O ateliê de Afrodite escrita por Kate Lewis


Capítulo 1
Da costura de Afrodite




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Afrodite amava suas pequenas travessuras – mesmo as que não eram assim tão propositais. Amava o desamparo e o acolhimento que seus passos ofereciam, e amava como seus próprios olhos castanhos, de cílios compridos, brilhavam pela mera ideia de armar uma cilada contra um indivíduo inocente – tão preocupado com algum aspecto banal da vida, para então perder o chão e acordar suando pela madrugada. Não que fosse realmente maldosa (talvez um pouco), mas gostava que as coisas fossem ao menos um tantinho complicadas.

Era de sua natureza.

Não via o amor como um objeto tranquilo e inerte: ele estava sempre em movimento, sempre pregando peças e escorregando de repente pelas sombras – ou para as luzes. E, afinal, qual era o grande problema disso? Por que ninguém nunca conseguia aceitar seu jeito assim rasteiro?

A verdade, pensava, é que pincelava conflitos e paixões por aí não apenas porque achava divertido (apesar de isso realmente contar alguns pontinhos), mas principalmente porque acreditava que aquela era a pitada final de uma vida minimamente satisfatória.

Naquele dia primaveril, fez mais uma vez aquela constatação depois de pousar os olhos sobre a mais recente obra de arte que havia costurado: uma trama deslumbrante de tecidos azul escuro. Chiffon, organza, pérolas, e um cintilar inconstante compunham aquele vestido delicado e, ainda assim, impressionante.

(Ela havia contido seu desejo de enchê-lo de lantejoulas e glitter, sem entender por que o havia feito até olhar a obra pronta e constatar que, na verdade, não eram suas vontades que estavam em jogo.)

Durante os últimos dias, havia aparecido por ali inevitavelmente, acordando cedo porque despertada por seu instinto. Depois de tanto tempo sem pisar em seu ateliê de costura, era quase incomum o quanto ainda se sentia em casa, como se nunca houvesse ido embora. Seus manequins, compostos de vários tons claros de rosa, dispunham-se um ao lado do outro e esperavam por um novo movimento de suas mãos afetadas, e ela se perguntou há quanto tempo, na verdade, eles não vinham sentindo sua falta.

Naquele fim de tarde, a luz fraca que passava pelas cortinas finas iluminou a nova peça azul, sozinha no meio de todos aqueles suportes delicados. O cabelo castanho e encaracolado da deusa estava um pouco bagunçado, e ela teve que fazer um movimento breve para tirá-lo do rosto. Seus olhos castanhos brilhavam levemente ao perceber, com alguma distância, a peça maravilhosa que as tardes haviam construído junto com ela – fio por fio.

Sua cintura era fina e um pouco nua, e o tecido tocava o chão após imensos centímetros. Só poderia se encaixar em alguém de ombros um tanto delicados; suas alcinhas finas e o decote levemente acentuado. Antes de tocar a saia, Afrodite havia costurado milhares de pérolas no busto, e suas costas (uma de suas partes favoritas) eram todas expostas. A saia era feita de vários recortes de um mesmo tecido brilhante, e longa: uma imensidão de azuis se movimentando sozinhos.

De início, não entendera o motivo de sua ânsia, nem das pérolas que bordava com paciência e boca prensada. Tecera o vestido com uma atenção desumana, cada dia mais interessada e ansiosa por seus traços – uma agulha espetando seus dedos de vez em quando, e o sol tocando seu sorriso um pouco insano.

Não entendera bem por que o fazia. Mas naquele fim de tarde, quando a luz das cortinas já se extinguia e a sala tomava um tom opaco, ela se aproximou de sua obra lentamente e tocou-a com a ponta dos dedos machucados.

Levantou uma alcinha com o indicador, notando que os fios vinham se entremeando por vontade própria. Com a boca levemente entreaberta e aqueles olhos brilhantes, voltou a escorregar os dedos até a fenda que havia recortado na cintura pequena – uma curva bonita, feita sob medida, que ficaria exposta. Seu nariz então se franziu quando deslizou os dedos para um dos tecidos da saia e percebeu, enfim, que o seu conjunto era o próprio desenho do mar.

Afastou-se um pouco, deixando um som escapar de seus lábios. A mão apertou um pedacinho de pele do próprio braço, e ela enfim soube. Simplesmente soube que aquele vestido que costurara de jeito tão intuitivo (os fios sempre se emaranhando em suas mãos) pertencia a alguém.

Uma mulher linda de olhos determinados, cuja sombra fazia qualquer um tremer. Uma artista como ela, mas completamente diferente. Uns olhos cinzas que no fundo eram azuis, e que escondiam tanto que, sinceramente, Afrodite não sabia como.

Havia costurado um vestido de mar para ela. Para Atena.


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Notas finais do capítulo



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