As Crônicas de Ainsworth escrita por Fore Project


Capítulo 5
Capítulo 04




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Raleigh parou em frente a uma pequena cafeteria buscando se abrigar da leve chuva que começara a cair.

Ele teve de ficar e se encontrar com Aurélio depois do que aconteceu para discutir o que faria a seguir, e isso acabou levando muito mais tempo do que esperava – o diretor parecia estar bastante interessado no que ele estava planejando fazer para lidar com aquela situação.

Pegou o cantil prateado de dentro de seu casaco e tentou beber um gole, mas notou que estava vazio. O virou para baixou, balançou e nem sequer uma única gota caiu ali de dentro. Isso o fez perceber que havia se passado quase dois dias inteiros desde a última vez que dormiu. Normalmente aquele cantil continha elixir o suficiente para três dias, mas nas últimas semanas ele percebeu que já não estava sendo mais tão efetivo quanto antes, o que o levou a ter de bebê-lo em espaços de tempo menores do que aqueles que estava acostumado, explicando o porquê dele ficar vazio mais rápido do que o esperado.

Estava prestes a guarda-lo no bolso de seu casaco novamente quando uma carruagem parou bem ao seu lado. Ele olhou ao redor procurando por qualquer um que a tenha chamado, mas não encontrou ninguém vindo em direção a ela. Todos andavam apressadamente ou corriam para escapar da chuva – muitas vezes se abrigando nas calçadas embaixo das coberturas de lojas próximas ou entrando em cafeterias e bares abertos naquele horário.

Quando observou melhor, percebeu que aquela carruagem era bonita e refinada demais para uma pessoa comum. Os cavalos tinham uma pelagem negra e brilhosa, os cascos limpos e polidos. O cocheiro, que mesmo sob aquela chuva não parecia estar nem um pouco incomodado, desceu e abriu a porta para que Raleigh entrasse.

Ele já era um homem de certa idade, mas pela postura ereta e rígida em que estava, notava-se que se tratava de um ex-soldado. Raleigh colocou uma das mãos no bolso de seu casaco e pegou sua mala com a outra, entrando logo em seguida. Não havia motivos para recusar aquele convite, também estava interessado em descobrir que assuntos alguém com uma carruagem aparentemente cara como aquela e um ex-soldado como cocheiro tinha a tratar com ele.

— Vejo que ainda continua usando roupas esfarrapadas como de costume, professor Rivaille.

A voz o saudou assim que ele entrou na carroça, soando de forma sarcástica ao pronunciar a última parte.

— Admito que você tem muita coragem para colocar os pés nessa cidade novamente.

Como estava um pouco escuro no interior da cabine, não era possível notar de imediato o rosto daquela pessoa, mas Raleigh reconheceu aquela voz.

O tom de uma voz calma e tranquila, criando um grande contraste entre sua aparência e personalidade. Se passara cerca de uns dois anos, mas mesmo passado todo esse tempo Raleigh ainda conseguia perceber que ela estava irritada apenas por uma leve variação em seu tom.

Aquilo o assustou por um momento, paralisando todos os músculos de seu corpo em um único instante. Embora soubesse que fosse acabar se encontrando com ela em algum momento, não esperava que fosse acontecer tão cedo. O destino estaria tentando fazer uma brincadeira de mau gosto com ele?

Tentou controlar seus nervos para parecer calmo, mostrando um sorriso um tanto forçado para não transparecer o que estava sentindo naquele momento.

— Deseja tanto assim que eu ordene sua morte para sorrir dessa maneira?

Após ouvir tal comentário, ele teve a certeza de que ela não notou, o que o deixou um pouco aliviado por ainda conseguir disfarçar e impedir que os outros pudessem perceber seus verdadeiros sentimentos e emoções.

Após se acostumar com a escuridão, ele finalmente conseguiu enxergar o rosto irritado dela.

Seus cabelos eram longos e dourados. O rosto parecia ser de uma boneca de porcelana que fora feita de uma maneira minuciosa e dedicada, mas ao mesmo tempo com todo o carinho e delicadeza do mundo. Seus olhos de um límpido e profundo azul, como se o fundo do oceano habitasse dentro deles. E ao mesmo tempo em que podiam ter uma vasta variedade de expressões, muitas vezes acabavam por expressar completa indiferença ou superioridade – nunca deixando de perder seu charme ou beleza.

Assim que a encarou nos olhos, seus sentimentos entraram em conflito entre vergonha, medo, alívio e satisfação. Vergonha de si mesmo pelo que houve e pelo que fez antes, medo de nunca mais conseguir encará-la nos olhos novamente, alívio por saber que ela estava bem, e satisfação por ver como ela havia crescido e se tornado mais bela ainda.

— Você não teria alguma coisa a me dizer? – ela perguntou, apoiando o rosto sobre o punho e observando a paisagem passar rapidamente por eles do lado de fora da janela.

Essa pergunta o pegou com a guarda baixa, pois não esperava que ela fosse ser tão direta daquela maneira. Raleigh sabia que ela tinha o direito de escutar aquilo dele, e por isso cerrou os punhos fortemente. Afinal, ele tinha a obrigação de dizer aquelas palavras.

— Sim – respondeu curvando sua cabeça de maneira sincera. – Eu realmente sinto muito por ter desaparecido sem ter dito nada, Edna.

Ela lhe lançou um olhar de soslaio, o observando em silêncio por alguns segundos. Em seguida, suspirou profundamente e depois se virou para ele novamente, cruzando os braços abaixo dos seios.

— Você realmente...

Parecia querer fazer alguma reclamação ou comentário a respeito de tal postura humilhante que aquele homem que tanto respeitou no passado havia adotado diante dela, mas desistiu no meio do caminho.

— Bom, é melhor esquecer sobre isso por agora – disse, jogando os cabelos para trás. – Soube que agora é um professor na Academia Bellfort, o que eu acho surpreendente vindo de alguém que não tem uma licença para lecionar.

Então ela sabia, foi o que passou pela mente de Raleigh assim que escutou aquilo.

— Eu cheguei há menos de um dia e mesmo assim já sabem exatamente sobre todos os passos que eu dei sem que eu sequer percebesse que estava sendo observado. Não podia esperar menos da rede de informações da família imperial.

— Sim, e eu realmente admiro sua coragem ao ter aceitado se tornar um professor naquela academia e se submeter ao que Aurélio ordenar, mesmo depois do que me disse ao rejeitar a oferta que te fiz. Você poderia ter se tornado um ótimo tutor para a família imperial, além de receber um ótimo pagamento e até mesmo privilégios especiais.

Edna sorriu.

Sorriu como se zombasse daquela escolha que Raleigh havia feito e o que teria de enfrentar e suportar agora que ele e Aurélio tinham um acordo – que era de conhecimento comum entre eles sobre como aquele homem podia ser incrivelmente excêntrico e singular em suas ações. Se houvesse aceitado a oferta que ela lhe fez antes, talvez as coisas fossem muito mais simples para ele.

— Eu não o chamei aqui para ficar relembrando o passado, por isso vamos ao que interessa. Há algo que você precisa ser informado o quanto antes.

— Me pergunto o que seria tão importante ao ponto da segunda princesa imperial de Ainsworth vir me informar pessoalmente.

Raleigh brincou como costumava fazer antigamente esperando que a garota fosse reagir da mesma maneira. Entretanto, ele não conseguiu o resultado que buscava e acabou por causar um efeito oposto daquele que esperava. Edna cerrou os lábios e seus olhos azuis agora tinham se tingido de escarlate, onde o leve brilho de um frenesi mortal fez com que Raleigh se arrependesse no mesmo instante – embora só houvesse tentado brincar um pouco com ela como antigamente, percebeu que o que havia entre eles antes já não existia mais naquele momento.

Uma gota de suor frio lhe desceu pelo rosto.

— Não esqueça que você abandonou sua alcateia, lobo – ela o lembrou, com uma voz assustadoramente calma. – Se não quer ter seu corpo separado da cabeça, deve começar a escolher melhor suas palavras.

Raleigh engoliu em seco. Era surpreende como uma garota tão tímida que não conseguia expressar bem seus próprios sentimentos ou suas palavras aos outros, agora era capaz de ameaçar alguém sem sequer quebrar o contato visual por um único instante.

O que foi que aconteceu naqueles últimos dois anos para que ela houvesse mudado da tal maneira?

— Eu lembro que te disse para agir com mais violência e frieza em certas situações, mas não imaginei que pudesse chegar ao ponto em que conseguiria me ameaçar de uma maneira tão assustadora e calma. Você realmente cresceu bastante, Edna – a elogiou, mesmo nervoso.

— Tempos difíceis requerem mudanças difíceis. Ninguém nunca permanece o mesmo, não importa quanto tempo passe. Lembra? Foi você mesmo quem me ensinou isso.

Raleigh lembrava-se muito bem daquilo. Foi algo que ele próprio havia dito a ela quando foi abordado certa vez, onde Edna estava bastante confusa se conseguiria atender as expectativas de sua família e se tornar alguém que pudesse tomar decisões sem hesitar ou se arrepender.

Não esperava que aquelas palavras fossem mudar alguém de uma maneira tão grande assim. Pela forma que reagiu quando tentou irritá-la ao chamá-la por um título que detestava do fundo de seu coração, sua reação não foi o que ele esperava. Ela o ameaçou, algo que ele sempre fazia no passado quando ele tirava brincadeiras com ela por causa de sua posição, mas dessa vez houve uma grande diferença.

Dessa vez ele não sentiu um único traço de hesitação em sua voz, também sentiu que ela não estava blefando. Edna realmente estava preparada para lhe cortar o pescoço em um único movimento com sua habilidade especial caso ele dissesse alguma coisa errada. Ele chegou até mesmo a escutar o estalido dos cristais se formando dentro da cabine.

—  05 de fevereiro de 1892, você se lembra dessa data?

Raleigh arregalou os olhos diante de tal pergunta.

Algumas lembranças das quais desejou poder esquecer para sempre surgiram em sua mente: vários corpos ensanguentados e sem vida alguma caídos por todos os lados, as chamas que consumiam a floresta atrás dele pouco a pouco, as mãos em carne viva por causa das queimaduras e aquela lua gigante no céu, a qual se tornara vermelha como sangue.

— Como é que eu poderia esquecer aquele inferno?

Mas a lembrança que mais desejou esquecer foi a visão daqueles que um dia lutaram ao seu lado, agora com os olhos vazios e rostos pálidos sem vida alguma, caídos diante dele.

—  A tragédia da Lua de Sangue.

— E o que isso tem a ver agora? – ele perguntou, cerrando os punhos.

— Alguns dias atrás, quatro Executores foram mortos durante uma missão.

— O que? – Raleigh ergueu o rosto, pasmo.

Executores eram magos altamente treinados tanto fisicamente quanto mentalmente, agindo diretamente sob as ordens do imperador. Eles podiam ser considerados como os magos de elite do império, estando muito acima dos nobres em questão de habilidade e magia, mas que devido à natureza de sua existência, eram instruídos a respeita-los e nunca contrariá-los.

Suas principais missões consistiam na eliminação de toda e qualquer ameaça que pudesse colocar em risco a vida do imperador ou sua família, assim como a ordem do império. Além disso, eles também agiam como guarda-costas de membros do Alto Conselho e dos principais membros das dez famílias mais poderosas da capital.

Raleigh já fora um Executor, pouco antes de ser transferido para o seu antigo esquadrão, quando este ainda estava sendo criado e estava à procura de membros talentosos e brilhantes. E pelo que sabia, não haviam mais tantos Executores quanto antigamente, já que dada a natureza de seu tralho era natural que eles morressem ainda jovens – muitos deles nem mesmo passavam dos trinta. Um dos principais motivos era que, a cada nova geração de magos mais difícil era encontrar aqueles com as qualidades e requisitos necessários para se tornar um Executor, ou pelo menos sobreviver ao processo de treinamento.

Ter quatro deles juntos era o suficiente para entender que não se tratava de uma missão qualquer, ainda mais quando haviam tão poucos vivos.

— Era para ser apenas uma missão de escolta comum de um conde nos documentos oficiais, mas isso foi apenas um disfarce. O verdadeiro objetivo da missão era escoltar seu corpo com segurança, já que ele era um dos raros portadores das partículas espirituais condensadas.

Partículas espirituais condensadas eram o mais puro grau que o poder mágico que um mago podia alcançar. Somente aqueles que chegaram ao mais alto nível de controle sobre os próprios poderes e habilidades, além de refinar seu poder mágico ao ponto de conseguir transcender os próprios limites conhecidos da magia, podiam alcançar.

Era dito que uma vez a cada poucas gerações alguns indivíduos nasciam com elas naturalmente em seus corpos. Tais indivíduos se tornavam a principal fonte de estudos de algumas das academias mais antigas em Attilas, as quais buscavam entender os mistérios por detrás desse fenômeno. Entretanto, as academias mágicas não eram as únicas interessadas nesses indivíduos, havia o submundo e o mercado negro, os quais eram capazes de pagar valores extremos apenas para tê-los como espécimes em suas coleções.

— Dois dias depois recebemos uma mensagem através do pardal de um dos Executores que o escoltavam. Pouco antes de morrer ele usou uma magia para gravar os fragmentos de suas próprias memórias e avisar sobre o que aconteceu.

— E o que haviam nesses fragmentos de memórias?

— A visão que ele teve naquele momento – Edna o olhou nos olhos. – Os dois homens desconhecidos que atacaram o trem tinham o conde como alvo. Além disso, os dois possuíam uma tatuagem na mão direita: uma serpente devorando a própria cauda com um número no centro.

Raleigh a encarou em choque.

— A mesma tatuagem do homem que seu esquadrão foi ordenado a investigar dois anos atrás.

As lembranças daquele dia inundaram sua cabeça, tornando aquelas cenas tão vividas como se pudesse vê-las com total nitidez naquele mesmo instante. Diante daqueles inúmeros corpos ensanguentados e sem vida estava a figura de um homem, cuja face era coberta por uma máscara negra que se assemelhava a cabeça de um corvo.

— O conhecendo bem, tenho certeza de que não manteve contato com Corona esse tempo todo também, ou estou enganada? – perguntou Edna, o tirando daquelas lembranças.

— A última vez que trocamos contato foi cerca de dois anos atrás. Pouco tempo depois que eu deixei a cidade.

Edna suspirou, desapontada com Raleigh de uma maneira muito profunda.

— Você é um grande idiota que sempre consegue me surpreender – o criticou, elevando sua voz. – Aquilo foi o suficiente para quebrar seu espirito tão facilmente assim? Que desapontante!

Raleigh apenas escutou calado e de cabeça baixa. Ele até poderia tentar revidar tais palavras, mas a garota estava completamente certa. Não só perdeu todo o seu esquadrão como também não conseguiu fazer nada naquela situação. Como se não bastasse, ainda teve uma briga feia com Corona onde ambos discutiram e acabaram por iniciar um confronto que quase destruiu um vilarejo inteiro. Após isso ele acabou por renunciar seu dever, abandonando o resto de seus companheiros e desaparecendo sem dizer nada.

— Francamente, não me mostre um lado tão lamentável assim... – murmurou ela de uma maneira que Raleigh não pudesse escutar.

— Você tem razão – disse ele, erguendo a cabeça. – Eu fui apenas um covarde que levou uma surra e depois tentou descontar naqueles a minha volta, para no fim acabar fugindo das consequências que minhas escolhas trouxeram.

Ela estava certa em tudo o que disse, mas haviam muitas coisas acontecendo naquele momento que o fizeram ter uma nova perspectiva daquilo que esteve fazendo durante todo esse tempo em que se amargurou profundamente e abandou seus deveres como um protetor do reino, gastando seus dias com bebidas e brigas em bares caindo aos pedaços pelos vilarejos e cidades esquecidas que passou. Agora ele tinha um propósito, algo que tinha de fazer a qualquer custo para que as correntes do arrependimento que o prendiam ao passado finalmente fossem quebradas e ele pudesse enfim cumprir uma promessa que fez há muitos anos.

— Mas dessa vez as coisas serão totalmente diferentes e eu não vou mais fugir ou recuar – a respondeu com olhos tomados por uma decisão inabalável. – Dessa vez eu tenho uma promessa a cumprir, uma promessa que fiz a alguém muito importante há muito tempo atrás.

Edna ficou sem palavras, ela nunca havia visto Raleigh mostrar aquele olhar antes. Mesmo durante todos os anos em que se conheciam aquela foi a primeira vez que presenciou tal olhar, um olhar repleto de seriedade e certeza, que não hesitaria em continuar nem mesmo diante da própria morte. Isso a fez sentir mais uma vez um pouco do respeito e admiração que tinha por ele antes, embora não chegasse nem perto daquilo que realmente sentia no passado.

— Está bem, confiarei em você dessa vez – disse ela. – Aqui, creio que vai precisar bastante disso.

O entregou um colar, onde o pingente possuía uma pedra verde e cintilante como uma joia. Raleigh tentou pegá-lo, mas assim que o tocou com a ponta de seus dedos, sentiu seu braço inteiro queimar.

— Como eu pensei – Edna observou, preocupada. – Suas marcas já avançaram demais e agora estão lentamente se fundindo aos seus fluxos de magia.

— O que é essa pedra? – perguntou Raleigh, segurando o braço que parecia queimar como brasas.

— É um minério especial que pode purificar as Marcas da Depravação. Mas acredito que no seu caso ele só vai conseguir impedir que elas avancem ainda mais.

— Como...?

Raleigh estava confuso, pois até onde sabia não havia qualquer informação ou registro a respeito daquele minério. Ele próprio havia pesquisado em inúmeros registros e documentos confidencias que apenas alguns pouco tinham acesso, procurou em livros raros e antigos onde apenas algumas poucas cópias ainda existiam, e mesmo procurando e pesquisando por meses não encontrou qualquer coisa que mencionasse tal minério. Então como Edna havia conseguido algo como aquilo?

— Não fui eu – negou ela, encarando a joia. – Foi a Tina. Ela continuou a pesquisar por uma forma de exterminar as Marcas da Depravação incansavelmente por um longo tempo. Ela até mesmo deixou de lado seus próprios projetos para se dedicar inteiramente a encontrar uma cura para as marcas.

Raleigh ficou sem reação. Ele não esperava que aquela garota fosse continuar a procurar por algo que ele próprio já havia perdido as esperanças de encontrar. Não, não foi isso o que o deixou sem reação, mas sim saber que alguém continuou a procurar incansavelmente por uma cura para algo que foi dito ser incurável. Ele realmente era digno de merecer aquilo? Ele realmente era digno de ser salvo?

— Essa reação que está sentindo agora é comum. Como é a primeira vez que você está entrando em contato com esse minério, suas marcas vão reagir de maneira violenta – Edna explicou. – Mas não precisa se preocupar, não é algo permanente. Assim que se acostumar com ele, a sensação vai diminuir.

Assim que terminou de explicar, a carruagem parou.

— Hum? Mas esse é... – Raleigh olhava perplexo através da janela.

Eles estavam em frente a um casarão de dois andares na área residencial, alguns minutos de distância da academia. Raleigh não sabia como reagir, já que foi o lugar em que ele salvou Edna e quase foi morto no processo, perdendo uma grande quantidade de sangue e tendo muitos de seus órgãos danificados. Naquela vez, muitos chegaram a realmente acreditar que ele não conseguiria sobreviver devido ao estado crítico em que chegou ao hospital, sendo enviado diretamente para a sala de cirurgia para uma operação de emergência.

— Eu comprei o edifício alguns meses atrás, mas nunca cheguei a usá-lo. Creio que você possa ter mais utilidade para ele do que eu – Edna o jogou um par de chaves. – Eu até ofereceria um dos quartos na mansão, mas tenho certeza que você negaria.

— Você tem certeza? – perguntou, encarando as chaves em sua mão e olhando para ela em seguida.

— Eu não consegui encontrar uso para ele. Agora que você está aqui, pelo menos pode tirar a poeira que se acumulou durante todo esse tempo.

— Obrigado.

— E também, faz um tempo que estou ignorando, mas você ainda carrega aquela coisa com você? – Edna encarava a mala que se movia de forma brusca sobre o assento.

— Não posso simplesmente deixá-lo à solta por aí. E eu até que gosto dele.

— Eu realmente não entendo os seus gostos.

Raleigh estava prestes a sair, mas de repente, sentiu algo lhe puxar de volta.

Edna segurava a borda de seu casaco e pela expressão que carregava em seu belo rosto, parecia querer dizer alguma coisa. Era raro vê-la com uma expressão tímida como aquela, algo que o próprio Raleigh testemunhara poucas vezes. Ele chegou a pensar que a garota o desprezasse pelo que fez, foi o que achou pelo pouco que conversaram até então, por isso aquela última reação de Edna foi algo completamente inesperado.

Ela baixou a cabeça, evitando qualquer contato visual com ele.

— Eu sinto muito pelo o que o meu pai fez naquela vez – falou com as palavras tremulas. – Eu não sabia sobre a ordem que ele deu sobre afastarem você e revogarem todos os poderes e direitos de Executor.

Raleigh não conseguiu reagir de outra maneira a não ser sorrir. Ela não havia mudado tanto assim no final das contas, ainda se importava com os outros ao redor – tendo sua própria maneira de demonstrar preocupação.

— Não se preocupe, não havia nada que pudesse ser feito naquele tempo – respondeu ele. – Ninguém pode desobedecer a uma ordem direta do próprio imperador. Fosse o Alto Conselho ou até mesmo a própria família, ninguém poderia desafiar aquela ordem. Por isso, não precisa ficar se desculpando, você não teve qualquer culpa por aquilo.

Os olhos de Edna se encheram de surpresa quando sentiu algo pesar sobre sua cabeça. Antes que pudesse perceber, Raleigh afagava seus cabelos de maneira gentil, exatamente da mesma maneira que fazia antigamente quando a parabenizava ou elogiava por suas conquistas.

Edna soltou a borda do casado de Raleigh e levantou a cabeça, olhando para o rosto dele. Raleigh apenas sorria de maneira singela, ainda afagando os cabelos dela de forma suave e gentil, o calor aconchegante de sua mão naquela noite fria lhe aquecendo por dentro.

— Da próxima vez que vier me visitar, posso preparar um pouco de chá com bolo.

Ela poderia afastar a mão dele, mas parecia não estar incomodada com aquilo. Pelo contrário, apenas sorriu e deu de ombros.

— Nós dois sabemos como seu chá é um lixo, além de que você também é péssimo na hora de escolher boas folhas.

— Não fique se achando, pirralha, você ainda não tem idade o suficiente para entender o gosto dos mais velhos.

E com essa pequena conversa descontraída, os dois se despediram.

Raleigh pretendia começar a preparar tudo o que iria precisar para lidar com a situação da academia Bellfort e dos alunos pelo qual se tornou responsável. Mas agora que Edna o havia informado sobre os responsáveis pelo inferno que presenciou dois anos atrás, ele tinha um novo objetivo.

Seu corpo estava cansado e sua mente lhe implorava por uma noite de sono, mas agora ele não tinha mais tempo para aquilo. Haviam coisas mais importantes para ele ter de lidar do que dormir - poderia deixar para fazer isso outra hora, quando tivesse tempo.

 

◊◊◊

 

 Arthur e os outros estavam reunidos no saguão de descanso do dormitório leste. Como nem todos estavam presentes mais cedo, eles concordaram que contariam tudo aos outros após o termino das aulas, quando estivessem todos ali.

Depois do ocorrido, a turma teve o resto do dia livre para pensar de que forma lidariam com tal situação, mas nenhum deles parecia estar com a cabeça no lugar para conseguir chegar a alguma coisa útil – como resultado, eles ficaram até altas horas da madrugada sem alcançar qualquer decisão.

— E quanto a Nebrissa? – perguntou Arthur, cruzando os braços junto a parede. – Alguma notícia dela?

— Não – respondeu Violet, de cabeça baixa e mãos juntas no sofá. – Ela saiu bem cedo e não disse para onde iria.

— Ela também não voltou para o quarto – acrescentou Lunia, coçando os olhos cansados. – Quando chegamos, as coisas dela estavam da mesma maneira ela deixou.

Os dormitórios de Bellfort estavam localizados dentro de seu território, a poucos minutos do edifício principal da academia. Eram três edifícios interligados de três andares cada, dividindo as turmas de acordo com seus respectivos anos escolares.

Os quartos eram compartilhados com alunos da mesma turma, podendo abrigar três pessoas confortavelmente – algumas vezes abrigando apenas dois ou um. Eles eram grandes e espaçosos, principalmente para aqueles que não possuíam muitas bagagens, entretanto não era incomum ver alguns objetos um tanto quanto excêntricos além das roupas e livros dos alunos.

Normalmente eles eram equipados com beliches e camas de solteiros, alguns objetos e utensílios de uso diário, guarda-roupas e mesas de estudos. Mas, em algumas exceções, haviam casos de quartos com camas com dossel; mesa para chá com conjunto de cadeiras; equipamentos de pesquisa químicas e mágicas; sofás, divãs ou poltronas. Havia até mesmo um rumor de que um dos quartos possuía uma lareira particular dentro.

Violet e Lunia compartilhavam o mesmo quarto que Nebrissa, então era natural elas saberem quando ela saía ou voltava. Desde que saiu no dia anterior ela não havia voltado e, mesmo não sendo a primeira vez que fazia algo como aquilo, as duas não conseguiam deixar de se preocupar com ela.

— O Thomas disse que não vai poder ajudar muito. O treinando dele com os outros alunos para o festival acadêmico está o deixando completamente ocupado – informou Charles, lendo um pequeno livro de bolso.

— Bom, não podemos exigir muito dele. Foi graças aos veteranos com quem ele fez amizade nos ajudarem com estudos que conseguimos chegar até aqui sem ninguém ficar para trás – comentou Evangeline, roendo a ponta do polegar. – Agora a Nebrissa já é outro caso. Aquela garota nunca ajuda ou está presente quando precisamos discutir alguma coisa importante.

Se passaram quatro meses desde que as aulas começaram e, durante esses quatro meses, Evangeline e Nebrissa continuaram como água e óleo – as duas não conseguiam se entender não importava a situação.

Evangeline sempre tentava manter todos unidos e nunca parava de procurar por uma maneira que os ajudassem a superar tudo o que passaram durante aqueles quatro meses infernais. Ela se tornou um dos pilares principais que mantinham aquela turma unida, assim como Arthur, e acabou por ser a principal pessoa a quem eles sempre recorriam ou procuravam para pedir ajuda ou discutir alguma coisa importante que os envolvesse.

Nebrissa, por outro lado, parecia não dar a mínima para o que acontecia com eles – embora suas notas sempre fossem altas mesmo ela quase não participando das aulas ou estudos em grupo.

Ela também sempre se envolvia em alguma briga ou tumulto, sendo a maioria deles com garotas de outras turmas ou veteranas bem mais velhas que ela. Essas brigas e tumultos normalmente aconteciam pelos vários interesses amorosos que os garotos tinham por ela, o que era um grande motivo de inveja e até mesmo ciúmes para outras garotas daquela academia, dada sua aparência chamativa.

E como se não fosse o suficiente, havia o fato dela ser uma mera plebeia também, o que tornava inaceitável que um nobre fosse recusado ou rejeitado por ela ou que ela fosse muito mais bonita que as garotas nobres dali. Isso tudo resultou numa enorme fama, gerando inúmeros boatos e rumores, os quais ela acabou ficando conhecida como a Princesa Intocável – alguém tão bela quanto uma princesa, mas perigosa como uma rosa cheia de espinhos venosos que não permitia que qualquer um pudesse se aproximar.

— Nesse caso não podemos contar com ela – concluiu Arthur, olhando para Evangeline. – O que faremos?

— Se fosse igual as outras vezes, eu diria que deveríamos fazer o que sempre fizemos até agora, mas esse não parece ser o caso dessa vez.

Roer a ponta do polegar era uma mania que ela tinha sempre que estava pensando profundamente sobre alguma coisa e não conseguia encontrar qualquer solução ou saída – mostrando que ela estava se sentindo completamente encurralada naquela situação. Os outros apenas a observavam em silêncio. Dizer alguma coisa a ela naquele momento só a deixaria mais pensativa e mais preocupada.

— Nós temos mais seis dias... o que podemos fazer para resolver essa situação? – balbuciou ela.

Raleigh foi bem claro quando lhes deu tempo para se organizarem e planejarem o que fazer – e não parecia que ele estava brincando ou pregando uma peça neles. Assim que ele decidiu que todos daquela turma estavam expulsos, o tempo parou e eles não tiveram qualquer reação, esqueceram até mesmo de respirar por alguns segundos antes que se dessem conta do que tinha acontecido.

Assim que o tempo voltou a se mover novamente, as reações em cadeia começaram e todos se levantaram quase que ao mesmo tempo para protestar e questionar sobre aquela decisão totalmente unilateral, mas logo se calaram assim que Raleigh pôs o indicador sobre os lábios pedindo por silencio. Como haviam lhe dito antes, eles podiam lidar com o que estava havendo por conta própria como fizeram até ali, então ele lhes fez uma proposta rápida e direta: um duelo.

As regras eram simples e eles só precisavam derrubá-lo, se conseguissem isso, ele iria retirar a ordem de expulsão e desistiria de ser professor daquela turma. Mas como a diferença entre eles era grande demais, ele lhes deu algumas condições, como a de não os atacar e apenas se esquivar, um limite de tempo, a vantagem numérica e a permissão para usar habilidade mágicas de combate.

Assim que explicou tudo, ele apenas aguardou pela resposta deles, os quais trocaram alguns olhares antes de finalmente aceitarem aquela proposta. Depois, Raleigh disse que eles tinham até sábado para organizarem tudo para o duelo e saiu da sala, deixando todos ali com expressões pasmas e confusas.

— Aliás – Charles levantou a mão, pedindo pela atenção de todos. – Cadê a Nina? Ela disse que iria participar hoje, mas não apareceu até agora.

— É verdade – concordou Evangeline, olhando para o relógio sobre a porta. – Ela nunca se atrasa tanto assim.

— Ela disse que tinha de devolver alguns livros para a biblioteca – avisou Lunia erguendo umas das mãos. — Por causa disso ela acabou ficando até mais tarde do que devia e quando voltou, foi direto pra cama.

— É mesmo, ela estava estudando sozinha no quarto dela esses últimos dias – lembrou-se Evangeline após pensar um pouco. – Bom, podemos dizer a ela o que planejamos outra hora. Agora, o melhor que podemos fazer é ir dormir.

— Sim – concordou Arthur. — Ficar acordado até tarde não vai nos fazer chegar a lugar algum. Precisamos estar descansados para pensar e planejar melhor.

— Vamos nos encontrar na biblioteca após o café da manhã – Informou Evangeline se retirando junto com as garotas para o quarto. – Estejam presentes.

Todos concordaram e se retiraram para seus respectivos quartos. E era bem evidente que nenhum deles conseguiria dormir tranquilamente àquela noite com tudo o que havia acontecido.


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