O ateliê de Afrodite escrita por Kate Lewis


Capítulo 3
Do não-jantar à luz de velas


Notas iniciais do capítulo

A Nightingale Sang In Berkeley Street - Stan Getz e Bob Brookmeyer
Pra machucar meu coração - João Gilberto e Stan Getz

(Sério. Só ouçam essas músicas nessas versões pelo amor dos deuses)



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/781503/chapter/3

A Itália era um país curioso, porque, com todas as suas voltas, ainda mantinha viva aquela cultura de aproximar seus indivíduos. Repleta de cidades pequenas, era tão corriqueira a cena de habitantes se juntando para ter contato uns com os outros, que era quase uma contradição que a arte de receber pessoas de fora fosse tão rechaçada.

Atena estava, naquele momento, em um desses encontros comuns, em uma província litorânea chamada La Spezia. Gostava de estar por perto de movimentos, e presenciar uma cena tão linda como aquela poderia ser considerada uma paixão à parte. A noite já havia caído há um tempo, e aquele clima gostoso – cheio de uma brisa de mar – tomava-a por inteiro.

Estava em um ambiente aberto, porque aqueles italianos tinham uma tradição de montar mesas de madeira ao ar livre quando o clima estava para isso (e, naquele dia, definitivamente estava). O restaurante era logo ao lado, e o cheiro de comida vinha em levas, estonteante. A província era feita de um relevo acentuado, e várias casinhas coloridas salpicavam-se pela encosta até que as rochas virassem mar, lá embaixo.

Atena via tudo isso com os olhos cheios, nunca acostumada de verdade a como tudo podia ser tão bonito. E também a como poucos detalhes podiam ser tão incômodos.

Encostada naquela cadeira de madeira, os pés um pouco soltos de suas sandálias, ela pensou mais uma vez em Afrodite e em seus caminhos tortuosos. Um pouco mais cedo, naquele mesmo dia, havia recebido uma caixa de papel branca na porta de seu ateliê – uma fita rosa e transparente em cima – e havia se perguntado como, pelos céus, Afrodite havia descoberto aquele seu cantinho. Sabia que era dela, porque uma pequena carta o dizia em letras cursivas: “...de sua amada Afrodite”. E ela também havia recrutado Atena (como se escrever “amada” já não fosse o suficiente) para que a encontrasse em Cinque Terre durante a noite, porque precisava tratar de seus sentimentos.

Atena não queria lembrar o que havia dentro da caixa (aquele vestido azul cheio das mesmas pérolas que ela havia pintado dias antes), porque a mera ideia já lhe arrepiava. Não sabia por que ao certo viera encontrá-la. Talvez porque estivesse indignada demais com sua audácia, ou porque, secretamente, quisesse entender o que poderia fazer para encerrar aquele assunto absurdo.

Mas suas intenções se confundiam tanto que ela havia parado de tentar entendê-las. Vestira afinal um vestido claro e curto, de alcinhas delicadas e saia solta, e viajara em segundos até aquele lugar distinto. Enquanto esperava, tinham vindo conversar com ela, é claro, e um vendedor de flores havia colocado uma pequena espécie no começo de suas trancinhas. Seu cabelo estava quase inteiro solto, quase dourado, e apenas algumas mechas se prendiam para trás.

Ela não havia pedido nada, observando uma pequena vela bruxuleando dentro de um vidro à sua frente, e aquela vista que se estendia até os reflexos na água. Um pequeno grupo afinava seus instrumentos ao lado, e de vez em quando fraseavam partes de uma melodia distante.

Atena só percebeu que havia sido arrastada para uma armadilha quando viu os olhos verdes dele a observando ali perto.

Encostado em uma amurada, Poseidon tinha o cabelo negro bagunçado, e seus traços fortes marcavam-se por uma expressão intensa. Parecia surpreso como ela – talvez um pouco menos bravo.

No final, sempre aceitara mais as linhas tortas de Afrodite do que ela – as suas próprias também tão erradas.

Havia avistado-a um pouco antes, seu coração se apertando enquanto percebia aqueles olhos cinzas tão distraídos pela paisagem (e tão visivelmente preocupados) que ele pensou se não deveria sabotar aquela brincadeirinha de Afrodite e ir embora. Olhou-a por instantes longos, sem saber que instinto seguir, até que ela frustrou qualquer possibilidade de escolha: seus olhos lindos encontrando os dele, surpresos e também brilhantes.

Ela se endireitou quase por instinto, incerta sobre como deveria reagir àquilo que tão claramente era um encontro armado. Tentou respirar fundo, seu estômago se revirando, e o encarou então por costume – porque era rotineiro que estivessem em guerra. Mas seu plano falhou em um segundo: os olhos dele eram outros, uma expressão muito diferente de qualquer uma que já houvesse flagrado neles.

Não estava irritado (prestes a explodir), nem seu sorriso debochava dela em uma espécie de orgulho. Seus olhos brilhantes, costumeiramente risonhos, então a olhavam como se houvessem esperado por aquela ruptura há muito tempo. E ela não saberia dizer ao certo, mas pensou, por um momento, ter visto um brilho diferente misturado àquela tonalidade escura de verde.

E ele sabia que, se não fizesse nada, poderiam passar a noite se olhando de longe. Por causa disso, decidiu se aproximar, chegando perto de um jeito quase hesitante, fazendo uma menção de puxar a cadeira à sua frente. Buscou aprovação em seus olhos, mas Atena não disse nada, nem se moveu ao olhar para ele de tão perto (apenas seus lábios se contraindo um pouco).

— Antes de qualquer coisa – ele disse, e ela havia se esquecido (deuses) dos tons graves de sua voz –, quero deixar claro que não tenho nada a ver com isso.

Atena balançou a cabeça, quase conformada.

— Sei que não. Afrodite é... absurda — e franziu os lábios, perto de um suspiro, olhando-o em pé. Sem acreditar que estivesse cedendo àquele ponto, ergueu a voz novamente. – Você pode sentar, se quiser.

Ele também pareceu um pouco surpreso, porque suas sobrancelhas fizeram um movimento quase imperceptível. Mas puxou a cadeira, ficando de frente para Atena e aquela cidade que parecia tão sua.

Olharam-se inevitavelmente. Era uma cena casual: os barulhos do movimento ao lado deles, o cheiro de uma grande macarronada, e aquele vento leve arrepiando-a só um pouquinho. Mas Atena e Poseidon nunca sequer haviam caminhado lado a lado quando não por causa de uma guerra, ou por uma conveniência qualquer. (Ou talvez houvessem, mas há tanto tempo que não se lembravam.) E Poseidon muito menos havia visto seus olhos cinzentos daquela forma tão confusa, decidindo e voltando atrás em tantas coisas por segundo.

E, deuses, não era só isso. Porque Atena podia tentar esconder, se quisesse, os seus olhos incertos e suas mãos instáveis, mas não aquele rubor em suas bochechas. E a forma como, de repente (e ele não sabia o porquê), parecia ser mais difícil olhar para ele.

— Está com fome? – ela perguntou, tentando se desviar daquele assunto que nem estava sendo discutido em voz alta.

Mas ele sorriu um pouco, porque aquela sobrancelha que ela levantava minimamente era uma negação muito suave.

— Com sede.

E ela acenou para um garçom, só para se afastar dos olhos dele, sem esperar de todo que ele fizesse aquele pedido:

— Um vinho daqui. E duas taças – e Poseidon olhou novamente para ela, sentindo qualquer coisa se remexer quando ela lhe lançou uma reprimenta costumeira com os olhos.

— Não sei se quero beber – replicou, sua voz fraca, e seus olhos cheios daquela teimosia tão própria ao sustentar o olhar dele.

— Você pode se decidir quando o vinho chegar.

Ela deu de ombros suavemente.

— Posso.

E olharam-se novamente, percebendo aos poucos que, como sempre haviam feito, estavam se provocando levemente. E não sabiam bem por que haviam aceitado fazê-lo daquela forma – um jantar à beira do mar, em uma noite de clima tão azul, e seus pés perto demais um do outro. Mas seus olhares tinham aquela mesma resolução de sempre – determinados a não fugir de qualquer batalha em que estivessem envolvidos.

— Queria saber – ele pronunciou, sua voz grave um pouco rouca – que artifício incrível Afrodite usou para te convencer a vir até aqui.

O rosto dele era bonito, seus olhos verdes e aquelas pequenas rugas de sorriso em volta deles. Havia feito a barba recentemente, e ela desconfiava que, se a contornasse com a ponta dos dedos, chegaria perto de arranhá-los. 

— Te faço a mesma pergunta.

Ele sorriu de leve.

— Não se esquive.

E ela franziu os lábios, olhando pela primeira vez para o mar imenso até perceber, com atraso, que não havia como fugir dele.

— Negócios – respondeu, porque era teimosa.

Poseidon riu, e Atena o olhou de novo, perguntando-se quando havia sido a última vez que o tinha visto assim tão leve com ela.

— E que tipo de negócios você tem feito com Afrodite?

— Ela queria conversar sobre meu ateliê de pinturas. Tenho pintado muitas telas por causa dela.

Ele ergueu as sobrancelhas, sem se convencer. Sabia que ela era uma batalha perdida, e só por isso não continuou sua inquisição. Além disso, foi interrompido pelo garçom que lhes trazia um vinho spezziano, tinto, e duas taças de vidro que Atena olhou com dúvida. O garçom os serviu, aos dois, e seus olhos claros sorriram antes de ir embora.

Atena passou a ponta do dedo pela própria taça, perguntando-se como tinha chegado àquele ponto – e como tinha chegado àquele ponto com ele (logo com ele). Repuxou os lábios, e suspirou uma vez antes de engolir uma boa dose daquela tintura roxa e deliciosa.

Parecia a noite certa para algum nível de embriaguez, e ela queria pensar que era por isso que não lhe havia negado o pedido de dividir aquela garrafa.

Do outro lado da mesa, a taça de Poseidon guardava apenas mais uma dose pequena de vinho, porque ele havia virado-a quase de uma vez. Olhava para o vidro como se fosse lhe trazer respostas (de repente reflexivo). E Atena ainda não havia decidido se detestava ou admirava aquela característica, mas ele parecia ser capaz de mudar de postura com uma facilidade impressionante.

— Você – a voz era dele, e tão rouca.

Também era capaz de surpreendê-la com a mesma facilidade.

— Como? – perguntou, confusa porque os olhos dele olhavam-na de um jeito diferente, e porque a música era de repente intimista.

— Afrodite te usou para me trazer aqui.

As sobrancelhas dela se ergueram, e ela chegou a ficar com raiva por alguns instantes.

— Como? – repetiu, mais insegura.

E ele riu baixinho, porque estava mais do que acostumado com sua irritação, e com as previsões negativas que ela fazia de si.

— Tem que confiar mais em mim. Estamos sob uma espécie de trégua aqui, não estamos?

Ela franziu o rosto, controlando qualquer sentimento.

— Eu não diria bem isso.

— E o que você diria sobre nós então?

Atena olhou para ele, e para os mesmos olhos que haviam tomado uma parede inteira de seu ateliê há poucos dias. Ele podia sorrir o quanto quisesse, mas o brilho de seus olhos tinha qualquer tom de seriedade, e ela se pegou admirando o encanto que via em seu rosto atento, e na forma como ele esperava a sua resposta como se aquilo importasse tanto.

— Eu diria – e seu tom era tão cauteloso, e baixinho – que trégua é uma palavra muito forte para dois deuses como nós, com uma história... complicada como a nossa. E que deixar de lado nossas diferenças levaria um tempo extraordinário, e nunca um breve jantar em uma encosta bonita. E que Afrodite é um tanto infantil se pensa que as coisas se resolveriam assim.

— E de que outra forma as coisas se resolveriam?

Olharam-se, e Atena sentiu o corpo mais quente.

— Desde quando queremos resolver nossos problemas?

— Desde que... – e ele se interrompeu, percebendo que seu impulso o faria entregar a ela segredos que não queria lhe contar. – Desde que escolhemos aceitar esse encontro absurdo de Afrodite.

E ela não havia como lhe retrucar, porque na verdade sabia que havia sido bem antes disso. Havia sido quando o pintara pela primeira vez, surpresa com seus traços e com o quanto tudo parecia inevitável. Havia sido quando olhá-lo de longe parecera carregar um peso grande demais, podendo lhe tomar o resto do dia. E quando todo aquele desprezo (tão antigo) que sentia por ele entrara em conflito com a ponta de admiração que passou a sentir naturalmente – em tantos aspectos diferentes, que Atena entrara em uma negação profunda.

Porque vinha começando a entender, mesmo que fosse difícil admitir, que, em mais de dois mil anos, ele havia mudado tanto quanto ela, e era um pouco absurdo que questões antigas ainda balizassem todo o seu relacionamento e suas impressões.

Uma música começou a tocar um pouco mais forte, as cordas de um violão apaixonando Atena de imediato. Desviou os olhos por um momento, percebendo os dedos do músico se movendo pelo instrumento com qualquer destreza, também ele apaixonado pelo que fazia. Não conhecia a música, mas fechou os olhos, inspirando fundo. Tudo era demais para ela, e Poseidon havia demorado anos para descobri-lo.

Olhou-a assim de longe, percebendo seus traços bonitos de novo, e a forma como o conflito era tão claro em seu rosto. Desde o início, pensou que ela não resistiria a um jantar inteiro, e talvez estivesse certo. Parecia cansada (por lutar contra qualquer coisa), e não foi com surpresa que a viu abrir os olhos e encará-lo, receosa.

— Não sei se posso continuar, Poseidon.

Ele franziu os lábios, sinceramente entregue.

— Não pode evitar o assunto para sempre.

— Não posso – e ela sorriu brevemente, os olhos abaixando-se para a própria taça de vinho. – Mas não sei se podemos ignorar tudo de uma hora pra outra. E ainda é um tanto difícil pra mim aceitar... tudo o que eu tenho sentido.

E ele pensou em uma resposta, mas ela já havia se levantado, olhando para ele uma última vez.

— Não acho que isso seja para nós dois – sua voz era quase um sussurro, e Poseidon sentiu o corpo inteiro se arrepiando.

— Atena...

Mas ela franziu os lábios, olhando para o mar como em uma despedida. E desapareceu enfim em uma névoa branca, deixando a ele a sensação de levar um soco no estômago.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O ateliê de Afrodite" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.