Sob o Olhar de Notre Dame escrita por Lily the Kira


Capítulo 2
O Festival dos Tolos


Notas iniciais do capítulo

Oi, leitor! Obrigada por chegar até aqui!

Só tenho uma coisa a dizer: É aqui que as coisas começam e, bem... esquentar. Você já vai entender.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/781716/chapter/2

Quase vinte anos se passaram desde que Quasímoda fora adotada por madame Frollo. Vinte anos em que a pequena menininha transformara-se em uma jovem, que agora era a sineira de Notre Dame. E vinte anos em que a jovem filha do ministro Frollo tornara-se ela mesma uma juíza, como o seu pai um dia foi. 

Quasímoda olhava para fora, para a praça em frente à catedral de Notre Dame, onde uma grande movimentação de pessoas ocorria. Bandeiras coloridas eram penduradas aqui e ali, estrados e palcos eram armados e centenas de lindos adornos, tecidos coloridos, mesas destinadas a variadas guloseimas e uma variedade enorme de coisas lindas e chamativas tomavam seu lugar para formar o cenário perfeito para o evento mais esperado do ano: o Festival dos Tolos.

Esse ano alguma coisa diferente estava acontecendo. Fazia uma semana que vários ciganos anunciavam o festival daquele ano e, pelo que diziam, seria algo diferente e muito especial. Quasímoda estava curiosa, queria muito descobrir o que eles planejavam de diferente e, a cada dia que passava, sua expectativa e ansiedade aumentavam.

Assim que raiou o sol no dia do Festival dos Tolos, ela se levantou animada, repicou os sinos como de costume mas pela primeira vez em anos seu amor pelos seus queridos sinos estava em segundo plano: a curiosidade a respeito do Festival dos Tolos ocupava sua mente de tal maneira que ela não prestava atenção em mais nada.

— Se eu pedir, será que madame Frollo me leva até o festival? – Quasímoda questionou o arquidiácono, esperançosa.

— Filha, ela sempre avisou que era perigoso sair lá fora. Sinceramente, creio que ela não concordará com isso. – o religioso respondeu, ciente de que a ministra jamais teria coragem de expor sua afilhada aos olhares e comentários maldosos das pessoas.

— Mas eles não fariam nada comigo se ela estiver por perto, não é? – a jovem ainda tentou argumentar, mas o arquidiácono não mostrou muita esperança.

— Fale com ela se quiser, filha, mas não tenha muita esperança. Sua madrinha se preocupa demais com você para arriscar que algo lhe aconteça.

Quasímoda, ainda com certa esperança de que talvez pudesse sair de casa para ver o festival, foi até seu quarto e colocou um vestido novo e arrumou os longos cabelos ruivos o melhor que podia. Olhando-se no espelho, contemplou por uns instantes seu próprio reflexo, e uma jovem de rosto oval, pele clara coberta de pequenas sardas, olhos azuis vivos e uma volumosa corcunda olhou de volta para ela, e sua animação morreu.

Não, ela não era realmente bonita. A verruga sobre seu olho esquerdo era enorme, tornava seus olhos díspares, e aquelas sardas faziam com que ela parecesse sempre salpicada de terra. Seus dentes da frente eram grandes demais, seus lábios finos demais e seu nariz era um pouco esborrachado, não combinava com seus outros traços. E aquela corcunda enorme retirava a graça de qualquer vestido que usasse. Nada lhe caía bem e, mesmo sem aquela corcunda, seu corpo era desproporcional.

— Por que eu tive que nascer assim? – ela sentou-se na cama e ficou ali, cabisbaixa. Madame Frollo sempre dizia que ela precisava ser grata pelo que tinha, pois havia gente em situação pior que a dela, e que a auto piedade era uma armadilha maligna para fazer boas almas caírem na escuridão, mas a garota não conseguiu seguir esse conselho naquele momento.

Quasímoda debruçou-se sobre o parapeito de pedras e olhou desanimada para o povo que já começava a chegar. Pareciam tão felizes, tão empolgados, tão gentis. Será que todos seriam realmente maus com ela? Será que a madrinha estava realmente certa sobre eles?

Sua madrinha, porém, sabia das coisas e Quasímoda estalou a língua, irritada por se permitir uma pontada de esperança tão vã. No fim, a garota desistiu de olhar a praça e voltou para dentro, decidida a retornar a seu lugar somente quando o Festival dos Tolos começasse.

Enquanto caminhava lentamente até sua mesa, onde trabalhava em um modelo em miniatura de Notre Dame, Quasímoda escutou passos delicados soarem nas escadas que davam acesso ao cômodo. Madame Frollo estava vindo, e a garota tratou de empurrar a frustração para longe. Não gostava de receber sua madrinha com a cara fechada.

— Bom dia, minha querida. – Claudia entrou no amplo cômodo carregando uma cesta de vime, cumprimentando a afilhada com um sorriso bondoso no rosto. Os cabelos de um dourado claro estavam presos em um elegante penteado, o vestido de veludo negro e o manto do mesmo tecido pareciam não ter sequer uma dobra fora do lugar. A austeridade era sua marca registrada, visível em seus olhos cinzentos, em seus traços finos, em sua expressão sempre séria. Nada, a não ser as linhas de expressão em seu rosto e a sabedoria dos anos, mudara em Claudia. A não ser seu amor pela afilhada, que crescera e se tornara a única coisa capaz de iluminar aquele rosto pétreo.

— Bom dia, madrinha! – Quasímoda respondeu indo até madame Frollo e beijando respeitosamente sua mão enquanto pedia bênção – Como a senhora está?

— Vou bem, filha, embora o dia hoje prometa ser bastante cansativo. – Claudia respondeu, um pouco contrariada, mas sem abandonar a ternura na voz – Por isso estou aqui, para permanecer um pouco com minha afilhada enquanto desfruto da salutar serenidade de Notre Dame antes de descer até a agitação e o caos desse tal Festival dos Tolos.

Quasímoda notou o descontentamento da madrinha e pensou, por um momento, em perguntar a ela se, quem sabe, sua companhia não aliviaria o tédio e o dissabor de permanecer um dia inteiro na praça, porém a ideia morreu assim que Claudia prosseguiu:

— Sorte sua estar aqui, filha. Fico imensamente feliz quando penso que você não precisa se colocar em tal situação e que pode acompanhar tudo daqui, sem se incomodar com nada.

Quasímoda sorriu em resposta, porém não sentiu que seu sorriso foi convincente, e teve certeza disso quando notou que os olhos cinzentos de madame Frollo estreitaram-se em uma expressão desconfiada.

— Algum problema, Quasímoda? – a pergunta simples fez com que uma pedra de gelo descesse ao estômago da garota.

— Não, madrinha, claro que não. – ela não foi nada convincente e Claudia inclinou levemente a cabeça, estudando a afilhada com total atenção. Quasímoda, sabendo que não era boa em disfarçar ou esconder qualquer coisa de quem quer que fosse, suspirou, vencida, e decidiu contar a verdade - É só que, pela primeira vez na vida, eu gostaria muito de descer para ver o festival de perto, mesmo que por um instante. – ela começou timidamente, sem muita coragem de encarar a madrinha enquanto falava -  Eu sei que a senhora sempre diz que as pessoas serão cruéis comigo se eu descer mas... bem, quem ousaria me fazer algum mal com a senhora por perto?

— Filha. – o tom de Claudia era categórico – Eu já lhe disse o que penso desse festival. É apenas uma festa mundana, cheia de bêbados e baderneiros, de confusão e sem qualquer coisa interessante para se ver. Além disso, jamais arriscarei sua segurança levando-a até lá, ainda mais em um dia em que os ânimos estarão exaltados.

— Mas a senhora estará lá e...

— Quasímoda, eu disse não, filha. -  Claudia encerrou a conversa em um tom que não abriu qualquer margem para argumentações – Estar comigo não impedirá as pessoas de falarem pelas suas costas, e muitos ali a essa altura provavelmente já estão tão bêbados que, mesmo que me vejam, não controlarão a língua. Você fica aqui, a salvo, e nunca mais me peça tal coisa.

— Sim, senhora. – a garota concordou finalmente, tristonha e sem coragem, desistindo finalmente de seu sonho e acatando a decisão da madrinha enquanto repetia para si mesma mentalmente que ela estava certa e que seria uma tolice deixar a segurança de seu lar.

Claudia, notando a tristeza da afilhada, levantou-se e a abraçou carinhosamente – Eu sei que é triste, mas acredite em mim quando digo que é muito melhor para você. Então que tal comer alguma coisa e esquecer essa história? Nada como um bom desjejum para desanuviar a mente, não?

Ambas comeram em silêncio e Quasímoda lutava para deixar de lado a tristeza e a frustração. A proibição da madrinha era fundamentada e não valia a pena preencher a mente com os vários “mas” e “e se...” que insistiam em aparecer. Claudia estava certa e ela não devia ir lá embaixo, ponto final.

Mas quando a ministra deixou a catedral, um pensamento repentino cortou a mente de Quasímoda, que ficou apavorada assim que o percebeu: e se ela descesse lá sem a madrinha saber?

Durante seus vinte anos de vida a garota foi absolutamente obediente em tudo. Ela nunca ousou discutir ou desobedecer pois amava tanto a madrinha que seria uma dor imensa encarar sua ira ou causar nela qualquer desgosto. Quasímoda nunca ousou sequer cogitar a possibilidade de descumprir uma ordem ou recomendação e a mera menção disso seria suficiente para repugná-la... até aquele momento, onde uma verdadeira cacofonia começou a soar em sua mente e ela sentiu-se jogada em uma verdadeira guerra

“Ela não saberia”

“Mas poderia me ver facilmente!”

“É só por um minuto, depois eu volto para cá!”

“Mas e se alguma coisa acontecer?”

“Fico em um lugar discreto, coberta com minha capa, ninguém vai me ver, posso descer pela lateral da catedral e ficar quietinha, nada de mau pode acontecer!”

“Mas se ela souber, vai ficar decepcionada e furiosa comigo! Não, eu não vou!”

Quasímoda encerrou aquela discussão interna e concentrou-se em continuar a trabalhar no modelo de Notre Dame. Mas os pensamentos não paravam de incomodá-la.

“É um dia só, eu mereço ao menos um dia lá fora!”

“Se eu tivesse ao menos um dia, nunca mais pediria nada, viveria feliz, seria suficiente!”

“Só queria, ao menos uma vez na vida, ser alguém comum. Será que hoje não poderia ser esse dia?”

“Mas eu não sou comum, e todos sabemos disso! Não adianta, não posso ir!”

Irritada, a garota afastou-se da mesa de trabalho e encarou o vazio. Andando de um lado para o outro, ela procurava silenciar a mente e acabar com aquela guerra interna mas o desejo de sair da catedral, ao menos por uma vez, não a deixava em paz.

— Não posso fazer isso! Seria loucura, e madame Frollo me veria! E o que eu diria para ela então? Como eu a encararia depois de desobedecê-la? Mas em compensação...

Um coro de trompas ecoou na praça e uma onda de vivas ergueu-se da multidão em festa. O Festival dos Tolos estava começando. Quasímoda imediatamente correu para seu lugar na varanda e viu que um coral de ciganos abria as festividades cantando uma canção grandiosa e alegre, acompanhada das trompas e dos vivas da multidão. Aquilo era novo, maravilhoso, mágico! A abertura do Festival dos Tolos encantou a todos, e até madame Frollo, em seu estrado em um canto da praça, ficou surpresa com aquele número inesperado e apoteótico.

Quasímoda, tomada pelo encanto daquela música, sentiu mais forte do que nunca o desejo de descer para ver aquilo de perto. Olhando para onde estava a madrinha, ela logo percebeu que havia um canto da praça de onde madame Frollo não conseguiria vê-la e isso a animou.

Quando viu, Quasímoda estava correndo para fora da torre. Desceu discretamente as escadas, acessou uma das portas laterais da catedral e, pela primeira vez em toda a sua vida, pisou na praça apinhada de gente. Seu capuz cobria parte de seu rosto, um manto disfarçava a corcunda volumosa e ela sentia-se segura em meio a uma população totalmente absorta e fascinada pelos ciganos cantores.

Estar ali era maravilhoso. Quasímoda sentia o perfume das damas, ouvia as vozes sonoras dos cavalheiros, sentia o calor do sol e a brisa fresca da manhã. Era maravilhoso ver de perto as pessoas que ela apenas podia contemplar de longe, do alto de sua torre. Era encantador poder ouvir suas vozes, contemplar com detalhes seus rostos, as roupas que usavam, seus movimentos e trejeitos. E não só isso, ela podia ver também a catedral que tanto amava sob outro ângulo. Notre Dame, vista de fora, era a coisa mais magnífica que Quasímoda já havia visto. Seu modelo precisava urgentemente de uma atualização, pois o original era muito mais fascinante do que a garota podia conceber.

Alegre e despreocupada, Quasímoda se aproximou de um dos palcos, misturada com a população que não a notava enquanto, por precaução, deu uma olhada para os lados de madame Frollo, suspirando aliviada ao ver que, de onde estava, a madrinha realmente não poderia vê-la.

Distraída como estava e andando agora mais rápido e com mais seguraça, Quasímoda, de repente, chocou-se com alguma coisa ou alguém e a força do impacto quase a derrubou.

— Desculpe! Sinto muito por isso! – ela apressou-se a pedir desculpas e a ver o que ela havia atingido. Era um rapaz, um cigano mais ou menos de sua idade de pele morena, cabelos negros como a noite e olhos de um tom tão vivo de verde que não pareciam ser olhos humanos. O rapaz era lindo, encantador, e quando Quasímoda se desculpou, ele sorriu.

— Não tem problema, está tudo bem. Mas e você? Se machucou? – ele encarou a garota com aqueles olhos encantadores e ela não conseguiu responder. Seu coração estava acelerado e os pensamentos em total desordem,

— Eu... err, eu estou sim, claro, por que não estaria? – foi tudo o que Quasímoda conseguiu dizer e o rapaz sorriu ainda mais.

— Que bom! Mas tome mais cuidado, mademoiselle. Não queremos acidentes em nosso festival, não é? A propósito, estava indo para perto daquele palco? Deixe que eu a levo.

Quasímoda se deixou levar pelo rapaz exatamente para o local onde o cigano apontara. Quando a deixou, o rapaz piscou para ela e disse algo que ela não entendeu, tamanha era a fascinação que ele lhe despertou.

E durante um bom tempo a garota não conseguiu esquecer aquele jovem e nem o fato de que ele não demonstrou qualquer reação desagradável a sua aparência quando olhou para ela. Pelo contrário, ele foi gentil, mesmo sendo uma pessoa comum e, mais ainda, um cigano. O que será que madame Frollo diria se soubesse disso? Será que ela gostaria de saber que nem todas as pessoas seriam cruéis como ela imaginava?

Em contrapartida, Claudia, de seu lugar, encarava a tudo com um tédio mortal e não havia quem não notasse seu mau humor. A ministra estava tão azeda que era difícil para quem a encarava não se sentir incomodado. Em um dia lindo como aquele era um crime alguém permanecer tão mal humorado, mas todos ouviram o suficiente sobre a ministra para saber que, no caso dela, esse comportamento era comum. Não que Claudia fosse sempre desagradável, mas era fato que ela detestava estar próxima de muita gente, a cacofonia a irritava e a aglomeração de pessoas, como formigas em um formigueiro, a deixava visivelmente incomodada.

— Ainda resta um dia inteiro. Misericórdia de mim. – a ministra comentou baixinho, fechando os olhos e procurando manter a custo a paciência e a compostura.

“Posso ir para casa, dizer que não me sinto bem. Que mal há nisso?”, ela pensou, por um momento o mau humor a deixou mas outro lado de sua mente gritou em protesto: “Isso seria uma mentira e você tem um dever a cumprir!” A discussão interna cessou na mesma hora e Claudia, resignada, suspirou e apenas olhou para frente.

Logo em frente ao estrado da ministra, Clopin, o rei cigano, trajado de forma vistosa como um bobo-da-corte e ocultando o rosto em uma máscara típica dos carnavais de Veneza, subiu ao palco para anunciar a próxima atração.

— E com vocês, senhoras e senhores, o maior dançarino que esta cidade já viu! Tenho a honra de lhes apresentar monsieur Esmeraldo!

Todos aplaudiram freneticamente e ficaram estupefatos quando uma novem de fumaça cor de vinho espalhou-se pelo palco, e dela surgiu um rapaz alto, esguio, ágil e belo como nunca antes aquele povo havia visto. Ele dançava ao som de um pandeiro e seus movimentos enérgicos e seus vigorosos passos de sapateado eram hipnotizantes. Ele rodopiava, saltava, sapateava com energia e graça e muitas moças suspiravam quando olhavam para seus olhos, que faziam jus a seu nome. Quasímoda reconheceu imediatamente o belo cigano que a ajudara a chegar em seu lugar, que fora tão gentil com ela e não se preocupara com sua aparência. Esmeraldo agora parecia a ela mais encantador do que nunca.

Claudia, ao ver aquele rapaz quase irreal, tomou um grande susto. Aquela visão seria suficiente para enfeitiçá-la e ela, que sempre temeu os encantos dos ciganos, usou um velho truque que funcionara até então: desviar os olhos e manter a frieza, repetindo para si mesma que aquilo era um espetáculo extremamente repugnante.

O problema é que Esmeraldo reparou na reação de Claudia e sentiu-se desafiado por sua indiferença. Com um salto elegante de pantera, em um segundo estava no estrado ao lado dela, que tomou outro grande susto quanto ele pousou com leveza e a encarou. Não contente com isso, o cigano colocou uma echarpe de tecido fino e sedoso no pescoço de Claudia, bordada com várias luas e estrelas douradas, enquanto a pegava pela mão, a rodopiava em um passo enérgico e, quando ela perdeu o equilíbrio devido ao choque e ao movimento repentino, ele a amparou com um abraço forte, fazendo questão de olhar diretamente em seus olhos cinzentos. Todos ao redor ou riram da cena ou prenderam a respiração por causa daquela tremenda ousadia.

Então Claudia, sem ter agora para onde fugir, foi forçada a encarar Esmeraldo, que sorria para ela e a encarava de volta com o olhar em chamas. Assim que bateu os olhos nele, a juíza perdeu o ar e seu coração acelerou quando ele a soltou e beijou galantemente sua mão antes de desaparecer em uma outra pirueta. A beleza de Esmeraldo, sua ousadia e o conato tão próximo com ele foram suficientes para que ela se sentisse perturbada ao extremo e de uma forma que nunca antes se permitiu estar. E não somente perturbada: um fogo violento se acendeu dentro dela.

Mas assim que percebeu o que aconteceu, o que aquele cigano havia causado nela, uma ira tremenda despertou tão forte quanto a paixão repentina e Claudia fechou o punho encarando Esmeraldo com um olhar assassino.  “Bruxo desgraçado! Ele não tinha esse direito!”

Mas apesar da ira crescente, Claudia não conseguia tirar os olhos do feiticeiro cigano. Enquanto Esmeraldo não parou de dançar, ela não desviou o olhar e amaldiçoou-se por essa fraqueza. Mas era impossível não olhar. Dessa vez era impossível fugir do que sentia ou do que poderia sentir. Esmeraldo a conquistara.

Assim que a apresentação do cigano terminou, Claudia suspirou aliviada e quase aceitou a sugestão que surgiu em sua mente para se retirar do local alegando mal estar. Ela só não fez isso pois seria o mesmo que admitir para todos os presentes, que viram claramente aquela cena, que ela se deixara impressionar ou pior, enfeitiçar. Frustrada, a ministra desistiu de fazer qualquer coisa e apenas se deixou ficar ali sentada, lutando bravamente contra seus instintos mas sem qualquer resultado.

Quando a ministra menos esperava, um novo golpe a atingiu em cheio. Alguém chamava o nome de sua afilhada e Claudia, alheia como estava, demorou um segundo para entender o que estava acontecendo até olhar para o palco à sua frente, onde ninguém menos que Quasímoda em pessoa estava de pé, vestida com roupas coloridas e um arremedo de coroa real em sua cabeça.

— Viva a Rainha dos Tolos! Viva Quasímoda, A Corcunda de Notre Dame! – Clopin anunciava em altos brados para uma plateia delirante enquanto conduzia a garota a uma espécie de liteira sustentada por vários cidadãos corpulentos.

— Quasímoda! Quasímoda! – o povo aplaudia freneticamente, gritava e sorria enquanto a garota olhava para todos aqueles rostos cheia de alegria. Emocionada como estava desde que chegara à praça, o motivo de sua coroação lhe passou totalmente despercebido mas isso não a incomodou. Pela primeira vez em sua vida, a garota recebera a atenção e o carinho que sempre quis, e era isso que importava.

A garota estava tão encantada e tão absorta em seu momento de glória que esqueceu-se até mesmo de que sua madrinha ainda estava lá. Já Claudia, observava aquela cena com um misto de choque, tristeza, decepção e uma raiva cada vez maior.

— Ela me desobedeceu! Como pôde? – a juíza disse em um sussurro enquanto se levantava de seu assento pronta para acabar com aquela palhaçada no mesmo instante. Enquanto isso, os foliões levavam Quasímoda para o centro do palco principal e continuavam a saudá-la alegremente.

Nesse momento, Esmeraldo aproximou-se da garota e, com um gesto galante, entregou-lhe um cetro colorido e lhe colocou um manto púrpura. A jovem, ao encarar novamente aqueles olhos vivos e brilhantes, sorriu, encantada e seus próprios olhos reluziram com um brilho nunca antes visto.  Aquele olhar foi o suficiente para que Claudia chegasse ao ápice de sua ira.

“Não! Minha afilhada NÃO, seu demônio!” A juíza finalmente ergueu-se do seu assento, seus grandes olhos cinzentos faiscando com uma fúria tão poderosa quanto um maremoto, os punhos cerrados, uma palidez mortal.

— Você! Cigano! Afaste-se dela! – sua voz soou tão alta e poderosa que, pouco a pouco o silêncio caiu pesadamente na praça quanto mais as pessoas reparavam na juíza e percebiam a fúria que emanava dela – Quasímoda! Desça daí agora mesmo!

Esmeraldo encarou Claudia com uma expressão confusa.

— O que foi que eu fiz? E o que foi que ela fez? – ele respondeu olhando nos olhos da juíza – Isso tudo é parte do Festival dos Tolos! O que há de errado, meritíssima?

— Saia! Agora! Obedeça! – Claudia praticamente cuspiu cada uma das palavras enquanto abria caminho pela população apavorada e ia até o palco onde Quasímoda e Esmeraldo estavam.

— Eu... – Quasímoda balbuciou apavorada enquanto tirava apressadamente o manto, a coroa e o cetro e esforçava-se para chegar às escadas de madeira e ir até a madrinha. Seu corpo estava tão rígido que, quando ela pisou nos primeiros degraus, tropeçou e caiu. Os foliões riram e Esmeraldo apressou-se em ajudá-la mas Claudia o impediu com um gesto brusco enquanto voltava-se para os presentes que riram de sua afilhada.

— Silêncio! – ela ordenou severamente e os que riram se encolheram e se calaram no mesmo segundo. Vendo a afilhada no chão, a ministra simplesmente apontou para Notre Dame, sem ajudá-la a se erguer – Para lá! Agora!

A garota não respondeu, apenas se levantou cambaleando e correu desajeitadamente em direção à catedral, tropeçou nos degraus, agarrou-se a uma das portas e entrou batendo-a atrás de si. O remorso queimava como brasa e as lágrimas rolavam em meio a um choro convulsivo.

Quando viu que Quasímoda retornava para a segurança de sua casa, Claudia voltou-se para Esmeraldo e seu ódio era tão visível que o rapaz recuou involuntariamente.

— Se eu pegar você perto dela de novo... – a ministra sussurrou perigosamente para ele.

— Mas o que foi que eu fiz? – mesmo assustado, o cigano não recuou e estava decidido a receber uma resposta decente para aquele comportamento tanto de Claudia quanto de Quasímoda – E por que tratou aquela pobre menina daquele jeito?

— Ela é minha afilhada! Não devia estar aqui, muito menos sendo exposta ao ridículo por você e sua gente! – Claudia explodiu –E guarde minhas palavras: se você se aproximar dela ou se eu ouvir qualquer comentário daqui para frente a respeito do que acabou de acontecer aqui, eu acabo com você! E isso serve para vocês todos! – a ministra virou-se para os cidadãos – Quem fizer qualquer piada sobre o que aconteceu aqui terá de enfrentar minha ira! Fui clara?

Todos os presentes abaixaram a cabeça e madame Frollo entendeu isso como concordância. Cansada, cheia de ira e vendo que já não havia festival algum para assistir, a ministra retirou-se e buscou qualquer lugar sossegado onde pudesse ficar e esfriar a mente tumultuada.

— Que mulher horrível! – Esmeraldo suspirou cheio de indignação e tristeza enquanto descia do palco e também ia para casa. Não havia mais clima para festival algum e todos os presentes, cabisbaixos, foram deixando a praça. 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Isso é só o começo. E sim, já pode começar a se preocupar com Claudia pois no próximo capítulo ela... bem, não vou dizer. Você vai ter que ler.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Sob o Olhar de Notre Dame" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.