Estranha Sensação escrita por Loreh Rodrigues


Capítulo 9
Absolutamente iguais




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***
Heriberto se recolheu ao seu quarto simples depois de suas orações diárias e do jantar. Algumas vezes haviam lhe designado paróquias na cidade do México, mas ele preferia viver naquela casa de padres modesta e não criar raízes para quando sua maior vocação o chamasse. Ele possuía um vazio dentro de si que somente não o atormentava quando se dedicava às missões fora do México, longe da casa de sua mãe ou da cidade onde se entregou ao sacerdócio.

Entretanto, há um pouco mais de uma semana, sentia que sempre havia se enganado quanto a isso. Não era a proximidade com sua mãe, com aquela cidade, o confronto com suas fraquezas que o levaram a tomar caminhos que ele não escolheu que o inquietavam no DF. Era Victoria. Aquele acidente provocou um impacto muito maior do que o choque entre os dois veículos, Heriberto sentiu que algo mudou.

A descarga de raiva de Victoria, o olhar acusador que ela dedicou a ele, a inquietação que sempre voltava na presença dela e... a necessidade de sua presença durante todo o tempo em que ela estava ausente. Ela lhe movia o chão, lhe roubava o equilíbrio e ele não podia resistir àquele sentimento. Observou o convite sobre a cômoda, aquele pedaço de papel que podia significar a decisão de sucumbir ao pecado ou aceitar de vez sua vocação e cumprir a promessa de sua mãe.

A ONG havia distribuído entre alguns funcionários convites para o desfile de Victoria que aconteceria naquela noite e, desde então, Heriberto não conseguia pensar em algo diferente de voltar a vê-la. Em sua mente, inventava mil pretextos para que pudesse estar ali, mas dentro de seu coração, sabia que a razão era uma só e que ele devia rejeitar aquela sensação e não correr de encontro a ela como estava desejando fazer.

***

Nos bastidores do luxuoso salão onde ocorreria o desfile, Victoria trabalhava descontrolada. Havia profissionais encarregados de cada setor, mas àquela altura, Victoria já não confiava em ninguém. Ela sabia que tinha uma missão depois daquele desfile, mas naquele dia, faria com que nada mais desse errado. Queria cuidar de cada detalhe antes de assumir seu lugar de destaque e assistir o resultado de seu trabalho de tanto tempo.

— Já não ensaiamos tudo, porque estamos repetindo isso? — Reclamou Juliet, uma de suas modelos.

— Esqueceu-se de que você usaria outro modelo? — Recordou Victoria. — A atitude deve ser diferente com essa peça e você sabe. Sabe que não deve só vestir a roupa, deve incorporar a mulher da marca Victoria Sandoval. Lembre-se Juliet, você é a mais poderosa, a mais sexy! Não se esqueça de andar mais forte, daquela maneira quase masculina para poder quebrar a roupa, que é muito sexy, sempre! A sensualidade é sua marca.

— Está bem! Pode confiar em mim! — Sorriu a jovem modelo.

Victoria não confiava. Mas não tinha outra escolha. Sempre havia ouvido histórias de traição, de roubo de croquis, de plágio e, para toda coleção preparava peças coringa sem o conhecimento de nenhum de seus funcionários. Ela mesmo costumava costurá-las e selecionar os tecidos sozinha, sem a participação de ninguém, para garantir que jamais fosse pega desprevenida. Até aquele momento não havia sido necessário usar suas peças coringa, mas naquele desfile não só precisaria usá-las como também garantir que elas brilhassem mais do que seus maiores destaques que haviam sido apropriados por Bernarda.

O desfile foi um sucesso monumental. Victoria percebeu o êxtase dos críticos e dos jornalistas e se sentiu vitoriosa. As duas peças coringa que ela usou para substituir as roubadas por Bernarda foram as mais elogiadas. Ela sabia que, a partir dali, teria que alterar alguns detalhes em sua coleção, mas o sucesso no desfile de lançamento era um pequeno passo. Bernarda podia ter conseguido levantar-se do ostracismo à que ela estava relegada com o roubo de suas peças, mas Victoria sabia que era ela quem tinha o talento para manter-se no centro dos holofotes com cada peça produzida e lançada por sua coleção. Que eram dela que as personalidades desejavam um vestido exclusivo, era sua assinatura que garantiria dinheiro e sucesso.

Ao final do evento, depois de receber todas as congratulações que representavam bem o sucesso do desfile, Victoria se surpreendeu ao perceber que perto do bar, nas cadeira dedicadas à ONG mantida por seu patrocinador, estava Heriberto. Quando ele estava vestido como um homem comum, era tão difícil recordar quem era ele e o quanto devia odiá-lo. Ainda tomada pela adrenalina do sucesso do desfile, aproximou-se da barra do bar e viu Heriberto alterando-se com o impositivo olhar dela sobre ele.

— Eu não sabia que você se interessava por moda. — Comentou ela vendo Heriberto buscando as palavras para respondê-la à altura. Mas ela sabia que ele jamais poderia, estava acima de todos os mortais e, mais ainda, dele.

— A ONG recebeu alguns convites... Confesso que fiquei curioso depois de sua visita àquela obra social e... queria saber como você está após o acidente... a mão.

— Tantos pretextos... Nenhum parece verdadeiro. Então é comum que um padre diga tantas mentiras? — Acusou implacável.

— Eu realmente queria saber como está sua mão. — Defendeu-se. — Mas a verdade é que queria ver você executando esse trabalho que tanto ama.

— E por quê? É fácil entender o amor que outra pessoa têm à sua carreira quando também se está seguro de sua vocação. E você é um homem inabalável em suas certezas, na escolha de sua carreira, não é mesmo?

— Parece a minha mãe falando. — Sorriu ele com amargura.

— Deve ser porque essas são palavras dela! As palavras que ela me disse quando questionei sua ida para o seminário, se poderia ser reversível, se você teria a chance de voltar atrás... Mas também são palavras suas. Não conheço ninguém com uma vocação tão inabalável quanto a sua!

— Por que você é sempre tão sarcástica comigo? — Reclamou.

— Não se sinta tão importante. O sarcasmo é a melhor maneira de dizer verdades e eu sempre uso. E o que achou? Do desfile, de me ver dedicada à minha carreira? Já que foi esse o motivo que te trouxe aqui.

— Sinceramente, cheguei a uma conclusão interessante. — Disse ele com aquele olhar instigante que a alterava. — Vendo você ali, tão imponente como a rainha da moda que você ama ser, achei que talvez você possa me entender.

— Como assim? Você e eu não somos nada parecidos! — Irritou-se ela ao compreender suas palavras.

— Não foi o que você me disse há uma semana. — Agora era Heriberto quem tinha o controle da conversa. E Victoria odiava aquilo. — Você me disse que nós somos absolutamente iguais, que você  nasceu para se dedicar à moda, ao desenho, a ver seus modelos brilharem nas passarelas como aconteceu hoje. Que você nasceu para a carreira que ama e escolheu assim como eu nasci para ser médico e padre. Se somos tão diferentes me diga então, Victoria. Alguma coisa faria você abandonar sua carreira? Alguma coisa ou... alguém?

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