As Crônicas de Ainsworth escrita por Fore Project


Capítulo 6
Capítulo 05




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— Creio que saiba porque foi chamado, certo? – Aurélio juntou as mãos em frente ao rosto, lançando um olhar afiado à Raleigh.

Além dele e Helena, a qual sempre estava ao seu lado, havia mais quatro pessoas na sala.

Havia uma bela e jovem mulher que bebia seu chá de forma elegante. Ela tinha longos cabelos ondulados e castanhos. Os olhos grandes e amendoados possuíam uma expressão serena e inabalável, transmitindo um ar refinado somente por estar presente ali. A forma como agia e se movia, até mesmo os sutis movimentos que fazia ao apreciar seu chá, eram graciosos e cheio de elegância.

Raleigh reconhecia aquele tipo de comportamento bem mais do que gostaria. Era o exemplo perfeito da alta nobreza. Uma esplêndida e admirável nobre, cuja a elegância existia até mesmo no ar que a rodeava.

Tinha um homem não muito diferente também. Apesar da idade e dos cabelos brancos penteados para trás de maneira impecável, sua compostura e forma como se vestia era tão elegante quanto a mulher sentada ao seu lado no sofá de veludo vermelho. Tinha as mãos apoiadas sobre a bengala com cabo de ouro em forma de águia enquanto mantinha os olhos fechados, apenas aguardando e escutando.

Do outro lado da pequena mesa com chá, bolos e biscoitos, havia um homem que devia ser um pouco mais novo que Raleigh. Ele o encarava com uma expressão séria e carrancuda, parecendo irritado com a presença dele ali. Apesar de não ter uma aparência ruim, aquela expressão o tornava intimidador, provavelmente impedindo que qualquer pessoa tentasse se aproximar dele.

E o último, o qual Raleigh teve certo interesse, foi o homem sentado ao lado do último. Ele devia ter por volta da mesma idade que Aurélio, mas sua aparência era desleixada demais para se encaixar entre aquele grupo de pessoas elegantes.

Tinha os cabelos negros arrumados para trás de forma rebelde. Os olhos verdes demonstravam total e claro desinteresse, além das profundas olheiras que os circundavam. Parecia não ter feito a barba nos últimos dias, o tornando ainda mais desleixado que Raleigh, que tinha o costume de usar um casaco esfarrapado aonde quer que fosse.

O que chamou a sua atenção e despertou seu interesse naquele homem foi a roupa que ele usava, um jaleco branco e esfarrapado. E mesmo tendo aquela aparência desleixada e aqueles olhos repletos de desinteresse, o ar que o rodeava era totalmente diferente do que Raleigh já havia sentindo. Era um ar enigmático e misterioso, muito mais do que aquele que costumava cercar Aurélio.

— É... eu tenho uma certa noção sobre o que é – respondeu ele, parado em frente a porta massageando o pescoço.

— Como já deve estar ciente, todos os professores dessa academia foram escolhidos especialmente por mim. Esses quatro, no entanto, são aqueles em quem eu mais confio para me auxiliar nas decisões que devo tomar em relação ao futuro dessa academia.

— Entendo. Isso significa que eles estão aqui por causa do que aconteceu ontem, não é?

— Eles estão curiosos sobre os motivos que o levaram a tomar aquela decisão.

— A expulsão de um aluno é um ato que apenas o próprio diretor pode executar – comentou a mulher, colocando a xícara sobre pires na mesa de forma elegante. – Agora, a expulsão de uma sala inteira é algo que nunca aconteceu antes nessa academia. Poderia nos explicar o que foi que o levou a chegar a essa decisão?

Entendo — pensou Raleigh, vendo o sorriso escondido na face do diretor. ­— Esse maldito não contou exatamente o que aconteceu e agora está se divertindo com a situação.

— E então – disse a mulher, lhe lançando um olhar indagativo. – Poderia nos responder o que o levou a tomar tal decisão?

— Ah, aquilo foi uma aposta – Raleigh a respondeu sem qualquer emoção em sua voz.

— Uma aposta?

A mulher repetiu, a surpresa e confusão bem clara em seus olhos.

O homem de aparência desleixada do outro lado da mesa cobriu sua boca com a mão para abafar um riso. Ele aparentemente se divertiu bastante com aquela resposta inusitada – deixando Raleigh um pouco irritado com aquela atitude.

— Exatamente – respondeu ele, massageando o pescoço. — Eu fiz uma aposta com aqueles alunos. Eles precisam me enfrentar em um duelo. Se vencerem durante o limite de tempo, a expulsão será revogada e eu os deixarei em paz. Se não conseguirem, serão expulsos. As regras são simples: eles só precisam me derrubar antes que o tempo acabe.

— Mas isso é...

— Ah, não precisa se preocupar com diferença de força, eu não pretendo atacá-los. Foi uma das vantagens que prometi a ele: apenas irei me defender e esquivar dos ataques.

A mulher parecia ainda mais confusa e incrédula do que antes. Raleigh não ligou muito para a confusão estampada no rosto dela, sua atenção estava focada no homem de jaleco que parecia segurar a gargalhada com aquela situação.

— Isso é um completo absurdo! – exclamou o outro, parecendo ter chegado ao limite com Raleigh. – Como você ousa se chamar de professor?

— Bom, para começar, eu não tenho uma licença para ser professor.

Raleigh não parecia se importar com o homem que bufava para ele, mesmo sendo um pouco mais novo. Na verdade, ele nem mesmo tentou se esforçar para esconder a total falta de interesse que tinha naquela conversa, só queria poder encerrá-la e voltar para os seus afazeres. Ele ainda não havia dormido direito desde que chegou à capital, além de que os efeitos da falta de sono e a exaustão por passar tanto tempo sem descansar a mente estavam começando a aparecer.

Ele não se sentia de tal maneira desde a época em que ainda estava no exército imperial, quando precisou ficar acordado por muitos dias nos campos de batalha contra as outras nações. Sempre se mantendo alerta durante as noites a qualquer som suspeito que chamasse sua atenção.

— Bom, bom, eu acredito que ele tenha seus próprios motivos para decidir fazer algo assim. Por que não tenta dar uma chance a ele, professor Baltar? – perguntou o homem de jaleco branco tentando acalmar o professor mais novo, ainda parecendo segurar a gargalhada.

Raleigh entendeu no mesmo momento porque é que o homem havia atraído seu interesse da tal maneira. Ele já ouvira falar dele antes, mas não havia se dado conta até então porque a falta de sono começou a retardar seu raciocínio pouco a pouco, o impedindo de perceber e entender as coisas com mais facilidade do que costumava perceber. Devido a tempestade da noite anterior, ele passou por um frio infernal durante a madrugada enquanto lia alguns documentos e registros antigos relacionados a conversa que teve com Edna, deixando os músculos do pescoço bastante doloridos naquela manhã.

Aquele era Flamel, um homem tão ardiloso que até mesmo os nobres mais arrogantes e poderosos evitavam o enfrentar diretamente ou ter de lidar com ele. Também era o gênio responsável pelas principais descobertas sobre magia como poder bélico para o exército imperial, sendo um dos pesquisadores e cientista mágico mais renomados do Império. Sua fama era tanta que até mesmo a própria Corona o havia aconselhado a tomar bastante cuidado caso o encontrasse e tivesse de lidar com ele algum dia, afirmando que ele poderia ser muito mais louco e excêntrico do que as pessoas costumavam dizer.

— Creio que você também esteja curiosa para saber o que ele pretende fazer. Certo, professora Sophia?

Flamel perguntou a mulher, a qual ainda aparentava confusão em seu belo rosto. Aurélio se manteve em silêncio, pouco a pouco aumentado o sorriso que escondia por detrás das mãos juntas em frente ao rosto. Helena servia um pouco de chá quente a ele – colocando o pires e a xícara próximos de onde ele pudesse pegar com facilidade.

— Se me permite, gostaria de entender o que usou como base para chegar a tal pensamento – disse Sophia. – Ainda não consegui entender sua linha pensamento.

Raleigh suspirou. Ele estava bastante casando para ficar explicando a maneira como pensava ou enxergava as coisas, mas Sophie parecia realmente perdida na forma como ele havia chegado àquela conclusão apenas alguns instantes após entrar em contato com os alunos daquela turma.

— Até onde eu sei, aqueles alunos já tiveram cerca de três professores anteriores. E pelo que me foi dito, todos eles tentaram prejudicá-los. Isso os fez perderem a confiança em qualquer um que tentasse se aproximar. Além disso, também houve dois professores que tentaram se aproximar deles para ensiná-los, mas falharam. Archibald Carlyle...

Raleigh olhou para a direção do homem de cabelos brancos, o qual contorceu brevemente o rosto e segurou com força o cabo de ouro da bengala. Em seguida, retornou seu olhar para a mulher que esperava ele terminar de respondê-la, cerrando os punhos de forma discreta sobre suas pernas.

— ... E Sophia Fernandez – disse ele, a encarando. – Vocês dois tentaram agir de alguma maneira depois que todo o estrago foi causado naquela turma, mas era tarde demais e por causa disso acabaram falhando.

— E como a pode provar que a forma que está agindo agora não acabará em fracasso também? – perguntou Sophia, com um tom frustrado encarando os próprios punhos. – Poderia me responder isso?

— Eu sei lá – respondeu ele, de imediato. – Eu não pensei muito a fundo quando fiz aquela aposta. Apenas me pareceu ser a melhor forma de fazê-los entender que ficar emburrado e magoado com as coisas o tempo todo não vai funcionar para sempre. Bom, a maioria deles possui um padrão de habilidades elevado para uma turma secundária, então eu acho que uma hora ou outra eles iriam acabar percebendo isso. Eu apenas adiantei as coisas.

— Essa é uma maneira interessante de se ver as coisas – comentou Flamel, mostrando profundo interesse em seus olhos.

A sala foi tomada por um longo silencio após aquilo.

— Nós só pensamos que podíamos fazer algo – murmurou Sophia, baixando a cabeça.

— Infelizmente, o que você disse está correto – concordou Archibald, finalmente se juntando a conversa. – Nós só tentamos compensá-los pelo mal que os fizeram, mas nunca tentamos guiá-los para que pudessem encontrar uma maneira de superar isso. Entretanto, a maneira como você está tentando lidar com a situação também não é correta, e se errar no que está tentando fazer, poderá causa um dano muito maior e irreparável.

— Quem sabe. Pode ser que funcione ou pode ser que não funcione. Mas a resposta nunca virá se nunca tentar, não é? Uma aposta funciona da mesma maneira: você pode vencer ou pode perder, mas não vai saber se nunca tentar.

— Mesmo que o que diga pareça correto, você não tem autoridade para decidir o que fazer com uma turma inteira – refutou Baltar. – Como o professor Archibald disse antes, se você errar pode causar algo irreparável. O que pretende fazer caso falhe? Como pretende justificar e compensar pelo fracasso? Você já pensou nisso?

Raleigh apenas suspirou novamente. Ele finalmente havia entendido porquê aquele homem parecia irritado com ele. A resposta era clara e simples: porque ele não gostava dele.

Desde o momento em que os dois se encontraram, Baltar não gostou dele.

Não importava o que Raleigh dissesse, Baltar continuaria não gostando dele, e por isso, tudo o que Raleigh dissesse ou fizesse só acabaria irritando aquele homem de expressão rígida e intimidadora. E o motivo pelo qual Baltar não gostou dele era mais simples ainda: porque ele era um nobre e também um militar.

Sua maneira de agir e falar, a forma como se vestia e se portava, era exatamente a mesma de um orgulhoso militar do império, os quais tendiam a ser mais problemáticos que os outros. Por isso, ver alguém que já serviu o exército imperial daquela maneira tão desleixada acabou ferindo seu orgulho como soldado exemplar e o incomodou de diversas maneiras.

— Diga-me, professor Baltar, você é militar, correto? – perguntou Raleigh, apenas para confirmar sua dúvida mesmo.

— É claro que sou – respondeu Baltar, com orgulho. – O homem que não serve o próprio império com orgulho e convicção é apenas um grande tolo.

— Entendo – Raleigh suspirou. – Nesse caso, o que acha de fazermos uma aposta de duelo?

— Isso me parece ser interessante – comentou Flamel, coçando a barba por fazer.

— O que está planejando com essa proposta repentina?

— Como vocês não parecem convencidos com o que eu disse e a forma como eu planejo fazer as coisas, achei que poderíamos resolver isso em um duelo simples. Como militar, você sabe muito bem como funcionam os duelos, não é?

— No exército imperial, um duelo é usado para uma disputa entre dois lados. O lado vencedor tem o direito de decidir o que fazer com o lado perdedor – Baltar explicou para os outros. – Em outros casos, quando uma aposta é feita entre os dois lados, ela deve possuir o mesmo valor.

—  Se você vencer, eu revogo a expulsão dos alunos e abandono o cargo de professor temporário, já que não tenho uma licença para lecionar e vocês parecem não gostar muito de mim. Se eu vencer, apenas continuarei o que já comecei. Simples, não é?

— Não acha que é a oportunidade perfeita, professor Baltar? – perguntou Flamel, colocando um pouco de chá em sua xícara. – Se você não está de acordo com a forma como ele pretende lidar com a situação daquela turma, pode fazê-lo desistir disso nesse duelo.

— Eu não creio que seja uma boa ideia – refutou Sophia. – A questão aqui deveria ser como cuidar dos alunos daquela turma, não sobre quem está certo ou errado. Eu concordo que a forma como ele pretende lidar com aquelas crianças não é exatamente a correta, mas não acho que tenham de duelar para provar quem está certo aqui.

— Não é exatamente por isso que essa se tornou a situação perfeita para tal caso? – interveio Aurélio, finalmente se juntando a conversa depois de um longo tempo. – Como ainda parecem ter dúvidas em relação a ele, vocês podem tirar suas próprias conclusões se Raleigh é adequado ou não para ser o responsável por aquela turma. É uma ótima maneira de observar do que ele é capaz de mostrar a eles.

Todos ficaram em silencio por alguns instantes.

Raleigh encarou Flamel, o qual manipulou a situação para que chegasse àquele desfecho, assim como Aurélio, quem armou tudo para que as coisas chegassem àquele ponto. Archibald se manteve em silêncio, pois não tinha o direito de se intrometer em um confronto entre dois homens que estavam de acordo. Sophia apenas aguardava pela resposta de Baltar em silêncio, já sabendo o que ele escolheria – por isso aceitou sem dizer mais nada.

— Está bem – respondeu Baltar, após pensar por um breve momento. – Tenhamos um duelo.

 

◊◊◊

 

— As regras são simples: só precisamos acertar um golpe – explicou Raleigh, pegando uma das espadas de madeira. – Aquele que acertar um golpe direto no oponente primeiro, vence.

Eles estavam em um dos salões de duelos mágicos onde costumavam acontecer os treinamentos de combate utilizando magias de ataque e defesa. Como uma academia de artes mágicas, combates mágicos e corpo a corpo estavam entre as diversas matérias que os alunos precisavam estudar e praticar. Obviamente, nem todos eram muito bons nessas aulas, mas eles não eram obrigados a possuir uma pontuação elevada para passar. Apenas precisavam atingir a quantidade de pontos necessária que podia ser obtida ao executar magias ofensivas e defensivas simples durante os exames de avaliação.

Além dos salões, haviam as arenas de duelos mágicos onde normalmente aconteciam os confrontos mágicos que eram exibidos durante os festivais acadêmicos ou jogos mágicos, os quais aconteciam uma vez por ano. Eles eram tão famosos e populares que acabavam por ser um dos eventos mais aguardados da capital imperial, possuindo sete dias de atrações que reuniam milhares de turistas todos os anos para assistirem as Academias de Artes Magicas de Combate disputarem entre si.

— Um duelo de espadas? – questionou Baltar, com certa confusão observando a espada de madeira em sua mão. – Você tem que certeza de que não prefere me enfrentar em algo que você seja melhor?

Magos, além de técnicas e habilidades especiais, podiam utilizar armas para a execução da magia em combate. O tipo de arma podia variar de acordo com o estilo de técnica ou luta que cada mago usava. Alguns nem mesmo dependiam delas – esses normalmente eram magos que utilizavam magias de suportes, cura e proteção, as quais não exigiam a necessidade de qualquer armamento.

No exército, as armas mais comuns que magos costumam usar eram as de fogo. Tais como rifles, espingardas e pistolas. Haviam aqueles que preferiam o uso de lâminas como suas principais armas de combate, fossem elas adagas, espadas ou machados. E entre eles também existiam aqueles que optavam pelo uso de armas incomuns ou mais especificas, tais como manoplas, arcos, foices ou bastões.

— Então você é bom em esgrima? – perguntou Raleigh, surpreso.

— Não gosto de me gabar, mas quando ainda era um cadete, eu era um dos melhores em esgrima e cheguei a derrotar vários veteranos em duelos oficiais.

— Isso é melhor ainda. Se eu derrotá-lo em algo que seja bom, você não terá mais reclamações, certo? Você também não precisa se segurar, pode vir com força total.

— Eu o aconselho a não cantar sua vitória antes da hora. Nunca se sabe o que pode acontecer antes do fim.

Baltar adotou uma postura de ataque onde Flamel não conseguiu ver qualquer abertura – mostrando que ele devia possuir uma ótima noção de luta com esgrima. Raleigh, por outro lado, apenas adotou uma postura qualquer onde havia tantas aberturas que Baltar não pôde deixar de expressar seu desprezo e irritação pela forma leviana e irresponsável como ele parecia lidar com as coisas.

— Certo, assim que a moeda tocar o chão, vocês podem começar – Helena mostrou uma moeda de ouro.

Ela foi escolhida para ser a juíza daquele duelo e intervir caso houvesse alguma irregularidade ou trapaça, podendo anulá-lo ou até mesmo declarar o lado infrator como perdedor instantaneamente. Aquela função era para ser de Flamel ou Aurélio, mas ambos pareciam estar mais interessados no que aconteceria e acabaram por deixar tal tarefa por conta de Helena, a qual aceitou sem nenhuma hesitação.

Sophia e Archibald apenas observavam em silêncio. Nenhum deles se sentia no direito de dizer alguma coisa para intervir naquele duelo uma vez que os dois homens concordaram, e tudo o que podiam fazer era esperar pelo resultado. Como ambos eram nobres, eles tinham uma ótima noção sobre combates mágicos e duelos como aquele, afinal, tiveram todo um treinamento e preparação de suas casas quando mais novos. Assim eles podiam dizer com total clareza que Raleigh não tinha chance alguma de passar pela defesa impenetrável de Baltar com aquela postura desleixada.

Ele está completamente exposto — analisou Baltar, prevendo os possíveis movimento que Raleigh faria. Esse maldito realmente pretende levar isso a sério?

— Comecem! – exclamou Helena, assim que a moeda tocou o chão.

Baltar avançou sem se segurar deixando apenas um rastro de sua imagem para trás.

Todos ficaram surpresos pela incrível velocidade com a qual ele se moveu para surgir atrás de Raleigh quase que instantaneamente. Pretendia acabar com aquele duelo em um único e rápido movimento, golpeando o enorme ponto cego que havia nas costas de Raleigh para nocauteá-lo, mas tudo o que acertou foi uma imagem também deixada para trás do mesmo ao se esquivar daquele ataque.

Com um movimento extremamente veloz ele inclinou o corpo para o lado, girou e moveu sua espada na direção de Baltar, que ainda não havia se recuperado do movimento anterior e agora estava exposto. Ele mal teve tempo para reagir e tudo o que conseguiu fazer foi mudar a posição de sua espada para se defender. E ainda sem ter tocado o chão, Baltar ficou sem qualquer apoio e teve de absorver o impacto do golpe, sendo arremessado para trás.

Baltar rodopiou no ar e pousou. Estava surpreso e um tanto pasmo com aquele desenvolvimento repentino da situação.

Ele não esperava que Raleigh possuísse reflexos tão rápidos, e, uma boa noção de equilíbrio ao executar um movimento como aquele sem torcer pé que usou para girar em alta velocidade. Havia o subestimado, admitia isso internamente, mas não permitiria que isso o impedisse de vencê-lo. Só precisava tomar mais cuidado quando fosse avançar e executar um movimento veloz contra um oponente com reflexos bons – teria de ter pelo menos dois ou três movimentos sequenciais quando fosse atacar novamente.

Enquanto Baltar analisava e planejava tudo aquilo em sua mente, Raleigh já estava diante dele com a espada a pouco centímetros de lhe acertar o rosto antes que o mesmo pudesse se dar conta. O tempo de reação de Baltar foi tão lento que mal conseguiu se defender daquele ataque, tendo o corpo arremessado para trás novamente.

Droga! Eu baixei minha guarda...

Assim que tentou inclinar o corpo no ar para conseguir pousar sem perder o equilíbrio mais uma vez, Raleigh o aguardava com outro movimento de ataque. Sem nem uma outra alternativa, Baltar bateu a ponta da espada de madeira contra o chão para desacelerar bruscamente, conseguindo assim evitar a linha de alcance do ataque de Raleigh.

Interessante — pensou Flamel sorrindo ao observar aquele duelo. Ele está começando a pressionar Baltar.

A diferença entre o movimento de ambos era notável.

Baltar, apesar de estar sendo pressionado, se movia para atacar e defender de uma maneira que não precisasse desperdiçar tantos movimentos. Ele tentava poupar o fôlego e as energias para assim durar muito mais tempo sem precisar descansar – um estilo de luta refinado por anos de treinamento dedicado.

Raleigh, por outro lado, se movia de maneira exposta e desleixada, possuindo inúmeras aberturas por onde poderia ser atacado e derrotado facilmente. Ele usava movimentos pesados e desnecessários, gastando fôlego e energia muito rápido – era quase como uma besta que lutava usando apenas a selvageria e força bruta.

Só que, mesmo com essa enorme discrepância entre os dois estilos de luta e postura, onde Baltar claramente deveria ter a vantagem, era ele quem estava sendo pressionado cada vez mais.

— Parece que eu o subestimei – confessou Baltar, ficando de pés após ganhar distância entre os dois. – Confesso que o julguei errado e não pensei que realmente soubesse alguma coisa sobre esgrima ou lutas com espadas.

— É, normalmente isso costuma acontecer bastante – respondeu Raleigh, apoiando as mãos na espada de madeira feito uma bengala. – Não precisa se preocupar, eu não me importo.

— Eu realmente não pretendia levar esse duelo muito a sério, mas pelo que parece, eu não posso mais fazer isso.

— Então você estava pegando leve até agora? Eu te disse que podia vir com tudo o que tinha.

— Ora, não precisa se preocupar com isso. É exatamente o que pretendo fazer.

Raleigh não teve nem mesmo tempo para piscar quando Baltar surgiu diante dele. Só teve tempo para colocar sua espada na frente e evitar que fosse golpeado com aquele ataque, mas a força e o impacto foram tão fortes que ele acabou por ser arremessado no ar no mesmo instante.

O estilo dele mudou? — foi tudo o que Raleigh conseguiu pensar enquanto era arremessado para o alto.

Ele tentou rodopiar no ar para cair de pés sem perder o equilíbrio, mas Baltar não permitiu que ele pudesse fazer isso e saltou em sua direção o obrigando a adotar uma posição de defesa novamente. Baltar mudou a trajetória do ataque e girou para as costas de Raleigh onde tentou lhe acertar um golpe certeiro, mas errou por muito pouco.

Sem que Raleigh sequer pudesse respirar direito, Baltar investiu sobre ele com uma sequência de ataques velozes e poderosos – onde se fosse atingido por apenas um, seria o fim. Raleigh foi obrigado a se defender e recuar até conseguir uma boa distância entre eles, só que Baltar não permitiria isso tão facilmente assim e se aproximava com outra sequência de ataque todas as vezes que ele tentava sair do alcance de sua espada.

Baltar realmente não estava mentindo quando disse que era um dos melhores em esgrima quando ainda era apenas um cadete. Seus movimentos estavam se tornando cada vez mais velozes e difíceis de se acompanhar para aqueles que os assistiam. Sophia e Archibald mal conseguiam ver a sequência de ataque e defesa simultânea que acontecia quando ambos trocavam golpes com as espadas de madeira.

— Como ele consegue ser tão veloz assim? – perguntou Helena, uma gota de suor fria lhe descendo o rosto. – Eu mal consigo acompanhar.

— O professor Baltar é um usuário do tipo vento, por isso a maioria de suas habilidades e movimentos são baseados em sua velocidade – explicou Flamel, colocando um cigarro na boca. – Como você já deve saber, magos são usuários das artes mágicas de combate e costumam usar suas técnicas e habilidades de acordo com um dos cinco elementos primários com o que são mais aptos.

— Água, fogo, terra, ar e raio, não é?

— Exatamente. Cada um desses elementos possui um atributo especial, sendo eles: velocidade, resistência, cura, dano e penetração. A água possui o atributo da cura; a terra possui o atributo da resistência; o raio tem o atributo de penetração; o fogo possui o dano; enquanto o vento possui o atributo da velocidade.

Para cada atributo especial que mencionava, Flamel levantava um dedo.

— Mas tenho de admitir que estou surpreso por ele conseguir acompanhar aquela velocidade.

— Sim – concordou Aurélio com um sorriso animado com tal situação. – Me pergunto quanto tempo vai levar até que a defesa dele seja quebrada.

— Até onde sei, Baltar só perdeu algumas raras vezes em um duelo de esgrima – comentou Sophia, uma gota de suor frio lhe descendo o rosto. – Embora eu não seja tão boa quanto ele, tenho uma certa noção sobre combates e duelos com espadas. É por isso que foi fácil saber quem venceria esse duelo antes mesmo dele começar, então como... – sua face estava pálida e o olhos atônitos.

Sophia estava em choque com o desenrolar daquele duelo que se tornava cada vez mais intenso. Ela estava confusa e pasma, pois ele já deveria ter acabado há muito tempo e o vencedor seria algo que já esperavam, mas não era isso que se passava diante dos olhos de todos ali.

— Como é que ele está conseguindo acompanhar os movimentos de Baltar naquela velocidade? – questionou ela, assustada. – Ele está se adaptando conforme o passar do tempo?

— Não – respondeu Flamel, colocando as mãos nos bolsos do jaleco. – É mais como se estivesse despertando os instintos que estavam adormecidos.

— Como?

— Se observar direito, vai perceber que Baltar está começando a se cansar. Sua respiração está ficando cada vez mais ofegante e seus movimentos, embora mais velozes do que antes, estão começando a se tornarem cada vez mais pesados.

Sophia obedeceu e observou melhor o que estava acontecendo, e tal qual disse Flamel, Baltar realmente estava ficando cada vez mais cansado conforme o tempo do duelo se estendia.

A respiração dele estava pouco a pouco mais ofegante e os movimentos mais rígidos e pesados. Embora sua velocidade estivesse maior que antes, Raleigh estava começando a acompanhá-lo, esquivando e se defendendo dos golpes com mais precisão e agilidade que antes, como se soubesse exatamente quais os movimentos que o oponente faria no instante seguinte.

Baltar também percebeu que Raleigh começara a se adaptar aos seus movimentos e, como havia dito antes, ele não estava se segurando e estava usando tudo o que aprendeu durante os longos anos que treinou e refinou sua esgrima. Chegou até mesmo a ativar sua aceleração dupla – a qual lhe permitia se mover duas vezes mais rápido que sua velocidade máxima comum.

Quanto mais Baltar se esforçava, mais Raleigh se adaptava a sua velocidade e padrões de ataque, sempre prevendo o próximo movimento no instante em que se defendia ou esquivava. Isso fez Baltar perceber que ele havia subestimado aquele homem muito mais do imaginava, o julgando errado ao se basear na forma como ele se posicionou e movimentou desde o começo. Quando se deu conta disso, também percebeu algo que havia ignorado completamente por tê-lo subestimado de tal maneira...

Raleigh também podia utilizar aceleração dupla para aumentar sua velocidade de movimento.

Eu o subestimei... — pensava ele, movendo e atacando, se defendendo e esquivando. Esse homem não é um ignorante em esgrima... Esses movimentos não foram obtidos em simples treinamentos ou duelos simulados... Eles foram conquistados através de experiencias reais...

Não importava qual movimento fizesse ou quantas fintas tentasse, Raleigh conseguia ver através dos movimentos de Baltar e os usava sem hesitação alguma para contra-atacar, o obrigando a ter de se defender ou esquivar, sendo fortemente pressionado conforme o duelo se estendia. E mesmo não se passando mais que alguns poucos minutos, Baltar sentia que estava duelando há várias horas – as juntas do corpo começando a doer e os músculos gritando por um descanso.

Raleigh, por outro lado, ficava cada vez mais rápido e preciso em seus movimentos, não tendo qualquer alteração no ritmo de sua respiração. Seus ataques se tornando cada vez mais difíceis de defender ou esquivar, o cansaço parecendo longe de o alcançar, tornando assim a pressão muito maior para Baltar.

— Parece que você já chegou ao seu limite – comentou Raleigh. – Nesse caso, vamos encerrá-la de uma vez.

E com um único e rápido movimento ele empurrou a espada de Baltar para o lado, obrigando o professor a perder o equilíbrio de todos os seus movimentos. Raleigh moveu sua espada de madeira e avançou, acertando em cheio o peitoral de Baltar que agora estava completamente exposto e vulnerável – um alvo fácil e simples de se acertar.

Baltar não teve um único segundo para recuperar o equilíbrio e tomar uma postura de defesa contra aquele golpe. Tudo o que conseguiu fazer foi observar a ponta da espada de madeira de Raleigh tocando o tecido de suas roupas sobre a região do peitoral, sendo jogado para longe pelo impacto do golpe.

— Duelo encerrado, o vencedor é Raleigh Rivaille – disse Helena, erguendo uma das mãos em direção a Raleigh. – A vitória foi ganha de forma justa e limpa, sem trapaças ou intervenções de outros.

Ninguém parecia ser contra ou pretendia contestar aquilo.

Sophia e Archibald foram em direção a Baltar, o qual ainda estava caído no chão do salão de duelos mágicos observando o teto abobadado bem longe. Parecia estar refletindo profundamente a respeito do que acabara de acontecer, e assim que Archibald estendeu a mão para ajuda-lo, ele a pegou e ficou de pés.

— Eu venci o duelo – disse Raleigh colocando seu casaco novamente, devolvendo a espada de madeira ao lugar de onde a pegou logo em seguida. – Você não tem nada contra esse resultado, não é?

— Sim, e mesmo não aceitando a forma que está tentando fazer as coisas, não irei interferir na forma como pretende lidar com aquela turma, assim como combinamos – respondeu Baltar, se aproximando. – Mas há algo que eu quero saber antes.

— O que seria?

— Mesmo a vantagem de velocidade sendo claramente minha, você parecia saber exatamente todos os movimentos que eu faria. Como?

— Ah, isso?

Ele se sentiu um pouco desconfortável diante daquela pergunta, porque era uma das poucas coisas que realmente o traumatizaram quando ainda era mais novo.

— É que já vi aqueles mesmos movimentos tantas vezes que eles ficaram gravados no meu corpo, literalmente, já que minha mestra não costumava pegar leve no treinamento, então ela atacava pra valer. Graças a isso, eu tinha que apostar minha vida quase todo os dias.

— Sua mestra? – Baltar perguntou, confuso com a expressão assustada e pálida de Raleigh. – Qual o nome dela?

— Corona Vasconcelos.

— O que...?

Baltar caiu de joelhos, o rosto tomado por uma expressão pasma como se houvesse visto um fantasma.

— Ah, entendi – comentou Raleigh, com um sorriso amarelo. – Então você já a conheceu.

— Não – negou Baltar, ainda abismado. – Não a conheço pessoalmente, mas ouvi várias histórias a respeito dela, a respeito da instrutora demoníaca do exército imperial. Uma instrutora tão brutal e violenta que até mesmo os soldados mais resistentes e com a mente de aço não conseguiram suportar o treinamento infernal dela.

— Bem, as histórias não estão erradas, mas aconselho a não chamá-la assim caso a encontre pessoalmente algum dia. É bem provável que ela possa te matar, ou te faça ficar inconsciente por algumas semanas, dependendo do humor dela.

Raleigh riu sem graça do próprio conselho, apesar de estar falando realmente sério.

— Bom, se vocês não têm mais nada a tratar comigo, irei me retirar. Ainda tenho que resolver alguns assuntos a respeito da minha mudança.

— Se precisar de ajuda, pode levar Helena com você – sugeriu Aurélio, estalando os dedos. – Tenho certeza de que ela poderá ajudar bastante, além de que, ela também parece ter gostado bastante da conversa que tiveram ontem.

Raleigh o encarou com desconfiança, já sabendo o que Aurélio pretendia ao sugerir aquilo.

Como na situação anterior, ele não contou exatamente todo os detalhes a respeito do que Raleigh pretendia fazer para lidar com a situação da turma secundária – manipulando tudo para que terminasse daquela maneira, onde Raleigh teve que mostrar um pouco sobre suas habilidades aos outros e assim convencê-los.

Agora Aurélio planejava mandar Helena para que pudesse observar todos os passos que ele faria enquanto não estivesse por perto, utilizando daquela situação para fazer tudo de uma maneira natural.

Raleigh estava prestes a recusar, mas assim que viu a expressão um tanto inquieta da garota, ele desistiu. Apesar de possuir um rosto e um olhar inexpressivo, ela realmente parecia querer ir com ele, o que o fez suspirar profundamente em desistência, sendo obrigado a aceitar a oferta de Aurélio.

— Tudo bem – respondeu depois de um tempo. – Eu acho que vou mesmo precisar de ajuda. Agora, se não se importarem, irei me retirar.

Disse ele e seguiu em direção a saída, Helena andando a passos apressados para alcançá-lo, desaparecendo poucos segundos depois.

— E então, o que acharam dele? – perguntou Flamel, assim que se certificou de Raleigh havia ido embora.

— Eu ainda não sei – respondeu Sophia, de forma educada. – Ainda não creio que a forma como ele pretende lidar com aqueles alunos seja a correta.

— Não – refutou Baltar, com olhos sérios. – Se aquele homem realmente conseguiu sobreviver ao treinamento infernal daquela mulher, a qual até mesmo os soldados mais brutais temiam, ele deve ver as coisas de uma maneira diferente.

— O que quer dizer?

—  Eu ainda não sei, mas ele parece ter alguma coisa em mente. Por isso, vamos apenas observar por enquanto. Talvez possamos encontrar uma outra maneira de resolver essa situação caso ele fracasse, assim como os outros.


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