O Resgate da Rainha escrita por Nora


Capítulo 1
As Terras de Sigard




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/783347/chapter/1

O céu vespertino de Sigard era de tirar o fôlego. 

Do alto das montanhas rochosas, parecia possível ver-se toda a extensão do Novo Mundo e tudo isso em chamas. As cores jogadas sobre o horizonte, do sol majestoso que se punha, eram pinceladas dadas por um habilidoso mestre, tomando tudo que conhecia de perfeito e bonito em pequenos fragmentos de uma peça única. 

Das montanhas ou das grandes florestas, iniciando o seu outono — a época mais bonita para Sigard —, onde as folhas caíam secas sobre o chão. Com aquela coloração do crepúsculo, as mesmas pareciam vivas, não mortas. Tudo era consumido por tons calorosos e aquecidos.

Àquela era a hora que os aldeões recolhiam seus bens, fechavam seus negócios — ou abriam suas tabernas —, acendiam à lareira, davam um acalento ao fogo; um pão, um pouco de vinho, e murmuravam baixo para que o espírito de Egnias sempre estivesse presente. Que o grande espírito do fogo — naquele instante, provavelmente adormecido no seu Templo, acolhido por todas as suas sacerdotisas —, continuasse a prosperar sobre a alma da imponente família que levava seu nome. Que os Egnias mantivessem seu reinado, tão logo com um novo rei, desde que Nikolai, o antigo governante, caíra em sono profundo durante uma terrível tragédia que assolou não só o castelo de Egnias, mas todos os Cinco Grandes do Novo Mundo. 

Rei Nikolai sempre havia sido um bom homem, com um único filho Ryan, que nunca teve desejo de ascender ao trono. A sorte do legado de Egnias, era que Ryan teve um filho. Um filho homem, forte, poderoso como pedia sua linhagem. Heinrich não era apenas um guerreiro, mas era um diplomata. 

E a monarquia de Sigard caía-lhe como uma luva. 

Nas sombras de seu nascimento, no entanto, havia alguém. Não uma diplomata, mas uma guerreira. Seria absurdo dizer que a princesa Aurora, irmã gêmea de Heinrich, era ofuscada pelo irmão. Talvez, se a princesa de Egnias tivesse nascido como a maioria das outras princesas, contentando-se em fazer seu papel como uma quieta, resoluta e cálida senhorita; preparando-se a vida inteira para treinar o mínimo que podia de sua singularidade anciã, para no fim, tornar-se nada além do que uma parideira. 

Não. Não Aurora Katerina. 

A segunda na sucessão ao trono tinha nascido com o fogo sob à sua pele, consumindo até seus ossos. O mais volátil e perigoso dos elementos, criava uma cólera, nem sempre contida, na alma da princesa. Creia Aurora, que sua tão forte ligação com o elemento de origem de sua família, permitia e alimentava aquela coisa dentro dela. Uma fúria sem explicação. Um pouco de amargura, também. A coisa era como um monstro enjaulado; as grades que o impediam de irromper pareciam feitas da sua própria alma. A besta estava lá, o tempo inteiro, desde que se entendia por gente. 

Aurora, diferente da calmaria contagiante do irmão, era como uma tempestade incendiária. Embora não entendesse muito bem do que se tratava a criatura enjaulada, dentro dela mesma, aprendeu a ter uma convivência controlada com essa. Embora tal coisa nunca submergisse, ainda era o motivo dos ataques histéricos da princesa. Ainda mais, quando essa foi afogada durante longos meses. Nos meses da tragédia, onde Aurora foi uma das vítimas. 

Ela ainda podia sentir o cheiro e o frio do calabouço, e como aquele veneno entrenhava-se sobre as suas veias, apagando-lhe o poder do sangue, transformando-a em... nada. Naqueles dias, naqueles longos meses, a criatura sobre a sua pele tinha adormecido junto ao veneno. E, finalmente, quando despertou, não era apenas furiosa. 

Era soturna, melancólica. 

E Aurora percebeu que conviver consigo mesma, era angustiante. 

Mas, como nunca esteve no enredo de sua vida fazer-se de vítima pelos percalços, ela dava um jeito. O jeito no caso havia sido — desde sempre — recusar os vestidos rendados e colocar-se dentro de calças. Sobre as suas botas gastas e com um bom pedaço de aço forjado sobre as mãos. Aurora. A única princesa de Egnias — a qual diversos reis morreriam para ter a honra de casar-se —, estava longe de desejar isso. Tudo que Aurora queria, tudo que Aurora desejava fervorosamente, era abafar o som da besta. Era acalentar um pouco, o terror que vivia sob sua pele. 

Por isso, a primeira companhia da princesa, era sempre o aço. 

Sir Ludovin, Mestre da Fornalha, que controlava todo o desenvolvimento de armas e armaduras do castelo, não apenas forjava, mas fazia primorosas obras-primas. A mais nova dupla delas estavam sobre as mãos de Aurora; duas adagas de arremesso, com um equilíbrio tão perfeito que fazia os olhos da princesa vibrarem. A lâmina longa, era fina, mas não quebrável. O cabo estava enrolado por couro macio, fazia o toque firme. Se fosse o caso, talvez pudesse usá-lo para mais do que apenas arremesso; não que nos tempos monótonos que pairavam sobre o Novo Mundo, ela tivesse realmente motivo para fazê-lo. 

Se pelo menos deixassem com que ela acompanhasse a patrulha para caçar as criaturas na floresta... diziam que eram monstros terríveis, beirando ao mitológico — a princesa tinha ouvido, certa vez, que apareciam em fendas da Magia e, que os espíritos os dessem força, sequer eram desse mundo. 

Por hora, claramente, aquilo tudo se colocava apenas nos pensamentos da princesa. E, no momento, tudo que podia fazer com as adagas era, de fato, usá-las para arremesso. 

Antes que pudesse fazer um volteio com a mão e mirá-la na árvore apenas por diversão, algo anunciou a sua presença. Os passos sobre as folhas secas eram inegáveis. 

O corpo de Aurora girou, e ela mirou em outra árvore, ao norte. 

Apareça, criatura abominável — murmurou, os olhos azuis-acinzentados cheios de malícia. 

O príncipe, futuro rei, revelou-se detrás das árvores. Ele soltou um assobio baixo quando precisou jogar o corpo para o lado — uma vez que Aurora tinha lhe arremessado outra adaga; não tinha a intenção de machucar o irmão, apenas de deixar aquela capa, vertiginosamente vergonhosa, pregada sobre a árvore. 

Tinha dado certo. O irmão revirou os olhos enquanto Aurora cruzava os braços. 

— Você está perdendo o começo da festa — Aurora só percebeu que o irmão carregava algo, quando ele passou um livro de aparência antiga para a mão canhota e usou a destra para se livrar da adaga. — Isso sim é um equilíbrio perfeito. 

A festa, é claro. O início das comemorações para a coroação que aconteceria dentro de uma semana. Uma semana. Os convidados estavam chegando naquela noite e, era óbvio, que os primeiros tinham vindo de Rohen e Corvíria. A lembrança fez Aurora franzir o cenho. Manteve o seu olhar sobre a perfeição em cores quentes que eram as roupas do irmão. Os ombros largos ainda mais presentes por conta das ombreiras de bronze, com o símbolo do dragão. 

Heinrich ainda analisava a adaga com atenção. 

— Você veio me chamar? Não podia mandar o menino de recados? 

— Vim ver o que você estava fazendo — ele virou os olhos azuis para Aurora. 

— Eu estava meditando. 

Heinrich deu uma risada anasalada, jogando a adaga para Aurora de forma plana. A princesa segurou-lhe o punho sem dificuldade, acoplando ambas adagas sobre o cinto em sua cintura. A princesa passou os dedos pelos longos cabelos esbranquiçados, prendendo-os severamente para cima com um elástico que carregava sobre o pulso. Aurora deu um profundo olhar resignado para o irmão, por conta da risada. 

— Aprendi algo sobre meditação enquanto estivesse no Templo de Egnias e nenhuma das sacerdotisas me mencionou algo sobre armas...

— Eu só posso imaginar o que as sacerdotisas mencionaram a você — a maneira como Aurora falou era quase vulgar. Sua avó teria a repreendido na hora se ouvisse algo daquele tom. 

Aurora caminhou até o irmão. Heinrich parecia resplandecer em competição eterna com o Astro Rei. A princesa estendeu a mão para puxar o livro que ele carregava — agora curiosa, parecia realmente antigo —, e recebeu em troca um tapa sobre a mão. 

Com violência. 

— Ei! — retrucou, os lábios franzidos. 

— É sobre isso aqui mesmo que quero falar com você. 

— Achei que estava tentando me levar para a festa. 

— Se eu levar você lá para dentro nessas condições, a grandiosa senhora, nossa avó, vai arrastar você para fora do castelo. Tem... folha nos seus cabelos e a sua camisa está imunda — ele não se deteve enquanto Aurora fazia uma careta. — Mas, o livro. O livro. Acredita que eu o comprei em Rohen? Há alguns meses? Não tive tempo de olhar até que sonhei que o olhava.

Foi a vez de Aurora rir. 

— Você e as suas misticidades. Não me surpreende que esteja sempre frequentando Templos. 

— Você, sempre cética — Heinrich anuiu a cabeça, em descrença. — Mas, você vai ficar boquiaberta quando ler o que tem aqui. Quando eu lhe contar o que descobri fora disso. E por uma pechincha, juro. Paguei menos de três moedas de bronze. 

— Certo, me dê isso aqui logo — Aurora grunhiu, a curiosidade a consumindo. 

A princesa retirou o livro das mãos do irmão e começou uma caminhada para que ele não a interrompesse. O crepúsculo já deixava o horizonte e, logo mais, estaria tão escuro na floresta que não seria possível enxergar um palmo à frente. As noites em Sigard não eram tão escuras quanto em Covíria, entretanto, Aurora não tinha a singularidade deles para enxergar no mais completo breu. 

Os passos atrás de si anunciaram que Heinrich a seguia. Não tentou tirar o livro dela e, ficou um pouco para trás, na caminhada, transpirando aquela ansiedade para que ela desvendasse ou falasse qualquer coisa sobre, enquanto folheava as páginas amareladas. 

Aurora o fez e refez. Mas tudo que tinha era um monte de mapas que ela não conseguia ler. Provavelmente, algo do Velho Mundo. Aquela mesma terra em outro formato. Por fim, tudo que fez foi atirar o livro sobre o ombro, sem se importar com o irmão que se atrapalhou para pegá-lo no ar, reagindo como se ela tivesse atirado um bebê sobre os ares. 

— Você está louca!?

— Não vi nada que me interessa. 

— Pois me interessa. E se você sonha, em algum dia num futuro próximo, tentar uma vaga no Exército para, mais tarde, ser minha Imediata, então bem, acho que deveria importar para você também. 

Aurora parou bruscamente, virando para encarar o irmão. 

De onde estavam, já podia ouvir as risadas, a música e ver as serpentinas em chamas, por todos os lados, nas tendas altas dos jardins. 

— Esse lugar, não é o Velho Mundo — Heinrich disse, voltando àquele tom de ansiedade, os olhos animados no principio de escuridão noturna. — Também achei que fosse, quando o vi, mas não é. Os gráficos... não fazem sentido. Por que esse parece o Novo Mundo. Isso aqui parece Sigard. 

Heinrich se interrompeu, esperando que a irmã demonstrasse qualquer coisa além de indiferença. Ele revirou os olhos e então continuou. 

Isso aqui está embaixo de Sigard! — Houve um lampejo, apenas um pequeno lampejo, mas ela estava desacreditada. — Eu só preciso saber como chegar lá, eu vou descobrir. E quando o fizer, você irá numa missão de reconhecimento. Imagine? Você, deixo-a escolher quem vai lhe acompanhar, um grupo pequeno. Vá, em sua primeira missão oficial, uma missão que você pode comandar. 

Agora Heinrich tinha usado todas as palavras certas. 

— Queria ter um papel e uma pena para fazer você assinar todas essas suas palavras — Aurora disse, fazendo o irmão rir. Ela arrumou a lapela da vestimenta dele; o monstro controlado dentro de si, com a perspectiva de um pouco de emoção. — Você será rei, não responderá a vovó. Você vai poder me mandar sair em missão. Pela minha coroa, eu acho que vou chorar. 

Heinrich riu outra vez, emparelhando com a irmã e começando a caminhar, esperando que ela o acompanhasse. Agora era uma dupla animada, em sincronia, ambos ansiosos. 

— Ainda é segredo, temos mais uma semana. Mas, prometo, essa missão vai mudar a sua vida. E se eu estiver certo, sobre tudo o que há aqui nesse livro, nós estamos próximos de algo inimaginável. 

Mesmo que uma pequena parte sua achasse que o irmão estava delirando, só a ideia de deixar um pouco o castelo e ir a algum lugar, já era boa o suficiente. Quiçá, as fantasias de Heinrich dessem certo e, imagine só, apenas imagine, que ela estivesse em uma real missão. Algo de vida e morte; algo que lhe desse uma história lendária? E Aurora já podia ver-se, desembainhando uma espada, no meio de um vórtice de fogo, lutando contra um inimigo épico. E quando voltasse, seria saudada como uma guerreira, fariam canções e poemas sobre ela.

— Você está sorrindo — Heinrich murmurou, tirando-a de seus devaneios quando chegaram próximos à uma cerca viva, a tenda e todas as pessoas, a poucos passos de distância. — No que você está pensando? 

— Nada. Eu vou me trocar — a princesa disse, abaixando-se quando a avó, Aleksandra, passou perigosamente próximo de onde estavam escondidos. 

Acenou para o irmão, sem conter um sorrisinho enquanto se içava entre os arbustos, tentando passar despercebida. 

Ela mal conseguia respirar, ou preocupar-se em passar horas sobre sapatos apertados e vestidos desconfortáveis — sua mente estava criando histórias. Histórias mirabolantes. De lendas que eram contadas ou lendas que eram esquecidas. Das que iam às cinzas, ou das que ascendiam e brilhavam como ouro.

Mas Aurora, Aurora Katerina, faria com que todos soubessem o seu nome. 

E lembrassem-se dela por séculos. 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Resgate da Rainha" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.