmo trecho repetidamente, melhorando a cada tentativa, e quando o vampiro estava prestes a perguntar-lhe o porquê, ela o surpreende, soltando a voz numa profunda canção de amor.

Foram apenas duas estrofes cantadas, que falavam dos sentimentos de uma garota ao encontrar um bonito rapaz e se apaixonar, mas o vampiro sentia que já era o suficiente, pois a mensagem havia sido clara: Sara havia escolhido aquela canção para falar dos próprios sentimentos, limitando-se às duas primeiras estrofes porque não conseguiria tocá-la por completo, depois de tanto tempo inerte.

― Desculpe, só posso lhe dar isso por enquanto – explica com um sorriso, dedilhando as últimas notas e encerrando a música pela metade.

― Foi belíssimo – elogia, estendendo a mão educadamente para ajudá-la a se levantar. – Como se sente?

― Bem. Achei que me sentiria triste ou nostálgica ao tocar o mesmo instrumento que minha mãe, mas me enganei. Não há como ficar triste quando se canta ou toca, independente da carga que esteja carregando. A música é libertadora!

― Vou me exceder se beijá-la novamente, aqui e agora? – questiona Cassis, colocando seu rosto a centímetros do dela.

― Num local tão exposto e com soldados? Certamente sim, mas estou começando a gostar desses excessos – ironiza, sentindo um arrepio na espinha ao senti-lo aproximar seus corpos e tomar os seus lábios mais uma vez.

Onde tudo começou, foi onde tudo se renovou. E ainda naquela noite, depois de seu último beijo em excesso, Sara finalmente trajou suas vestes nupciais, consumando não apenas uma aliança entre as duas espécies, mas o seu amor pelo não-vivo, amarrando-se a ele, assim como ele a ela, até o fim de suas existências.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado :D



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