As Crônicas de Ainsworth escrita por Fore Project


Capítulo 9
Capítulo 08




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Raleigh abriu os olhos lentamente, sua visão ainda borrada e desnorteada.

Ele tentou compreender a situação, mas a mente estava confusa demais para ajudá-lo naquele momento. Não sabia se estava sentado ou deitado, seu corpo estava pesado e ele não tinha qualquer controle sobre os membros. Quis falar algo, mas língua estava dormente.

— Parece que ele acordou.

Raleigh escutou alguém dizer, mas não conseguia saber de quem era a voz, apesar de já tê-la escutado em algum lugar antes.

— Achei que o efeito do seu feitiço fosse durar mais que apenas algumas horas.

— Bom, eu também pensei isso. Não imaginava que ele fosse ser tão resistente a restrições mágicas.

— Nesse caso não há o que fazer. Foi um erro de minha parte não ter verificado isso antes.

— O que pretende fazer com ele agora que acordou?

— Eu planejava pedir pra que Helena o transportasse quando terminasse com ele, mas parece que isso não vai ser mais possível.

— Quer que eu tente restringi-lo fisicamente?

— Não há necessidade. Creio que ele vá entender a situação.

Raleigh escutou duas vozes conhecidas conversando próximas a ele, mas não conseguia lembrar a quem aquelas vozes pertenciam. Sua mente estava tão leve que ele mal conseguia se manter consciente.

— Onde eu estou...? Quem são vocês...? – tentou perguntar, as palavras mal conseguindo sair nitidamente de sua boca.

— Ora, não pensei que alguém com sua experiencia fosse fazer uma pergunta tão inocente assim.

— Essa maneira de falar.... Aurélio, seu maldito...? O que está planejando?

— Impressionante! Você consegue identificar os outros pela maneira de falar e não pela voz. Devo admitir que essa é uma característica bem interessante.

Raleigh conseguiu recuperar sua consciência ao ponto de seus sentidos retornarem no mesmo momento. Assim que sua visão finalmente se tornou nítida, ele se deu conta de que estava erguido no ar por correntes presas em cada um de seus membros.

Pelo que notou, ele estava numa sala circular. Havia sete longos pilares, onde em cada um deles havia inscrições e equações mágicas. As tochas que iluminavam o lugar possuíam chamas pálidas e as correntes que o mantinham erguido vinham de cada um daqueles pilares. Estava parcialmente despido, expondo a parte superior do corpo onde se podia que seus músculos eram bem treinados e trabalhados, assim como as cicatrizes que ganhou junto com eles.

— Seu desgraçado! Onde é que eu estou?

— Nesse momento estamos bem abaixo do prédio principal da academia. Esta é uma sala especial construída especialmente para a contenção e anulação de poder mágico.

— Contenção de poder mágico...?

— Tenho certeza de que você já percebeu que seu poder mágico está lentamente desaparecendo – disse Flamel. – Quando ele se dissipou completamente mais cedo, seu corpo reagiu instantaneamente. Você deve saber bem o que isso significa, não é

O poder mágico de um mago é a principal fonte de energia para o uso magia. Ele também é o responsável por aumentar alguns atributos físicos como velocidade, força, agilidade, regeneração e percepção. Quando o poder mágico de um mago se dissipa de uma única vez, todo o corpo entra em colapso como reação, fazendo com que todas as suas forças desapareçam junto.

Isso não é algo incomum de se acontecer.

Um mago pode esgotar completamente seu poder mágico após usá-lo consecutivamente por muito tempo, ou então, ao usar uma habilidade que necessite de uma grande quantidade dele. Para recupera-lo basta descansar e se alimentar – o tempo de recuperação pode variar de pessoa para pessoa.

Entretanto, o poder de um mago se dissipar de uma única vez sem que ele o tenha usado não é um bom sinal. Dependo do caso, isso pode significar que seus circuitos mágicos estão danificados ou foram destruídos – e para um mago, isso quer dizer o fim do uso da magia.

— Você já olhou para o seu lado esquerdo? – Aurélio apontou para ele com sua bengala. – As Marcas da Depravação já começaram a devorar seus circuitos mágicos e agora é só questão de tempo até que elas cubram seu corpo e o engulam totalmente.

Raleigh olhou para o próprio corpo e viu que as marcas já haviam avançado bastante desde a última vez que as checou, logo pela manhã. Se antes elas levavam semanas para avançar e se espalhar, agora era apenas questão de horas para avançarem muito mais do que avançavam em uma semana.

— Eu planejava te contar sobre isso depois que houvesse resolvido o problema com aquela turma. Afinal, temos um trato. Mas ao que parece, as coisas aconteceram mais rápido do que eu esperava.

— Do que você está falando?

— Eu havia dito antes, não? Eu descobri um jeito extinguir as Marcas da Depravação.

— Isso é impossível! – Raleigh exclamou. – As Marcas da Depravação não podem ser destruídas. Elas são as marcas que um pecador deve carregar até o fim de sua vida. Elas podem ser retardadas, mas não podem ser destruídas.

— Isso é o que conhecimento atual acreditar ser verdade – disse Flamel.

Ele colocou as mãos nos bolsos de seu jaleco e começou a andar ao redor de onde Raleigh estava preso enquanto falava e explicava a ele.

— Como um mago, você deve saber muito bem que todo o conhecimento que possuímos tende a evoluir. Uma doença mortal que não possuía cura antes, hoje pode ser facilmente tratada. Uma tecnologia que era desconhecida, hoje é apenas mais um apetrecho de uso diário.

— Aonde você está querendo chegar?

— Estou dizendo que tudo aquilo que acham ser algo absoluto hoje, amanhã pode não ser.

— Ou seja, se existe uma doença haverá uma cura – comentou Aurélio.

— E se existe uma maldição, haverá uma purificação – Flamel completou.

Raleigh engoliu em seco. Ele não viu qualquer traço de mentira ou enganação naqueles olhos preguiçosos. Pelo contrário, ele viu apenas certeza.

— Esse é um feitiço especialmente criado para maldições antigas. Talvez o único até o momento, por isso queríamos ter realizado alguns experimentos antes, mas não temos mais tempo para isso.

Flamel se aproximou de Raleigh com a mão direito erguida à altura do peito. Pequenas chamas esverdeadas sugiram nas pontas de seus dedos e refletiram em suas pupilas por detrás das lentes dos óculos.

— Eu queria poder dizer que isso não vai ser grande coisa e que acabará logo, mas infelizmente não será assim.

— Está tudo bem – Aurélio falou com certo sorriso no rosto. – Tenho a mais plena certeza de que um antigo lobo como ele será capaz de suportar algo assim, não é mesmo?

Raleigh olhou para o homem com certa raiva em seus olhos. Ele sabia que o diretor estava se divertindo com aquilo, mas se realmente funcionasse, ele poderia se livrar daquelas marcas. Foi exatamente por isso que ele apenas rangeu os dentes e não respondeu de volta.

— Parece que não vai responder dessa vez, não é? – o diretor o provocou, um pouco decepcionado.

— Isso vai ser algo realmente doloroso, por isso a única coisa que posso dizer a você agora é “aguente firme o máximo que puder” – Flamel falou e, no instante seguinte, cravou seus dedos no abdômen de Raleigh. – Expurguem, Chamas da Purificação Celestial.

Os gritos vieram no mesmo instante em que as chamas esverdeadas nos dedos de Flamel foram inseridas dentro do corpo de Raleigh. Ele sentiu que elas percorriam por todo o seu corpo enquanto queimava sua carne e pulverizavam seus ossos – se debatendo e contorcendo para conseguir se livrar daquelas correntes. Quanto mais as chamas percorriam por seu corpo, mais Raleigh urrava e tentava se livrar das correntes à força.

— Isso não é bom, Sr. Diretor... – informou Flamel suando frio pelo rosto.

— O que houve?

— As marcas estão muito profundas. Muito mais do que apenas na carne e nos ossos dele... Elas chegaram ao seu fluxo de magia.

Aurélio arregalou os olhos. Não pelo que Flamel havia dito, mas sim pelo o que seus olhos enxergavam.

— As correntes estão se partindo...?

As correntes que prendiam Raleigh tinham outro propósito além de restringir seus movimentos. Elas também drenavam seu poder mágico para que todos os circuitos mágicos do corpo dele estivessem vazios.

Haviam dois motivos específicos para que isso fosse necessário.

O primeiro era impedir que o poder mágico dele entrasse em colapso e ficasse fora de controle por causa do choque que a mente e o corpo receberiam. Caso isso acontecesse, Raleigh poderia se tornar uma bomba prestes a explodir.

O poder mágico de um mago é muito volátil e instável. Qualquer um que almejava ser um mago precisava passar por um treinamento mental e físico para fortalecer seu espirito e assim ter total controle sobre seu poder mágico.

O segundo motivo era impedir que seu poder mágico se fundisse completamente às Marcas da Depravação. O objetivo era isolar totalmente os circuitos já infectados por elas e os purificar com as chamas de Flamel.

Se não houvessem feito isso, mesmo que as marcas atuais fossem expurgadas, ainda haveriam pequenos rastros delas circulando nos fluxos de magia de Raleigh. Caso isso ocorresse, seria apenas questão de tempo até que elas infectassem seus circuitos mágicos e ressurgissem mais uma vez.

— Não apenas isso. Os pilares também começaram a ceder! E também, eu não gosto nem um pouco desse poder mágico que estou sentindo agora....

Flamel estava em contato direto com o corpo e circuitos mágicos de Raleigh. Ele podia sentir que algo não estava certo e isso o deixou apreensivo. Mesmo urrando e agonizando, Raleigh estava se esforçando ao máximo para suportar, mas por outro lado, ele também tentava se livrar das correntes que o prendiam a qualquer custo e era isso o que estava dando a Flamel um mau pressentimento.

O professor também sentiu outro poder mágico começar a emergir das profundezas da alma de Raleigh assim que começou a expurgar as Marcas da Depravação. Era um poder mágico sombrio, feroz, violento e com uma incrível sede de sangue.

— Ei.

Os olhos de Flamel se arregalaram quando aquela voz alcançou seus ouvidos. Ele rapidamente olhou para cima para então se deparar com um par de olhos completamente acinzentados o encarando de volta, não sentindo qualquer traço de humanidade deles, que o encaravam com superioridade.

— Que porra você pensa que está fazendo me tocando com essas mãos imundas, humano?!

Flamel engoliu em seco.

Aurélio tinha uma expressão de espanto estampado em seu rosto. Aquela era uma situação totalmente imprevista da qual ele não havia criado qualquer contramedida para resolver. Ele realmente havia subestimado demais aquele homem, tal qual Corona havia dito que ele o faria. Pelo visto aquela mulher era a que mais sabia sobre quem era Raleigh Rivaille, assim como aquela que o mais compreendia.

— Ah, entendi. Parece que o pirralho finalmente decidiu agir por conta própria dessa vez.

A voz era carregada por malícia e raiva que não podiam ser compreendidas. Ela era repugnante e asquerosa aos ouvidos dos outros, causando um mal-estar e apreensão a qualquer um a que a escutasse.

O que foi que você trouxesse daquele lugar, seu maldito lobo?! — foi o único pensamento que passou pela mente de Aurélio naquele momento.

— Quem é você? – perguntou Flamel ainda com a mão dentro do abdome de Raleigh.

Aquela era uma aposta altamente arriscada que ninguém ainda havia tentado antes, por tanto, Flamel não sabia quais seriam as consequências se ele interrompesse o feitiço antes de terminar de expurgar as marcas. Ele temia que Raleigh poderia sofrer danos severos dos quais não haveriam como reparar ou, talvez, sequelas que jamais desapareciam.

Era uma decisão arriscada desde o começo, mas Flamel não podia parar por causa daquele imprevisto.

— Eu? Não há necessidade de eu me apresentar para um mero humano. Além disso, essas coisas estão começando a me encher a paciência!

— Aurélio!

— Eu já percebi! Arte Mística de N°. 34: Gaiola de Luz da Torre Dourada!

Assim que ambos perceberam que aquilo estava prestes a destruir as correntes que o restringiam, Aurélio agiu rapidamente e lançou um feitiço de aprisionamento. Ele invocou cinco pilares de luz ao redor de Raleigh, esses pilares formavam um círculo que eram conectados por correntes tomando uma forma semelhante à de uma gaiola. Bastões surgiram dos pilares de luz e se estenderam até atingirem o corpo de Raleigh, atravessando sua carne e seus ossos como espinhos para restringir ainda mais seus movimentos.

Como aquele era um feitiço puramente criado para restringir, ele não feria o corpo, mas o tornava totalmente rígido e impossibilitado de se mover facilmente.

— Nada mal para um moleque de merda! – Raleigh gargalhou com ferocidade. – Mas é uma pena, isso não vai ser o suficiente para me impedir!

Ele fez com seu poder mágico aumentasse e explodisse de uma única vez, causando uma forte e violenta ventania que abalou o lugar e fez as paredes estremecerem. Os bastões de luz não puderam suportar e foram estilhaçados juntamente com a gaiola. Com um dos braços livres, Raleigh segurou uma das correntes e canalizou seu poder mágico nela. A corrente não conseguiu suportar toda aquela quantidade e rachou, quebrando-se e se livrando do pilar na qual estava presa.

— Arte Mística de N°. 21: Barreira de Cristal!

Aurélio invocou uma barreia ao redor de Flamel para protege-lo da corrente que foi lançada em sua direção, conseguindo salvá-lo por pouco. Se houvesse demorado um segundo a mais para perceber o que Raleigh realmente pretendia, seria tarde demais.

— Flamel, afaste-se dele agora mesmo! – ele ordenou.

Flamel hesitou por um instante. Ele temia que se interrompesse aquele feitiço antes de completa-lo, deixaria sérios danos em Raleigh, mas dada a situação em que se encontrava, ele foi obrigado a recuar e se afastar.

Ele saltou para longe, pousando logo ao lado de Aurélio. Suas pernas cederam e ele caiu sobre um dos joelhos. Estava ofegante, as sobrancelhas se contraindo de dor e o rosto pálido coberto por um suor frio.

— Ele me pegou... – confessou, tentando suportar a dor.

— Tsc! Só a mão – Raleigh reclamou. – Achei que conseguia arrancar o braço todo de uma vez.

Flamel segurou o braço, onde não havia nada do pulso para baixo. Ele não imaginava que aquilo fosse ter tanta força mesmo tendo seu poder mágico drenado. Seu descuido no último instante resultou na perca da mão direita – o sangue caindo no chão logo formou uma poça.

— Arte Sagrada de N°. 11: Fios Celestiais da Deusa da Lua – Flamel invocou os fios de luz para selar seu ferimento e fazer a dor cessar.

— Parece que nos deparamos com algo inesperado, meu caro Flamel.

Aurélio comentou com certa ironia, mas podia-se notar o nervosismo em suas palavras. Ele encarava aquilo que havia tomado conta do corpo de Raleigh com muita cautela, procurando entender o que é que estava acontecendo e o que exatamente era aquela coisa.

— Você está me encarando bastante, humano.

Raleigh puxou o outro braço que ainda estava preso pelas correntes. A força que fez foi o suficiente para rachar o metal da corrente e quebrá-la com facilidade. Quando seus pés tocaram o chão, ele canalizou seu poder mágico nas pernas para sobrecarregar as correntes que estavam enroscadas nelas e assim destruí-las como fez com as outras.

Após se livrar de todas as correntes que restringiam seu corpo, ele ergueu o rosto em direção a Aurélio, o qual continuava a encara-lo.

— Esses olhos de raposa traiçoeira estão me irritando. Acho que vou arrancá-los fora... Hum!?

Raleigh deu um passo à frente, mas foi ao chão, estático.

— O que!? Esse pirralho está tentando me expulsar à força...?! – ele rosnou ao tentar se levantar, mas os braços e pernas não o obedeciam. – Seu pirralho de merda!!! Acha que vai... Argh!!!

O corpo de Raleigh começou a se contorcer, urrando de dor quanto mais ele se debatia e resistia. Seu poder mágico começou a oscilar e ficar instável, a pressão aumentou e o ar se tornou quente.

— Merda! Merda! Logo agora que eu finalmente consegui sair...! Não pense que isso vai ficar assim, seu pirralho arrogante! Eu ainda vou tomar o controle, e quando isso acontecer, eu vou exterminar qualquer traço de consciência que ainda te restar!!! – gritou como uma fera enlouquecida e furiosa, liberando fortes explosões de poder magico que fizeram aquela câmara estremecer e o ar se tornar denso e pesado para se respirar.

As marcas negras que cobriam metade de seu corpo foram consumidas por chamas esverdeadas até que desaparecem por completo, deixando Flamel e Aurélio apreensivos sobre o que estava acontecendo.

Raleigh ficou caído com o rosto virado para o chão por alguns segundos.

De repente, ele se levantou num único impulso. Seu rosto estava pálido, o suor frio escorrendo por todo o corpo, os olhos atônitos e a boca ofegante. Ele virou-se para a direção em que Aurélio e Flamel estavam. Ambos puderam ver que os olhos dele voltaram a ser claros novamente, não possuindo mais aquele traço indiferença e superioridade de antes.

—  Foi mal. Não esperava que isso fosse acontecer... Hã...? O feitiço... funcionou.

Seu corpo, que antes estava parcialmente coberto pelas Marcas da Depravação, agora estava totalmente limpo, sem qualquer rastro daquelas marcas negras. Ele também percebeu que o braço gravemente ferido, ao ponto de ficar irreconhecível, estava curado.

Seu poder mágico estava muito mais estável do que antes, o fluxo de magia estava passando por seus circuitos mágicos outra vez. Os ossos já não doíam mais, os músculos não pesavam mais como ferro, o sangue não era mais como terra correndo em suas veias. Podia respirar melhor, seu corpo estava mais leve, não se sentia mais fatigado.

— Há muitas coisas que eu gostaria de perguntar – disse Flamel, se aproximando com certa cautela. – Mas a primeira delas é: o que era aquela coisa?

Raleigh virou-se para ele novamente e viu que o homem estava totalmente em alerta e receoso com ele. Era uma atitude lógica e sensata, principalmente depois do que aconteceu, mas ele não sabia como explicar aquilo de uma maneira que pudesse fazer sentindo, por isso ficou pensativo.

— Aquilo... – disse após alguns segundos em silêncio. – Aquilo era algo que não pertence a esse mundo.

 

◊◊◊

 

O manto alaranjado do crepúsculo banhava a capital imperial.

Era fim de tarde e as ruas estavam lotadas.

Trabalhadores das fábricas voltavam para suas casas com fim do expediente, alguns parando em bares e pubs para se refrescarem com uma cerveja gelada. Alunos das academias de artes mágicas voltavam para seus dormitórios após longas horas de estudos e pesquisas nas bibliotecas para complementar os assuntos que cairiam em breve nas provas. Mercadores e vendedores ambulantes recolhiam seus produtos e retiravam suas tendas depois de um dia bastante disputado com a concorrência.

Raleigh pegou a sacola de papel e retirou uma garrafa de uísque rubro – uma receita tradicional criada por uma tribo do norte do continente de Attilas. Apesar de não ser tão famoso e distribuído em grandes quantidades como as grandes e antigas marcas, ele era bem popular entre as pessoas da capital imperial por ter um sabor picante e revigorante, assim como ingredientes que auxiliavam na reposição do poder mágico de um mago.

Ele pegou dois copos de vidro e os encheu até a metade. Colocou um sobre a estrutura de concreto e ficou com o outro em mãos.

— Sabe, eu nunca entendi o porquê você se orgulhava tanto desse uísque – disse ele, após beber um gole. – O gosto é bem picante, a fragrância é forte, e ele é bem difícil de se encontrar fora da capital. Há muitas outras marcas melhores do que essa, sério. Então por que é que você sempre o comprava quando era a sua vez?

Apesar de estar reclamando, ele continuou bebendo.

— Eu acredito que havia algo de muito errado com o seu paladar, mas como você parecia estar satisfeito, a gente não reclamava e te acompanhava.

Raleigh olhou fixamente para o nome gravado ali com letras prateadas junto a uma mensagem honrosa. No céu algumas estrelas começavam a surgir conforme a noite surgia, as poucas pessoas ao redor começavam a se retirar e deixar o lugar vazio e solitário novamente.

Quanto tempo se passara desde a última vez em que parou e bebeu de uma maneira tão calma assim? Os últimos dois anos não foram os mais agradáveis e nem de longe foram os melhores. Sua caçada atrás da verdade sobre a tragédia da Lua de Sangue, assim como a vingança pelos responsáveis daquilo, resultaram em mais percas do que ganhos. No fim, tudo o que lhe restou foi o amargor e uma sensação de vazio.

Se ele houvesse escutado melhor as palavras de Corona naquele tempo, as coisas poderiam ter sido diferentes? Se ele escolhesse seguir em frente ao lado dos outros ao invés de abandonar tudo e se entregar à sede de vingança, os resultados seriam melhores? Se ele tivesse segurado a mão que lhe estenderam naquela vez, aquela sensação de vazio que carregava dentro de si teria desaparecido?

— Você lembra de Austerclouv, quando nós tivemos que defender aquela ponte? Eu realmente pensei que aquele seria o nosso fim. Nós perdemos a maior parte do nosso pelotão, ficamos sem poder mágico algum para ativar as cargas encantadas, mas no fim conseguimos segurar os inimigos até a chegada dos reforços.

Obviamente ele não receberia qualquer resposta para sua pergunta ali, mas precisava conversar com um bom amigo – colocar para fora todo aquele peso e sentimento de culpa que carregava dentro de si por um longo tempo. Agora que as Marcas da Depravação se foram, suas emoções entorpecidas estavam voltando aos poucos. Não havia mais apenas ódio e sede de vingança dentro dele como houve durante todo o tempo em que esteve na sua caçada pela verdade.

Havia notado isso pouco tempo depois que as marcas começaram a surgir em seu corpo, suas emoções lentamente desaparecendo. Era apenas um turbilhão de ódio e raiva incessante, e, por alguma razão, ele gostava daquilo, daquela sensação. Só quando estava prestes a trilhar um caminho sem volta foi que ele se deu conta de que estava sendo controlado pelas marcas a se entregar totalmente à sua sede de vingança.

Depois daquilo ele começou a procurar por maneiras de se livrar delas, mas não encontrou nenhuma. A única coisa que podia fazer era retardar seu avanço e ganhar algum tempo até que elas o consumissem por completo.

— Nós prometemos que se um morresse o outro deveria visitar o tumulo dele de vez em quando para conversar. Bem, eu sinto muito por ter demorado tanto tempo para vir dar um oi – ele ergueu o copo num brinde para a lápide a sua frente. – Há quanto tempo, Nikolai, meu velho amigo.

Pouco depois que saudou a lápide, Raleigh escutou algo cair atrás dele. Ao se virar por reflexo, percebeu que havia um buquê de flores caído no chão, onde muitas delas haviam se espalhado. Seus olhos percorrem o caminho do buquê até a pessoa parada ali. Ela tinha um rosto belo com feições delicadas, porém um pouco infantil para sua idade, tal qual sua estatura pequena, a qual muitas vezes lhe confundiam como uma criança.

— Ralei... gh... – ela balbuciou com espanto em seus olhos.

Se passaram dois anos desde a última vez que ela teve qualquer notícia até que Edna a informasse que ele estava na cidade, no dia anterior. Os cabelos estavam maiores do que ela lembrava, o rosto dele estava exausto e frustrado, muito diferente daquele rosto gentil e amigável que ele possuía. Mas mesmo assim, aquele continuava sendo o mesmo homem que a salvou antes, o homem a quem ela tinha uma enorme gratidão que jamais poderia pagar completamente.

— Olá, Tina. Já faz... – Raleigh a saudou, mas foi interrompido.

A garota avançou e se jogou sobre ele em um pulo, o abraçando.

Seus braços envolveram-se na cintura de Raleigh, as mãos segurando as roupas dele com força. Para Tina, parecia que se ela o perdesse de vista, o perderia para sempre. Ela o abraçava com força para ter a certeza que aquilo era real, de que ele realmente estava ali.

— Eu senti tanto a sua falta! Eu senti muito, muito, muito a sua falta! – dizia ela entre lágrimas e uma voz chorosa. – Por favor, não vá para longe novamente! Não desapareça mais assim sem dizer nada!

A garota agarrada nele continuou a implorar para que ele não fosse mais embora daquela maneira entre lágrimas. Raleigh queria dizer algo em sua defesa, mas ele não tinha esse direito, tampouco podia afastá-la dele. Ele apenas ficou ali ouvindo sem dizer ou fazer qualquer coisa enquanto olhava para Tina com olhos gentis e afagava seus cabelos numa tentativa de consola-la

Eu sinto muito, Tina — dizia em sua mente. Sinto muito por ter feito você sofrer durante esse tempo todo...


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