O ateliê de Afrodite escrita por Kate Lewis


Capítulo 4
Dos devaneios




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Poseidon às vezes gostava de se arranjar em um barquinho e se espreitar pelo mar aberto, seus olhos fechados. Procurava pela água fria com naturalidade, porque geralmente se perdia ali quando precisava esfriar a cabeça. Suas mãos firmes e largas, tão cheias de calos, seguravam um remo mesmo que fosse ele a guiar o mar – e detalhes como esse eram a prova mais suave de que, em meio à sua imensidão, era o deus mais afeito a pequenas humanidades.

Era tão costumeiro, nos últimos tempos, que estivesse perdido, que suas visitas se tornaram constantes. Deitava-se ali, no meio de tanta água, porque o vento soprava as respostas mais curtas que ele precisava ouvir – mesmo quando era agitado como um furacão. Ele encontrava o prazer e as respostas nos contrastes mais absurdos, e só por isso deixava seu barquinho se perder no meio de uma tempestade, e também na beira de uma praia deserta.

Naquele dia claro, cheio de uma brisa suave, Poseidon pensava nas vezes em que havia negado a si mesmo que pensava em Atena – e também nas vezes em que admitira, todo ele tão errado, que ela lhe era inevitável. Deuses, ele jamais poderia dar certo com ela. Tinha tanto a consciência disso que às vezes precisava passar o dia inteiro ali largado, seus olhos verdes azulando-se como o mar enquanto as mãos apertavam a cabeça.

Deitado, a mão na madeira firme e molhada do remo, lembrava-se de seu encontro com ela, e do quanto desejava que não houvesse ido embora. Já havia aceitado, há um tempinho, que nutria sentimentos contraditórios por sua antiga inimiga, mas não havia imaginado (pelos céus) que fosse encontrá-la com os pés quase descalços olhando para o mar – como se esperasse por ele.

Às vezes, em seus momentos mais intensos, lançava pragas contra Afrodite, mas nem sequer conseguia odiá-la de verdade.

Sempre frustrado por não conseguir se livrar daquela situação degradante, ia sentindo o mar levá-lo cada vez mais para longe (como se atravessasse toda uma encosta). Não controlava as ondas: como os de seu coração, os movimentos delas eram involuntários, ainda que ligados à sua força vital. E, por isso mesmo, quando ele se agitava, o mar inteiro se agitava junto – para depois se acalmar em segundos, porque, infelizmente, o mundo (e os gregos) haviam escolhido um deus inconstante para controlar o oceano.

Ninguém, exceto Atena, o culpava pelas tragédias que causava. Era-lhe quase uma condição física, porque nunca tinha entendido o caminho para controlar o próprio temperamento, e não podia evitar as batidas mais fortes de seu coração assim como não podia evitar suas tempestades. Mas ela nunca o entendera, e ele achava que nunca entenderia. Sorriu com uma certa tristeza, pensando no quanto ficaria ultrajada se soubesse que, recentemente, cada uma dessas tempestades havia sido causada por sua culpa. (Ou talvez culpa fosse uma palavra muito forte... mas que outra poderia usar?)

Em um devaneio, lembrou-se dos olhos dela e de como, lá no fundo, eram quase azuis. E se lembrou de como ela havia aceitado que ele ficasse (que sentasse com ela e bebesse com ela), mesmo que por um tempo ridículo. Seus cachos loiros estavam um tanto amassados naquela noite, e ele se perguntara com o que é que andara se preocupando tanto a ponto de não aparecer impecável, e em público.

Estranhamente, ele a preferia assim. Gostava de quando, distraída, aparecia em um Conselho Olimpiano majestoso com um lápis prendendo seu coque, e uma manchinha de tinta perto da nuca. Não sabia como o traço havia parado ali, mas ficava imaginando e sorria francamente.

Naquele encontro, ele a olhara tão de perto que pensou que jamais esqueceria as três pintinhas espalhadas pelo seu rosto. No canto dos olhos, no final de sua testa, e na bochecha esquerda. Na bochecha, uma pintinha e uma vermelhidão que ele nunca havia visto nela – e que o derretera só um pouquinho.

Não sabia há quanto tempo vinha se derretendo, mas que podia fazer? Não podia fugir, por mais que, no fundo, ele mesmo também guardasse um ressentimento secular por Atena. Diferentemente dela, no entanto, sempre lhe fora mais fácil abandonar rancor.

E ele tinha achado, cheio de angústia, que estava destinado a gostar dela sozinho, mas então avistara aqueles olhos incertos (a forma como ela parecia quase inclinada a lhe admitir alguma coisa), e tudo se desmanchara.

Poseidon suspirou, odiando cada segundo de sua impotência, até que se viu chegando a uma encosta vazia – um litoral distinto que, sem querer, ele havia reformulado ao longo dos últimos meses, até que seu contorno fosse completamente outro. Sabia o nome daquela nova praia, e sabia desde que havia esbarrado nela pela primeira vez.

Por entender que havia algo ali em que ele precisava se demorar, virou o barco (um gesto costumeiro) e mergulhou na raia até que alcançasse os pés no fundo de areia. Nadou, cada vez mais aliviado, até o raso, e saiu do mar inteiramente molhado – de sua camiseta branca à bermuda de estampa que colava em seu corpo. Respirou a brisa salgada e mexeu com os grãos de areia em seu pé, até perceber sem querer que a solução de seus problemas estava tão à sua frente.

Uma praia deserta, comum se não fosse a forma certa como o sol batia ali, e como as árvores tão verdes farfalhavam pela brisa do mar.

Carruagem, uma encosta que, bem como Afrodite fizera com o vestido, ele também construíra sob medida.


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