— Camille? Você está bem? 

Fui acordada por Lucas no chão do quarto de meu irmão. Acabei adormecendo de tanto chorar. Uma sensação horrível tomou meu corpo, sentia-me vulnerável. 

—Estou ótima.  

— Também sinto saudades dele. - sentou-se ao meu lado – Seu irmão era o cara mais incrível que conheci.  

— Eu não quero saber.  

— Eu sei que não confia em mim, mas pense nesses anos em que estive ao seu lado, mesmo sendo um gato. Eu participei do que vocês passaram. Estive ao lado do seu irmão todo esse tempo.

— Do que adianta eu ser importante e especial se não pude salvar meu próprio irmão? - a raiva que eu sentia estava nítida em minha voz, não conseguia controlar – Do que adianta você estar aqui agora? Falando comigo? Vai trazê-lo de volta? Vai voltar no tempo? Se isso não acontecer, todo o resto é lixo.  

— Camille, acalme-se. 

— Pare de mandar me acalmar!  

Lucas fez silêncio e fechou os olhos.  

               Ouvi o barulho da chuva turbulenta. 

                                  Chovia tanto que parecia que o céu ia cair. 

Quando percebi estava de pé, o espelho entregava minha feição transtornada. Olhei novamente para Lucas que continuava de olhos fechados. Aos poucos, a chuva foi passando e peguei-me respirando profundamente. O ar voltava aos meus pulmões e eu recobrava a minha sanidade. 

"Isso nunca havia acontecido."

— Você precisa se acalmar ou tudo a sua volta vai sair do controle. - interpelou - Não tem noção do quanto é poderosa. Precisa se preparar para o que está por vir. Precisa ouvir o que tenho a dizer com atenção, mesmo que pareça rápido demais. Seu aniversário de 17 anos está chegando e é por isso que seus poderes estão mais violentos. Controlar seu humor e seu psicológico é essencial, sua vida depende disso. 

— Meu aniversário é daqui a 1 semana. 

— Você vai saber, vou te explicar, mas precisa ser paciente. 

Aquele momento demonstrou uma conexão forte entre mim e Lucas. Confiava nele mesmo sem o conhecer e, ao mesmo tempo, tinha medo. Ele me desestruturava. Nitidamente conhecia meu interior, meus pensamentos.   

O decorrer da semana foi instigante. Lucas mostrou-me a barreira que ele e meu irmão haviam levantado, falou sobre meus poderes e como poderia controlá-los melhor. Treinamos algumas técnicas que descobri serem chamadas de “meditações”. São palavras que recitamos para darem vazão à energia dentro de nós.  

A relação da energia com os nossos poderes é fundamental. Ela é tudo que equilibra e percorre o universo. Alguns teóricos, segundo Lucas, acreditam que a energia criou tudo que podemos ver e que flui em cada um de nós de forma diferente. 

Apesar de aprender muito, Lucas sempre foge do assunto quando falo do “outro reino” e se nega a explicar com mais detalhes sobre eu ser tão importante. Repete que “as coisas se explicarão sozinhas e por isso preciso estar preparada”. Agora, falta apenas um dia para meu aniversário e não sei o que esperar apesar das altas expectativas. 

— Seu aniversário é amanhã. Como se sente? 

— Queria que meu irmão estivesse comigo. - conversamos enquanto descansamos deitados no gramado do jardim após longas horas de treinamento. 

— Eu também. Ele sempre foi muito cuidadoso com você. Fez de tudo para te manter segura. De tudo mesmo... - estranhei o tom de Lucas. 

— Como você e meu irmão se conheceram? 

— Somos amigos de longa data, mas sou mais ligado a você do que imagina. 

Meu rosto corou com o comentário. Ele provavelmente sentia a mesma ligação que eu, uma união inexplicável, uma confiança cega que chega a dar medo. Sentindo meu desconforto, virou de costas e, quando a blusa levantou com o movimento, avistei a marca idêntica a minha no canto direito do quadril. 

— Esse desenho ... -Lucas escondeu a marca. 

— Estou com sede, quer um pouco de água? 

— Não, Lucas. - segurei-o pelo braço - Não irá fugir dessa vez. Por que tem uma marca idêntica a minha? 

— Se eu te contar, pode ser que morra. Não vou arriscar. -tirando minha mão levantou-se foi para dentro de casa. 

 Aqueles olhos. 

                     Havia algo diferente. 

Não era impressão. Os olhos de Lucas estão ficando cada vez mais brilhantes. A expressão que ele fez deixou isso mais nítido. Corri até meu quarto e olhei no espelho, meus olhos também brilhavam mais, estavam mais profundos. 

 ***

 O findar do dia se aproximava, eram 23:45 pm, e eu me via mais ansiosa. Treinei uma semana para algo que não faço ideia do que irá acontecer. Lucas não me deu uma pista sequer e isso me deixa mais insegura. 

— Entra. - Lucas bateu na porta. 

— Vim conversar com você. - não teve coragem de olhar em meus olhos, seu corpo transparecia preocupação - Faltam 15 minutos para seu aniversário e eu não sei o que irá acontecer. Não te disse antes com medo de que isso te deixasse mais preocupada. - fez uma pausa e suspirou - Seu irmão me explicou que no seu aniversário de 17 anos sua natureza iria mudar, que algo iria acontecer, mas não me disse com exatidão. Apenas me instruiu a estar ao seu lado. - fez uma pausa longa e olhou em meu olhos –Acontece... que eu sou seu par para um propósito muito grande e a mudança não irá ocorrer só com você. É essencial eu estar aqui.   

— Mas...  

— Não me interrompa. - engoliu seco – Eu, seu irmão e uma amiga alteramos sua memória há muito tempo atrás. Revelar muitas informações do seu passado poderia te matar, mas acredito que o que irá ocorrer cortará esse encanto. Antes que aconteça, peço que me perdoe. 

Apesar de sentir meu coração desacelerar, minhas veias saltavam com a pressão que sentia no pescoço. Ouvir que minhas memórias foram alteradas para me proteger não era a melhor notícia. Quem eu era, então?  

— Camille... - afastei-me de Lucas.

— Vocês... alteraram a minha memória? Violaram minha mente, quem eu sou, para me proteger?

— Me perdoe, mas peço que não faça julgamentos precipitados. Em breve, tudo irá se revelar. Por favor, peço que confie em mim mais essa vez. 

Antes que eu pudesse expressar qualquer reação, meu corpo começou a queimar arrancando gritos pavorosos de meus pulmões. Eu me debatia no ar com a dor. É como se chamas de mil graus fossem lançadas contra o meu corpo. Minha mente borbulha e caio em uma escuridão profunda.  

— Oi, Camille. - o que parecia ser uma mulher apareceu na minha frente - É um prazer conhecê-la. - sorriu. 

— Quem é você? 

— Sou Mariah, a chave de toda a energia.

— Mas, como... 

Ignorando minhas palavras, Mariah, em um passe de mágica, fez o que parecia uma pequena pérola rosa. Aproximando-se de mim empurrou-a em direção a minha testa. Tento escapar, mas meu corpo não responde, permanece imóvel. 

Novamente, sinto a ardência, o fervor. As chamas me consumindo de dentro para fora. Caio no abismo novamente e vejo diferentes cenas do que parece ser minha vida. Meu irmão, amigos, pais, Lucas. Todos ali, bem na minha frente. 

Lucas se aproxima recitando uma meditação e repetia incansavelmente: 

“Nerunraki zaará matriri minri dezerá”  

Quanto mais ele recitava, mais eu me aproximava. Concentrando em sua voz, minha consciência voltava aos poucos, a ardência em meu corpo baixava e as dores diminuíam. 

Senti minha pele tocar os lençóis da cama. A mão suada de Lucas segurava a minha com força. Não recitando mais a meditação, mas com a respiração ofegante, estava deitado ao meu lado na cama. Cansada, adormeci ainda sentindo as dores da experiência. 

Despertei com os raios de sol adentrando o quarto. Ainda zonza tentei abrir os olhos. Fui tomada pelo desespero ao ver que Lucas não estava aqui.

— Lucas? Lucas?  

Levantei em um salto da cama, mas acabei sendo levada ao chão com a fraqueza das pernas. Preocupado com o barulho, Lucas entrou correndo no quarto e me viu jogada no chão. 

— Camille! O que houve? Está se sentindo bem?  

Abracei-o em um desespero. Eu lembrava de tudo. Eu lembrava dele. Lembrava da nossa vida antiga. Lembrava quem eu sou. Lucas me abraçou de volta como se agradecesse o gesto.  

— Seus olhos... - ele disse.