Cassis (Série Alestia I) escrita por Jane Viesseli


Capítulo 10
Conferência




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Cassis chega ao pátio principal do castelo após uma rápida conferência com o rei, por volta das oito horas da manhã, segundo a posição do Sol. Como de costume, o vampiro trajava roupas em tonalidades escuras e com diferentes texturas, uma mistura de sua armadura leve com roupas comuns para fazê-lo parecer mais casual. Enquanto isso, a princesa, que já o esperava a uns bons minutos, tinha os cabelos presos numa trança e trajava um vestido verde com mangas longas, um modelo simples, porém de muita boa qualidade, numa inútil tentativa de não chamar tanta atenção e não parecer esnobe diante dos alestianos.

― Demorou muito! – resmunga ela, colocando as mãos na cintura e batendo a ponta de seu sapato no chão.

― Estava apenas garantindo que sua conferência exclusiva não será interrompida por meus afazeres políticos – explica.

Sara se acanha com a possibilidade de estar num “cortejo exclusivo” em vez de uma conferência e desvia seu olhar para longe de Cassis, mal percebendo o momento em que ele se colocou a observar seu longo vestido, prendendo-se rapidamente na corrente prateada que lhe rodeava o pescoço e cujo pingente se escondia em seu decote.

― Gosto desse vestido – comenta de repente, recusando-se a perguntar sobre o pingente para não ser acusado de olhar para onde não devia –, essa cor… Contrasta bem com seus cabelos.

― Obrigada! – agradece surpresa. – Pensei que vocês, vampiros, não gostassem de cores. Quero dizer, estão sempre de preto ou cinza, nunca poderia imaginar que um vestido como este pudesse lhe chamar a atenção.

― E não chamaria se não fosse você a usá-lo – confessa com naturalidade, fazendo o rosto de Sara pinicar de vergonha. – Tonalidades escuras nos ajudam a camuflar com a noite e, depois de algumas décadas de existência as usando, nós simplesmente nos desinteressamos das cores em geral. Mas esta cor fica bem em você, a deixa… Interessante!

― Onde estão os cavalos? – pergunta Sara embaraçada, tentando mudar de assunto e desviar o olhar de Cassis de se rosto.

― Iremos andando. O percurso é curto, mas tiraremos maior proveito de nossa conversa se formos a pé.

― E a escolta?

― Estará comigo, você certamente não precisará de escolta – explica ele, ignorando seu embaraço diante do elogio e oferecendo seu braço esquerdo.

A princesa acena positivamente com a cabeça, tocando o braço masculino de forma suave e elegante, deixando-se guiar em direção aos portões do castelo enquanto os soldados os observavam interessados.

Apesar de seu nome ser reconhecido entre os nobres, Sara não sabia dizer o que os alestianos pensavam dela. Todos sabiam de sua existência, é claro, ainda mais agora que se tornara a única herdeira do reino, mas o que de fato poderiam pensar de uma pessoa que nunca os visitou? Surgindo somente quando sua presença era estritamente obrigatória num cortejo real?

Pensando a este respeito, ela podia sentir suas atitudes pesarem sobre seus ombros e uma onda de responsabilidade a invadir. Era fácil ignorar a opinião do povo quando não estava destinada a ascender o trono, mas agora, ela reconhecia que precisava conquistá-los, precisava da confiança ou, pelo menos, da aprovação dos alestianos para reinar, ou uma terrível rebelião poderia acontecer no futuro.

Manter uma boa relação com os súditos sempre havia sido uma responsabilidade do rei, porém, seria pouco provável que um vampiro conseguisse a atenção ou a admiração dos mortais, o que depositava sobre ela todo esse encargo, tornando-a a primeira mulher da realeza a ser incumbida de fazer política.

Sua barriga se revira em expectativa ao ver os portões serem abertos e suas mãos começam a suar. O príncipe percebe sua mudança de postura e seus músculos ficando tensos, mas esperando que estivessem do lado de fora para perguntar:

― Sente-se bem?

― Sim, é claro! Por que não estaria? – rebate com certa aflição, fazendo Cassis analisá-la por alguns instantes antes de mudar de assunto.

― Então, considere sua reunião iniciada, Sara. Sobre o que gostaria de tratar? Tens direito a cinco perguntas e na sequência terei o mesmo tanto, assim poderemos tirar nossas dúvidas de uma forma bastante equilibrada.

― Ow, mal nos casamos e já está ditando as regras? – questiona, arqueando as sobrancelhas.

― Devo considerar esta a sua primeira pergunta? – questiona com um sorriso torto. Cassis não queria discutir, ao contrário, queria retornar a conversa civilizada do dia anterior e quem sabe, aprender algo a respeito dela.

― Não! – responde prontamente.

― Prossiga então, sou todo ouvido…

A caminhada em direção a Cidadela se inicia, enquanto Sara cogitava qual de suas dezenas de perguntas deveria fazer primeiro.

― Por que vampiros são tão brancos? – pergunta depois de um breve silêncio, fazendo o vampiro torcer a boca em desagrado.

― Esta é sua primeira pergunta? – duvida, recebendo dela um aceno positivo com a cabeça. – Não somos humanos, não temos a necessidade de manter nossos órgãos funcionando, então, os desligamos para que não consumam nossas reservas de vitae. Se o vitae não se espalha, não há coloração, e, portanto, ficamos com uma aparência mais pálida.

― Desligar órgãos? Isso é ridículo! – debocha. – É como dizer que você pode controlá-los e ninguém tem essa capacidade.

― Ninguém vivo tem essa capacidade, para os não-vivos esta é uma habilidade bastante natural.

― Você está inventando! – Acusa, cessando sua caminhada e o encarando frente a frente. A conversa mal havia começado e eles já estavam prestes a brigar.

― Não estou inventado – bufa, impaciente com sua descrença.

― Neste caso, por que seus lábios estavam quentes quando me beijou em nosso casamento?

― Estavam quentes porque eu os aqueci, bombeando sangue para o meu rosto – irrita-se.

― Não acredito! – retorqui Sara.

― Que droga, por que me pergunta coisas se não tem a intenção de acreditar em minhas respostas?

― O que está me dizendo é impossível, não posso acreditar que isso seja provável, é anormal.

― Eu não sou normal – esbraveja ele, agarrando o queixo da princesa de forma bruta e despejando sobre ela toda a frieza de sua pele, tentando provar o que dizia. – Entenda de uma vez, este sou eu… Não sou vivo, nem morto, muito menos morto-vivo. Sou um vampiro, um ceifador de vidas, um tomador de sangue e, por isso, um imortal sem qualquer aspecto caloroso ou humano.

Sara paralisa diante da frieza que a fazia se lembrar dos mortos, o que, consequentemente, lhe era algo ruim e assustador. Em sua inocência, chegou a pensar que o frio da pele pertencia apenas ao lado predador, mas agora entendia que aquele era Cassis de verdade, alguém que um dia foi um humano simples, mas que agora carregava a sina de um monstro.

Seu olhar assustado e semblante chocado pareceram ferir Cassis de alguma forma, desfazendo dentro de si a suposta “aceitação” que achava que estava recebendo da princesa. Gradualmente, o príncipe eleva a temperatura de sua pele, apenas para provar a veracidade de suas palavras.

― Eu não estou mentindo, nem sequer tento fazer chacota de sua inteligência. Minha espécie possui muitas coisas que a sua não compreende e não espero mais que aceite essas esquisitices com facilidade. – Suspira. – Naquele dia, aqueci meu corpo porque não queria assustá-la mais do que a morte de seu irmão a havia assustado. Este sou eu, no fim das contas, um monstro.

― Não! – rebate ela, os olhos inundados com uma mistura de tristeza e condolências. – Este não é você, não um monstro… Pode carregar uma fera dentro de si, mas você não é ela!

― Como pode saber disso se mal me conhece? – questiona, soltando lentamente o rosto de sua mulher.

― Eu o conheço o suficiente para saber que ainda existe humanidade em você, existe um homem por trás do vampiro que tenta aparentar frieza e dureza. Senão, por que motivo se preocuparia com o que eu pensaria de sua frieza? Ou da quantidade de sangue que precisa beber para se manter saciado? Por que mentiria para o rei sobre nossas núpcias? Ou respeitaria a decisão de uma humana, sabendo ser mais forte e podendo facilmente ter me tomado a força?

― Eu nunca faria tal coisa, Sara!

― Eu sei, é isso que o faz diferente do que diz ser.

― Entretanto, eu continuo sendo frio – lança com frustração.

― O aceitei com o rosto manchado de sangue, por que não o aceitaria agora? Posso estar um tanto surpresa no momento, mas tenho certeza que conseguirei conviver com seu toque gelado…

― Não terá muita dificuldade – a interrompe –, pois não conseguirei mais tocá-la da forma que fiz hoje, sem antes acalorar minhas mãos.

Cassis retoma sua caminhada lentamente, remoendo tudo o que lhe fora dito e sentindo um rebuliço dentro de seu peito. Ele precisava se controlar ou poderia perder o controle de seu corpo e corar involuntariamente, como em seu casamento, e ele não queria fazer isso na frente dela.

Sara estava se mostrando uma pessoa totalmente diferente do que pensava ser. Poderia ser de fato indelicada e tinha uma habilidade surpreendente de irritá-lo, contudo, naquele momento, ela parecia tão madura e empática com os sentimentos alheios, que parecia ter se tornado outra pessoa.

― Você é estranha.

― O que disse? – pergunta, o seguindo, percebendo logo em seguida que a frase não havia sido para ela, que Cassis estava apenas divagando.

Um breve sossego se seguiu, fazendo Sara perceber o quanto suas palavras o haviam afetado e pensar na forma com que o vinha tratando, como se ele não tivesse emoções, quando claramente demonstrava que tinha.

― Desculpe-me por tê-lo ofendido – pede ela, retirando o vampiro de seus próprios pensamentos.

― Ofendido? Quando?

― O tempo todo, a começar pela festa de noivado. Se minhas palavras o feriram de alguma forma, me perdoe, meu pai diz que tenho uma língua muito grande e por isso digo besteiras com muita frequência, mas acredite em mim quando digo que não tive a intenção real de magoá-lo.

― Eu acredito. Na verdade, jamais levei suas ofensas em consideração – confessa sorrindo. – Você tem quatro perguntas.

― Certo! – Sorri em resposta, aliviada pelo tom descontraído que a conversa voltara a ter. – Sir Thorkus é seu pai de verdade?

― Não, é meu criador, mas estive com ele por mais tempo do que com meu pai biológico. Ele assumiu a responsabilidade sobre mim e me disciplinou, por isso, tenho-o como um pai.

― Isso é bonito. Ele lhe ensinou alguma habilidade em especial? Quero dizer, além de conseguir andar durante o dia, quais são suas outras capacidades?

― Sei me comportar em batalha e numa sociedade aristocrática, lutar armado, exercer de meus músculos mais do que um humano conseguiria fazer e me locomover com uma rapidez bastante elevada… Isso a ajuda a me conhecer melhor? – pergunta confuso.

― É claro! Até o momento retirei o pior de você, mas agora, pude conhecer um pouco de suas qualidades. – Pausa. – Acha que pode me ensinar a lutar um dia?

― Certamente, não! Sua majestade nunca aprovaria – explica, fazendo a princesa revirar os olhos com o que sabia ser verdade, seu pai jamais lhe permitiria tocar numa espada. – Próxima pergunta, por favor.

― Você e Sir Thorkus se parecem em muitos sentidos, isso é uma coisa natural e despropositada, ou você realmente tenta ser igual a ele?

― Não é como se já não tivessem me interrogado a respeito, mas a grande senhora de Alestia está me saindo uma grande observadora. – elogia educadamente, fazendo a princesa estufar o peito de orgulho da própria capacidade de observação. – Em partes o parentesco é natural e em outras não. Todo vampiro tem tendência a adquirir as características do clã a que pertence, mas, por outro lado, parte de mim admira Lorde Thorkus de uma maneira irracional e tenta desesperadamente se igualar a ele.

― Por quê?

― Resumindo numa única frase: ele não tem pontos fracos! – explica com orgulho, os olhos brilhando levemente ao falar do homem a quem admira. – Ele nunca perde uma batalha, nunca hesita, nunca se descontrola emocionalmente, nunca é desrespeitado e, em todos os anos de minha existência, nunca o vi entrar em frenesi. Nunca conheci alguém como meu pai.

― Quantos “nuncas”. Tamanha veneração se deve ao caráter do tempo ou existe uma razão para existir? Ele lhe fez algo de que é extremamente grato?

― Esta seria sua última pergunta, mas não posso respondê-la – alerta, com o brilho em seu olhar desaparecendo de repente. Havia algo naquela parte da história que Cassis realmente não queria lhe contar, e apesar da curiosidade, Sara sentia que não seria bom pressioná-lo, não agora que finalmente pareciam ter uma conversa civilizada. – Próxima e última pergunta, por favor.

― Por que você não toma sangue humano?

Vitae, se quer continuar com este assunto, chame-o de vitae, por favor.

― Vitae, palavra em latim que significa vida. Sim, faz todo o sentido – comenta com interesse –, vocês precisam do sangue para sobreviver, por isso o chamam de vida… Interessante!

― Não sabia que falava latim.

― De certo, há muita coisa sobre mim que você não sabe, mas não fuja do assunto, você ainda não respondeu minha questão.

― Certo! – confirma, tentando conter a surpresa de sua descoberta, pois Sara estava se mostrando uma caixinha de surpresas naquela manhã. – O vitae humano é considerado um manjar pelos de minha espécie, o melhor e o mais saboroso, mas em prol da aliança, tivemos que cessar o hábito de bebê-lo ou vocês, humanos, nunca confiariam em nossas intenções.

― Entendo, mas deixar de tomá-lo não significa deixar de apreciá-lo, não é? Digo, por que não provou de meu sangue naquele momento?

― Porque não!

― Posso ser uma simples mortal e não conhecer muito de sua espécie, mas não sou ignorante, Cassis. Você estava no seu limite, não estava? Você queria, não queria? – insiste.

― O que está querendo saber exatamente, Sara? – rebate incomodado.

― Só quero entendê-lo, naquele momento você parecia querer me ferir, mas, repentinamente, mudou de ideia… – Pausa, a curiosidade exalando por seus poros. Sara queria saber suas motivações para aquele momento, queria saber o que ele pensava sobre ela.

― Você não faz ideia do quanto é bonita, faz? – pergunta, parando a caminhada pouco antes da entrada da Cidadela e a encarando. – Tem ideia do quanto sua pele cheira bem e de como mexe comigo? Acredite, eu quase entrei em condição de contemplação quando a avistei em seu vestido de noiva, sentindo-me capaz de admirá-la por longas horas, apesar desta não ser a característica comum de meu clã.

Sara, por meros segundos, havia se esquecido de como respirar. Já havia recebido elogios de pretendentes bem menos interessantes e até mesmo de Henrique, seu amigo de infância e príncipe de Aurora. Entretanto, nenhum dos antigos elogios lhe deixou sem fôlego como o que Cassis acabara de fazer.

― Precisei de muita força de vontade para resistir a você – continua ele, aproximando-se um passo e deixando a voz soar mais grave –, para não me render ao seu perfume e conseguir me afastar. Era como se o seu vitae chamasse pelo meu nome a cada segundo, Sara, e isso não pode ser encarado como um elogio, eu quase a feri, pois parte de mim realmente queria lhe provar.

A princesa fica perplexa, parte pelas palavras do vampiro e parte pela voz sensual com que se referia a ela e ao seu sangue. Algumas noites antes ele dissera que ela não era desejável e agora dizia o oposto, será que isso a tornava especial? Ou essa era uma declaração de “perigo, fique longe de mim”?

― Acredito que já tenha falado o bastante – encerra desconcertado, percebendo que havia revelado mais do que deveria sobre si mesmo e sua opinião sobre ela. –, ainda tenho cinco perguntas a lhe fazer.

Sara olha adiante, para a entrada da Cidadela onde algumas cabeças curiosas os observavam atentamente. O caminho entre o castelo e a cidade era único, sendo impossível transitar entre os dois lugares de qualquer outra forma e era isso que chamava a atenção dos aldeões.

― Quem são estes que vêm do castelo? – questionavam alguns. – Criados pessoais do próprio rei? – cogitavam outros, fazendo a princesa tremer levemente ao se dar conta de que eles não a reconheciam mais.

― Pergunta número um: do que você tem medo? – solta Cassis ali mesmo, tentando entender o que se passava na cabeça de Sara ao perceber que, mais uma vez, sua postura se tornara rígida e seus músculos mais tensos.

― Quer saber meu medo de toda uma vida ou deste momento? – questiona um tanto trêmula, mostrando que havia uma enorme diferença entre eles.

― Deste momento. – escolhe o vampiro.

― Tenho medo deles não me aceitarem – confessa, apontando a população da Cidadela com o olhar –, de não me reconhecerem como uma líder… Será difícil para você conquistar a confiança do povo, sendo um vampiro, mas eu sou um deles, uma humana, e sinto-me terrivelmente responsável por esta tarefa. E se eu falhar? Não quero que uma revolta se inicie porque não fui capaz de conquistar a aprovação do povo.

― Não será tão difícil, você está me fazendo mudar de ideia a seu respeito, garanto que fará o mesmo com eles, se é que pensam algo ruim de você. Em todo o caso, estarei ao seu lado o tempo todo, tenho certeza que não irão odiá-la mais do que a mim.

Sara analisa seu rosto atrás de um possível sinal de ressentimento quanto àquelas palavras, mas não encontra nada além de um sorriso torto, indicando se tratar de uma piada autodepreciativa. Cassis oferece seu braço novamente, finalmente guiando a princesa para o interior da Cidadela, onde os olhares automaticamente se voltam para o casal muito bem-vestido vindo do castelo.


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Notas finais do capítulo

Capítulo duplo para aumentar o divertimento nesse feriado :)



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