O ateliê de Afrodite escrita por Kate Lewis


Capítulo 2
Dos traços no painel




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As paredes tinham um tom bonito de azul. Um pouco claro de um lado, e intenso de outro. Quando passava muito tempo por ali, Atena se perguntava onde é que estava com a cabeça quando se pintara, por conta própria, dentro de um aquário.

Não é um aquário, repetia para si mesma, um pouco irritada pelos próprios pensamentos. E na verdade não era mesmo.

Nos últimos tempos, havia decidido reformular cada espaço de seu ateliê de pintura, mudando as mesas, cavaletes e painéis de lugar. Seus pincéis ainda estavam agrupados em cantos diferentes, e seus quadros encostados temporariamente em uma parede. Ainda precisava arrumar um tempinho para consertar o mundo inteiro. O dia estava um pouco nublado, no entanto, (prestes a chover), e, sem saber bem o motivo, a deusa retirou cada objeto colocado (ou jogado) da frente de uma das paredes ainda brancas, e decidiu pintá-la.

Naquele momento, passou o dedo pelos pincéis gastos que se encontravam dentro de um recipiente de plástico. Estavam limpos, mas pequenas manchas de tinta os haviam marcado para sempre, e ela desconfiava que, agora, se manchariam novamente de um azul profundo.

Começou por um ponto no canto esquerdo daquela tela enorme. Traçou um risco azul escuro e o encarou por alguns instantes. Então traçou outros tantos, ao lado, embaixo e em cima daquele mesmo, e, com um pincel mais largo, rasgou a paisagem em azul claro (um traço todo falho, sem que ela lhe houvesse planejado assim). Aquela era uma pintura destinada a estar errada, e Atena sabia disso desde que sentira a primeira vontade de concretizá-la.

Uma janela branca, atrás dela, dourava levemente o seu coque loiro. Vista assim de costas, parecia uma pintura isolada. Sua blusa preta era justa e crescia até seus pulsos, e ela havia decidido usar calças jeans. Tinha a cintura fina, e vários fios claros caiam por seus ombros, escorregando da artimanha que ela havia feito para prendê-los no topo da cabeça. Eles logo se enrolavam, tão adoráveis para uma postura dela tão altiva, que era quase uma contradição.

Mesmo ali, pintando, às vezes se esquecia de relaxar. A verdade é que, de início, não conseguira aceitar completamente aquilo que estava concebendo. Fazia nascer, contrariada, mais traços azuis de um tom quase esverdeado, porque era assim que se lembrava dele. E então parava um pouco para observar o que estava fazendo, de longe, quase estressada por não conseguir se contentar com o mundo.

Continuava. Porque sempre havia sido teimosa, e porque algumas paixões eram difíceis de se conter (até para ela). Seus olhos cinzentos (quase azuis) se encontravam com aquele painel de um jeito hesitante, e houve um momento em que tudo foi ficando tão cheio de água que ela quis se desfazer.

Mas já não podia. Baldes de tinta azul, branca e verde se encontravam no chão, e ela então passou a segurá-los nas mãos, um a cada vez, para terminar aquilo logo. Chegou a fechar os olhos, suas mãos bonitas pincelando coisas que ela não queria admitir, mas que eram fortes demais (e lindas demais) para não escaparem pelas bordas.

Quando tudo ficou cheio de tinta, Atena se afastou e só pôde morder os lábios. De longe, viu enfim aquele mar imenso pintado em seu canto mais secreto e sagrado do mundo. Suspirou, quase derrotada, e ouviu que o vento uivava baixinho lá fora. A janela estava aberta e dava para uma cidade movimentada – uma casinha de tijolos claros em um centro comercial de Florença. Se estreitasse os olhos, poderia ver a chuva chegando. Mas, no fundo, nem precisava disso: ela já estava ali, debaixo e diante de seus cílios compridos (e molhados).


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