As Crônicas de Ainsworth escrita por Fore Project


Capítulo 3
Capítulo 02




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O sinal havia tocado, despertando os alunos nos dormitórios e os informando que o café da manhã estava pronto, não demorando muito para que o salão de refeições do edifício principal ficasse lotado com os alunos que se sentavam às mesas com as bandejas de seus lanches.

Como as opções eram muitas, as variações e combinações do que cada um queria comer também eram inúmeras. Alguns chegavam a exagerar naquilo que colocavam em suas bandejas, outros colocavam até menos do que deveriam – mas cada um parecia satisfeito do seu próprio jeito.

O vozerio logo tomou conta do lugar, onde conversas começavam a surgir por todos os cantos. Alguns falavam sobre as aluas ou lições dos dias anteriores e como eram muito difíceis ou fáceis; outros falavam sobre o que fizeram no final dia semana, já que ficaram livres das aulas e lições da academia por dois dias; alguns falavam sobre os eventos que iriam acontecer naquele ano e suas possíveis premiações; alguns conversam sobre coisas diárias e rotineiras. E em certa mesa, onde um pequeno grupo estava sentado, o assunto era sobre a informação que haviam recebido no dia anterior.

— O que devemos fazer? – perguntou Arthur enquanto colocava uma colher de feijões verdes em sua boca – Ouvi dizer que ele não é daqui.

Os cabelos dourados e os olhos claros, juntamente com os traços delicados de seu rosto lhe atribuam um certo ar de educado e comportado, exatamente como ele se mostrava ser.

— Então realmente é alguém que foi transferido de outro lugar – comentou Evangeline, comendo tranquilamente sua fatia de bolo de morango. – Os últimos dois eram professores formados na capital, mas esse veio de fora, o que significa que não temos muitas informações sobre ele.

Seus cabelos carmesins facilmente a destacavam no meio de uma multidão, já que pessoas com cabelos naquela tonalidade eram raros na capital imperial.

— Vocês acham que deveríamos tentar testar ele logo no primeiro dia? Tipo, pra saber o que ele vai fazer? – perguntou Lunia animadamente com seus olhos amendoados e cabelos claros.

— Isso não seria ser agressivo demais? Poderíamos ter alguns problemas caso ele não seja como os outros – argumentou Violet, cujos olhos sempre pareciam estar fechados.

— Bom, não saberemos muito se não fizermos nada – refutou Arthur.

— Ainda acho que deveríamos consultar os outros – Violet demonstrou preocupação em sua voz. – Não podemos tomar todas as decisões sem eles.

— Você tem razão, mas as vezes eu acho que eles não ligam muito pra isso.

Lunia cruzou os braços tentando pensar no que os outros diriam.

— Bem, a Nebrissa nunca fala com outros e sempre parece distante. Nina está tentando estudar sozinha. Thomas está ocupado treinando com o pessoal para o festival da colheita... Não dá, não consigo pensar no que eles diriam.

— Nina provavelmente diria que deveríamos tentar ser um pouco mais gentis com ele. Nebrissa não iria nem mesmo dar atenção. Enquanto o Thomas, ele diria que deveríamos fazer o que pudéssemos – respondeu Charles.

Ele era um garoto de cabelos castanhos e encaracolados com olhos amendoados, cuja expressão de puro desinteresse vivia estampada em sua face.

— Não é muito difícil pensar no que eles diriam quando já conhecemos como eles são.

— Isso mesmo, maninho – concordou Lunia, apontando para ele com uma expressão orgulhosa. – Como esperado de você!

— Eu ainda não consigo ver vocês dois como irmão – comentou Evangeline. – Quero dizer, a diferença é absurda demais.

— Eu entendo o que você quer dizer – concordou Arthur acenando com a cabeça. – Lunia é uma garota animada, sincera e honesta, com uma aparência adorável e um sorriso encantador. Já o irmão mais velho... – ele o encarou procurando boas qualidade. – É... hmm...

— Ei, não me olhe com essa cara de decepção. E por que está olhando para o outro lado agora? Aliás, qual foi a desse longo suspiro?

— Viu só?

Arthur o apontou com o indicador.

— Ele tem razão. Seus olhos parecem sem vida e você parece estar mal-humorado o tempo todo – comentou Violet, sem maldade alguma em suas intenções.

— Eu sinto muito se não sou alguém animado ou agradável como a Lunia. Não tenho culpa de ter herdado essa maldita aparência daquele velhote.

— Bem, você e o papai realmente se parecem tanto que chega a ser nojento...

— Não fique se achando só porque você herdou a aparência da nossa mãe.

Charles a segurou pelas bochechas e a balançou de um lado para o outro.

— Ai! Ai! Ai! Ai! O cabelo não, por favor! Eu levo quase meia-hora pra fazer esse penteado!

— Ora, sua tampinha!

— Minha cabeça! Vai arrancar minha cabeça!

Charles começou a bagunçar os cabelos de Lunia de forma rápida e violenta, fazendo um penteado diferente daquele que ela usava, mas que estranhamente combinou com ela. Lunia, por outro lado, pareceu não gostar, olhando num espelho com lágrimas nos cantos de seus olhos devido a dor de ter seus cabelos puxados pelo irmão.

— Mas sabe de uma coisa, eu já não me importo mais com isso – disse ele, demonstrado desinteresse em seus olhos. – Se esse for embora, eles só vão mandar outro no lugar dele.

— Creio que alguns dos outros já se deram conta disso e também pararam de se importar – Violet olhava para o chão com certa tristeza em sua voz. – Talvez devêssemos desistir de continuar com isso também...

— Eu me recuso!

Evangeline ergueu a voz com firmeza, atraindo alguns olhares dos outros alunos.

— Desistir agora é aceitar que eles estão corretos e que não possuímos qualquer valor ou significado aqui. Eu não vou permitir que eles pisem em meu orgulho dessa maneira.

— Podemos ser uma turma secundária, mas também temos nosso valor e nossos sonhos. Se deixarmos que eles continuem a nos desprezar sem fazer nada, não seremos nada mais que pessoas ordinárias sem vontades ou desejos – completou Arthur com seriedade em sua voz.

— Mas já se passaram quatro meses... Nós quase não aprendemos nada, e o pouco que conseguimos foi graças a ajuda dos outros e nossa própria força de vontade.

Violet juntou os dedos enquanto desabafava. Sua face preocupada e abatida não se encaixava nenhum pouco com a costumeira garota que parecia estar o tempo todo sorrindo. A aura calorosa e materna que emanava dela fazia com que quase todos os outros alunos daquela turma a vissem com uma irmã mais velha em quem podiam confiar e contar quando quisessem.

— Se continuarmos assim, essa turma pode acabar sendo desfeita já que não estamos conseguindo alcançar a meta de pontuação estabelecida pela academia.

O ar ao redor da mesa aos poucos foi se tornando cada vez mais pesado, como se todo o ambiente em volta não existisse mais; isolando aquele pequeno grupo do resto do mundo em uma aura negra e sombria.

— Eu também não gosto disso – confessou Lunia.

Seu tom animando e brincalhão havia desaparecido, dando lugar a uma voz vazia e desolada.

Quem a conhecia sabia muito bem que ela era uma garota que vivia sorrindo e agindo de maneira brincalhona o tempo todo, por isso, vê-la adotar uma expressão como aquela passava uma sensação estranha e desconfortável.

— Eu sei que os outros não gostam de comentar sobre isso, mas eles estão começando a se questionar se realmente fizeram a escolha certa. Alguns estão começando a se perguntar se realmente desejam ser magos imperiais.

Nenhum deles queria parecer pessimista ou negativo, mas dado o que sabiam até o momento, tudo o que foi dito ali estava correto e, por isso, eles acabaram por ficar cabisbaixos com os rostos tencionados pela preocupação.

— Nesse caso, vamos mostrar a eles que estão enganados.

Disse Evangeline, com os olhos afiados e repletos de seriedade.

— Vamos mostrar que podemos superar qualquer coisa que eles mandem para nos impedir de alcançar o que desejamos. Vamos mostrar que também podemos ser ótimos magos, mesmo que tenhamos de aprender por nós mesmo.

 

◊◊◊

 

— Estou surpresa.

— Com o que?

— Os únicos que possuíam o conhecimento sobre o conteúdo que carrego comigo eram eu e o Sr. Aurélio – respondeu ela, olhando para uma bolsa de couro que carregava sobre suas pernas. – Mas por alguma razão, aquele homem também tinha conhecimento sobre isso e o seu valor.

— Eu poderia ter conseguido mais informações se você não houvesse o deixado inconsciente daquela maneira. Aliás, não parece, mas você é bem forte para alguém com uma aparência delicada assim – ele a olhou de relance, depois voltou a olhar para a rua novamente.

Logo após o motorista ter anunciado o assalto, Raleigh rapidamente derrubou todos eles sem qualquer dificuldade. Eram nada mais que ladrõezinhos genéricos que se encontra em quase todos os becos das grandes cidades.

Não possuíam qualquer tipo de treinamento e utilizavam apenas de suas armas para tentar impor medo em suas vítimas. Mas assim que Raleigh os desarmou, as expressões em seus rostos ficaram pálidas e tudo que ele precisou fazer foi aplicar alguns golpes básicos para que derrubasse um a um. Foi tão fácil que ele nem mesmo chegou a suar uma única gota.

Depois pegou o que parecia ser o líder do grupo e o pendurou pelos pés com uma corda, começando a interrogá-lo. Ele não precisou machucar muito o homenzinho de nariz redondo para que contasse tudo o que sabia.

Ele contou tudo tão rápido que as informações acabaram por parecem bem suspeitas, o que resultou em Helena o golpeando para que não escondesse nada deles, mas exagerou na quantidade de força e o deixou inconsciente sem querer.

— Eu sinto muito por aquilo. Mas quando o vi me olhando de uma maneira obscena, acabei ficando irritada.

— Então você consegue ficar irritada? É meio difícil de acreditar quando você possui um rosto inexpressível desse jeito.

— Costumo ouvir muito isso, principalmente do Sr. Aurélio. Ele me diz que devo tentar expressar melhor minhas emoções ou isso fará com que as pessoas acabem me entendendo errado.

— Acho que não precisa se preocupar muito com isso. Mudar sua própria maneira de ser é algo que não acontece de uma hora pra outra, leva tempo.

Helena o olhava de uma forma analítica, observando suas palavras e a forma como ele as dizia. Por sua expressão, Raleigh parecia saber e conhecer bem sobre o que estava falando.

O vento refrescante daquela manhã fez com que os fios soltos de seu cabelo dançassem de forma rebelde. Ela delicadamente os arrumou atrás da orelha ainda olhando para o rosto de Raleigh, que mantinha seus olhos fixos na rua.

— Estou surpresa.

— Com o quê?

— Quando fui informada sobre você, não li qualquer informação que me dissesse sobre você possuir habilitações para dirigir.

Após deixar o motorista e os outros inconscientes, Helena informou que deveriam estar na academia às nove horas. Como estavam numa região repleta de depósitos, armazéns e caixotes de madeira, eles concluíram que deviam estar na área de armazenamento do distrito industrial da cidade.

Não havia pessoas ou carruagens passando por ali naquele momento, sendo o único meio de transporte disponível a carruagem em que vieram, mas Helena não sabia dirigi-la. Foi quando Raleigh subiu no assento do motorista e a ligou.

— Bem, só porque eu não tenho uma licença não quer dizer que eu não saiba dirigir – confessou lançado um sorriso orgulhoso.

— Bem, estar dirigindo sem ter uma licença é um crime – ela o refutou lançando um sorriso virtuoso.

Helena poderia ter ido na cabine de passageiros, mas disse que gostaria de experimentar ir no assento do motorista também já que poderia conversar melhor com Raleigh durante o caminho.

— Eu estou um pouco incomodado com uma coisa – ele comentou. – Você fica dizendo que foi informada sobre mim. Com qual propósito e necessidade?

— O Sr. Aurélio foi quem me passou suas informações. Embora eu trabalhe como secretária de assuntos gerais na Academia Bellfort, eu sou oficialmente a secretária particular dele.

O trânsito começara a aumentar, tornando as ruas cada vez mais lotadas com outras carruagens automotivas e comuns, ficando assim difícil de avançar rapidamente. Como estavam próximos das regiões onde estavam localizados ministérios, bancos e outros edifícios de grande importância, era natural que o trânsito ficasse congestionado àquele horário.

— Como você deve saber bem, ele não aparece diretamente nas reuniões ou eventos importantes que requerem sua presença. É por isso que fiquei encarregada de representa-lo nessas situações.

Eles ficaram parados em um cruzamento aguardando as carruagens da rua adjacente passarem, para assim, o guarda autorizar o segmento da viajem. Raleigh colocou sua mão dentro do casaco e retirou um cantil prateado, bebeu um gole e então o guardou de volta, ainda escutando a explicação de Helena.

— Agora, por causa disso, eu acabei me tornando o seu rosto.

Ela virou para o lado, observando a paisagem a sua volta.

— Toda vez em que ele precisa comparecer a algum lugar ou precisa negociar, sou eu quem tem de ir como sua representante. E para que eu tenha sucesso nas negociações, eu preciso saber com que tipo de pessoa estarei lidando.

— Compreendi. Isso realmente se parece com o jeito que ele faz as coisas.

— Mas dessa vez, ele mesmo resolveu comparecer, embora tenha sido indiretamente.

— O que fez com que seu papel fosse anulado nesse encontro.

— Exatamente.

Helena parecia meio desconfortável e desolada, como se houvesse falhado em um grande e importante dever. Ela tentou disfarçar sua expressão, mas Raleigh conseguiu perceber que ela estava abatida.

Pelo pouco que conversou, ele conseguiu entender poucas coisas sobre a personalidade dela. Para ele, Helena era alguém que procurava ter êxito naquilo que fazia – tentando alcançar o melhor dos resultados. Ter agido como rosto de Aurélio em todas as outras negociações e obtido sucesso, mas ter seu papel e dever anulado naquele em que ele estava envolvido devem ter lhe deixado com um sabor amargo na boca.

Ela certamente achava que ainda não era boa o suficiente no que fazia.

— Tenho certeza de que ele sabia que você não conseguiria lidar com essa negociação. Foi por isso que ele teve de ficar cara a cara comigo, mesmo que através de uma magia de comunicação holográfica.

A expressão abatida no rosto de Helena havia desaparecido, agora ela prestava atenção de forma curiosa ao que Raleigh dizia enquanto se inclinava sobre o volante.

— Eu mesmo estava certo de recusar qualquer coisa que ele me pedisse, por isso tenho certeza que você não conseguiria me convencer. O motivo pelo qual eu vim foi para pesquisar alguns documentos antigos na Biblioteca Central, mas como pode ver, não deu muito certo.

Raleigh realmente não pretendia aceitar qualquer pedido de Aurélio. Ele havia vindo até a capital por dois motivos: pesquisar em documentos antigos sobre as marcas negras em seu corpo, e recusar diretamente a qualquer pedido de Aurélio. Ele o conhecia muito bem para saber que não iria desistir tão rapidamente se recusasse seu convite sem lhe dar uma resposta de volta. Ele iria enviar outras cartas, em seguida iria enviar pessoas para entregar o recado pessoalmente. Por isso ele tinha que recusar aquele pedido cara a cara, mas as coisas não saíram como ele havia imaginado.

— Eu não esperava que ele fosse fazer uma jogada daquelas...

Ele murmurou para si mesmo.

— Você parece um pouco arrependido.

— Se ele teve de fazer algo como usar uma carta especial como aquela, significa que ele estava desesperado e que essa era uma negociação em que ele realmente precisava vencer a todo o custo.

— Quer dizer que existem pessoas que não podem ser convencidas mesmo após serem estudadas completamente – ela refletiu. – Irei me lembrar disso a partir de agora.

No fim das contas, ela ainda era uma garota jovem. Mesmo que tentasse obter êxito em tudo o que fazia, também se sentia frustrada e abatida quando não conseguia ter sucesso no que estava fazendo – ainda tinha muito o que aprender e um longo caminho a percorrer.

— Você não precisa ficar com uma expressão tão amarga assim só porque foi deixada de lado uma vez. Use isso como oportunidade para pensar no que fazer da próxima vez que tiver que lidar com uma situação assim novamente.

Como alguém mais velho e mais experiente, fornecer conselhos aos mais jovens era algo que Raleigh faria sempre que pudesse.

— Acho que consigo entender o motivo pelo qual a Srta. Corona o indicou e o porquê insistiu que fosse você a qualquer custo, mesmo não tendo uma licença para ser professor.

O guarda acenou informando que podiam prosseguir e Raleigh seguiu em frente.

— Sobre isso eu já não sei.

— Pelo que me foi informado, você já foi responsável pelo treinamento de um pequeno grupo quando ainda estava no exército imperial.

— Aquilo ali não foi grande coisa. Nós não tínhamos pessoas o suficiente e o reforço que nos enviaram não passava de um bando de novatos que haviam acabado de se formar da academia.

Raleigh parecia estar olhando para um lugar muito mais distante do que aquele que seus olhos podiam alcançar. Helena não sabia dizer muito bem o que era, mas ele parecia cansado ao falar daquilo, como se uma memória dolorosa de seu passado estivesse passando por sua mente naquele exato momento.

— Estávamos numa guerra contra outra nação e nosso pelotão era composto por poucas pessoas experientes. Nós tivemos de trabalhar com aquilo que tínhamos à disposição se quiséssemos voltar para casa com vida – disse ele com um tom rouco e cansado. – Foi apenas um ato de desespero de pessoas que não queriam perder a vida num lugar como aquele. Algo que não é digno de elogios.

— Mas foi graças a esse ato de desespero que vocês conseguiram vencer e voltar para casa com vida, não foi?

— Eu realmente não sei... de verdade.

Ele respondeu com toda sinceridade.

— Algumas vezes eu sinto que uma parte minha ficou para trás, coberto de sangue e lama naquele campo de batalha. Além de que, a maioria dos novatos que treinamos não conseguiu sobreviver.

— Você se arrepende?

— Pelo quê?

— Por não ter conseguido salvá-los.

— Nós ensinamos tudo o que sabíamos e podíamos para prepará-los, mas uma vez que se entra num campo de batalha tudo o que lhe resta são suas próprias escolhas e habilidades. Por isso, eu não tenho arrependimentos. Se eu me arrepender, estarei manchando o nome e a vontade daqueles que deram suas vidas para que pudéssemos vencer.

Ela observou aquele rosto exausto e aqueles olhos cansados enquanto contava aquela história. O silencio pairou sobre os dois depois daquilo.

— Quanto mais conversamos, mais tenho certeza que de você consegue mudar aquela turma – ela afirmou com convicção.

— Você fica me dizendo isso, mas não me explicou qual o problema com essa turma. Os dados que eu vi continham apenas as informações básicas e pessoais de cada um deles. Pode me contar o que realmente está acontecendo?

Raleigh pediu e Helena arrumou sua postura no assento de passageiro. Parecia alguém prestes a fazer um discurso para uma grande multidão onde tentaria dar o seu melhor para que os outros a compreendessem bem.

— A academia Bellfort é uma das maiores e mais antigas academia de artes mágicas de combate de Attilas, por isso a maior parte de seus alunos é composta por filhos de nobres e aqueles com alto nível de poder e status. Mas nela também há aqueles que são filhos de pessoas simples e comuns – plebeus. Por muitas razões de orgulho e prestígio, os alunos de origens plebeias são tratados com certa hostilidade e desprezo por aqueles que vieram de origens nobres.

Ao escutar aquilo, Raleigh riu com desdém. Não era muito diferente do exército onde os nobres costumavam ser alocados para os lugares e posições mais seguras, longe das batalhas enquanto os plebeus eram os primeiros a irem para as linhas de frente, assim, sendo os primeiros a morrerem também.

— Entretanto, nem todos são assim. Há muitos alunos de origens nobres que se misturam aos plebeus. Mas como esse é um problema muito antigo, sua solução não é tão simples, por isso, quando o Sr. Aurélio assumiu o lugar, ele iniciou um plano onde os nobres e plebeus tivessem o mesmo direito, mas não funcionou.

Raleigh podia imaginar facilmente o que Helena estava lhe dizendo.

Um nobre orgulhoso jamais gostaria de dividir os mesmos direitos que um mero plebeu. Isso não muda, não importava o lugar em que se estivesse. Eles eram arrogantes, esnobes e agiam de forma superior a qualquer um que fosse inferior a eles.

— É por isso que ele criou uma condição especial entre os cursos, onde as notas eram mais importantes que o status ou a origem. Obviamente, muitos nobres repugnaram essa decisão, mas ele havia obtido a aprovação do Alto Conselho, então não podia ser contrariado.

Helena explicava detalhadamente para que Raleigh pudesse ter uma noção mais clara do que estava acontecendo por de trás das cortinas, assim como o verdadeiro motivo pelo qual o diretor Aurélio o havia chamado pessoalmente.

— Os nobres não permitiriam uma coisa dessas tão facilmente assim, então fizeram o que sempre fazem. Eles subornaram os funcionários da academia para que falsificassem os dados de todos os alunos fazendo com que os plebeus fossem alocados para as turmas secundárias, onde deviam ficar.

Essa era uma tática muito comum daqueles com dinheiro e poder, algo com o qual Raleigh já estava bem familiarizado, principalmente dentro do exército, quando fazia parte dele.

Mesmo que Aurélio fosse o diretor da academia, possuísse a aprovação do Alto Conselho e detivesse todo o poder de comando ali, ele não podia fazer nada se os nobres resolvessem agir daquela maneira, muito menos podia provar tal coisa se não haviam quaisquer registros ou provas que pudessem agir a seu favor.

— Obviamente, o diretor fez inúmeras mudanças para impedir que isso continuasse, mas ele percebeu que estava lidando com algo muito maior do podia lidar, por isso teve de mudar de estratégia. Ele conseguiu lidar com as adulterações de notas e registros dos alunos, descobriu alguns dos principais funcionários responsáveis e lidou com eles, mas a corrupção já havia se infiltrado de mais para que pudesse eliminá-la por completo.

— Compreendo – disse Raleigh com um sorriso de ironia. – É por isso que mesmo possuindo notas altas, eles estão alocados nas turmas secundárias. Aquela conversa de que tinha problemas com trabalho em equipe era somente a menor parte do problema.

— Exatamente – ela confirmou sem hesitar. – Muitos deles foram classificados com uma classe maior que a de muito nobres e deviam estar alocados nas turmas primárias, mas devido a interferência deles e ao enorme esquema de corrupção, eles acabaram por serem alocados nas turmas secundárias mesmo tendo potenciais elevados.

Helena arrumou alguns fios de cabelos rebeldes atrás da orelha enquanto falava.

— Inicialmente haviam oito turmas secundárias e doze turmas primárias. Mas devido a ameaças, represálias, subornação, e até mesmo ataques e agressões, muitos estudantes plebeus começaram a ter medo de voltar a academia novamente. Houveram até mesmo casos de ameaças de morte e tentativa de estupro, por causa disso o número de plebeus foi diminuindo pouco a pouco até que não sobrasse nenhum.

Ouvindo a aquilo tudo, Raleigh só conseguiu mostrar um sorriso de desdém diante de tal situação. Não importava onde estivessem, nobres sempre veriam os outros como inferiores a eles e sempre agiriam como os únicos com o direito e a razão de tomar toda e qualquer decisão – mesmo que isso significasse agir muito mais baixo do que aqueles que eles repugnavam do fundo de suas almas.

— Eu achei que já tinha visto muita escuridão onde eu estava, mas acabo de perceber que aquele não era o único lugar em que ela crescia – comentou ele com certo sarcasmo em sua voz.

Helena não entendeu o motivo por trás daquele sorriso e por isso estava curiosa a respeito daquilo, mas resolveu continuar.

— A academia voltou a ser um lugar para os nobres novamente, um lugar onde somente aqueles com alto poder e status podiam frequentar. Mas o Sr. Aurélio não permitiria que sua academia fosse controlada por aqueles que acreditam que o dinheiro e o poder podem comprar a tudo e a todos. Ele substituiu todos os funcionários, até mesmo aqueles não estavam envolvidos, por ex-professores e ex-estudantes de outras academias que ele mesmo havia avaliado e estudado profundamente – aqueles que ele tinha a mais plena certeza de que não se venderiam para os nobres.

— Por que ele não fez isso logo no começo?

— Ele não podia. Sem uma boa razão, o Alto Conselho não poderia aprovar uma ordem em larga escala sem sentido como aquela. Como ele não tinha provas sobre a corrupção dentro da academia, ele teve de esperar até o momento em que eles cometessem um deslize, e foi quando ele agiu e conseguiu reunir provas sobre os esquemas de corrupção que haviam lhe trazido tanta desgraça.

Ela arrumou os óculos que pouco a pouco escorregavam até a ponta de seu nariz.

— Ele abriu as portas para os plebeus novamente, fazendo com que muitos ingressassem na academia mais uma vez. Mas os nobres não desistiram tão facilmente assim, e outra vez conseguiram interferir, fazendo com que todos fossem alocados para a turma secundária. E como se não fosse o suficiente, eles fizeram com que todos os professores que fossem responsáveis por aquela turma tentassem prejudicá-los de alguma maneira. Por causa disso, eles perderam totalmente a confiança que tinham na academia antes e se tornaram hostis com relação aos outros.

Raleigh não perguntou como os nobres conseguiram subornar os professores responsáveis por aquela turma dessa vez – mesmo Aurélio tendo os estudado e escolhido pessoalmente – porque sabia que os nobres nem sempre usavam dinheiro para fazer com que alguém se submetesse às ordens deles. Havia outro principal meio de subornação: eles também podiam usar pessoas próximas ou entes queridos para isso.

— Aurélio tentou convencer Corona a trabalhar para ele e se tornar responsável por aquela turma – disse Raleigh, lembrando-se da conversa anterior. – Ela odeia os nobres e a forma como eles agem, por isso não poderia ser comprada não importasse o valor. Mas ao mesmo tempo, também odeia pirralhos e a forma como eles agem, por isso recusou sem pensar duas vezes. Entendo, isso faz todo o sentido.

Corona não possuía uma fraqueza tão simples que pudesse ser usada contra ela, por isso foi a primeira opção de Aurélio, mas ele falhou, já que ela não estava interessada no trabalho que ele a ofereceu. Isso não o surpreendia nenhum pouco, dado o espirito feroz daquela mulher que nem mesmo os mais poderosos nobres podiam controlar ou interferir, sendo somente o próprio imperador a única pessoa a quem ela obedecia sem questionar.

— Tenho certeza de que eles tentarão entrar em contato com você e tentarão convencê-lo a trabalhar para eles usando alguma fraqueza sua.

Raleigh, assim como Corona, também não possuía fraquezas que pudessem ser exploradas e usadas tão facilmente contra ele. A carta na manga que Aurélio usou para convencê-lo não foi uma de suas fraquezas, mas um de seus erros – um dos poucos pelo qual sentia arrependimento. E não era algo que pudesse ser descoberto tão facilmente, principalmente por aqueles que não o conheciam.

— Permitir que essa turma seja desfeita novamente é o mesmo que dizer que os nobres venceram e que estão corretos.

Helena encarou Raleigh nos olhos, parecendo estar olhando para a alma dele. Para alguém sem muitas expressões como ela, aqueles olhos brilhavam repletos de seriedade e convicção, o surpreendendo um pouco.

— Isso é algo que o Sr. Aurélio jamais aceitará.


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