Máscara Omega escrita por MrSancini


Capítulo 2
Vida ordinária / Segredos




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Christie

—Mas vocês se conheciam já? – Meu tio, aparentemente com problemas de memória, pergunta, olhando de mim para o Julio.

—Ahan, somos colegas de classe. – Julio responde. – E melhores amigos há quase seis anos, esqueceu?

—Desculpa, as vezes bem... Eu esqueço das coisas, sou um velho, ao contrário de você. – James dá um tapa em Julio.

—E você nunca me disse que trabalhava pro meu Tio. – Observo os dois ali.

Ficamos nós três nos encarando naquele momento, sem saber o que falar. Até que resolvo voltar pro saco de areia, socar e chutar. Era melhor do que ficar naquele silêncio desconfortável. O impacto dos meus golpes era familiar e gostoso. Antes do Dia Zero, eu nunca pensei em treinar artes marciais, mas Tio James me convenceu a isso pouco depois de eu chegar aqui.

—Eu só comecei a trabalhar pro Doutor tem umas três semanas, só que eu esqueci de te contar. – Julio diz, parando próximo de mim.

Aquilo era bem compreensível. Julio era com certeza o garoto mais inteligente que eu havia conhecido, mas era um tanto distraído pro mundo ao redor. Digamos que nossa amizade era mutualmente benéfica. Ele me ajudava nos estudos, e quando era preciso, eu defendia ele de certos bullies.

Mais de uma vez fomos parar na diretoria nos últimos dois anos por conta de brigas que tive, defendendo ele. Não me arrependo de nenhuma das vezes, ninguém mexe com meu amigo, por qualquer razão.

—Você faz o quê lá na clínica? – Pergunto, enquanto soco o saco de areia. Gotas de suor caem do meu queixo, mas não ligo.

—Ajudo ele com uma coisa aqui e outra ali... – Julio responde, vagamente, dando a entender que eram coisas pequenas. – Mas principalmente, a questão das máquinas, computadores ou eletrônicos. Deu problema, eu tô lá resolvendo. Não há eletrônico que eu não possa consertar.

Esse era outro problema dele, ele era bem arrogante quanto a inteligência dele. E isso já o meteu em encrencas demais, mas quem sou eu pra criticá-lo por se gabar dos talentos? Eu faço isso em relação a minha capacidade de bater nos outros.

—Mas fala pra mim, Christie... Por quê você treina tanto? – Julio pergunta, em um tom relaxado.

—Não sei. – Respondo com sinceridade. – Só lembro que quando cheguei aqui, pouco depois do Dia Zero, o James falou que seria bom pra eu me distrair treinando aqui, ele havia acabado de adquirir a academia.

—Considerando o que aconteceu... – O tom dele é meio sombrio, como se pedisse desculpas por eu ter mencionado aquilo.

—Fazem quase seis anos, Julio... – Paro de socar e dou um sorriso pro meu amigo. – Não precisa pedir desculpas por eu mencionar a morte dos meus pais. – Ele percebe meu sorriso e dá uma risada. – Veja, não é que eu não sinta falta deles, mas... Eu já estou em paz comigo mesma, e segui em frente, como eles provavelmente queriam. E se eu ficar remoendo meu passado e me martirizando... Como vou encarar eles no final de tudo?

—É, você tem razão... – Julio agora sorri de maneira mais sincera. – A gente se vê na escola na segunda, Christie!

—Até segunda, Julio. – Me despeço, enquanto ele vai embora. Meu tio já não estava mais ali, provavelmente foi verificar alguma coisa com o gerente da academia, antes de voltar pra clínica.

Tudo o que faço durante o resto daquele sábado é treinar, porque não tenho mais o que fazer. Exercícios da escola podem ser feitos amanhã, como sempre. Minha vida é bem ordinária, eu estudo, trabalho na academia e treino, não vejo razão para mudá-la.

O fim de semana passa num borrão, e na segunda-feira de manhã, estou já na porta do único colégio da cidade. Ele abriga estudantes dos ensinos Fundamental e Médio, com aqueles que desejam ir pras universidades, acabam sendo escoados para as cidades vizinhas ou a capital, caso desejem.

E claro, esse período do começo da manhã, é onde os estudantes fazem a social, contam a fofoca do fim de semana, e sabemos se algo interessante aconteceu. Não que eu esteja realmente interessada no que os outros fazem e certamente o pessoal não está interessado em um: Soquei e chutei um saco de areia o sábado inteiro e no domingo eu fiz meus exercícios escolares e passei o resto do dia deitada por conta dos músculos.

No terceiro passo que dou no pátio externo, vejo uma barra de cereais voando em minha direção. Como sempre, logo em seguida, Julio aparece. É, definitivamente ele fica diferente naquela roupa casual. O uniforme escolar é mais a cara dele.

—Christie, se quiser evitar pepino, pegue o outro corredor. – O tom dele é baixo, confidencial.

—O que foi? – Pergunto.

—O Roberto terminou com a namorada esse fim de semana, e escutei ele conversando com os colegas que vai dar em cima de você. – Julio parece nauseado com o que fala.

Dou um suspiro resignado e pego o outro corredor, enquanto Roberto Sales, um cara grandalhão, mas que nunca vi frequentar a academia do meu tio desde que chegou na cidade, três anos atrás, conversa despreocupadamente com seus amigos. E nisso, cumprimento os alunos que por acaso me cumprimentam.

A aula ia ser o tédio de sempre, mas evitei um estresse adicional de ter que lidar com o Roberto logo de manhã. Não que eu falasse com ele, mas esse cara já me causou encrenca aqui, por razões que eu não faço ideia. Algumas das vezes em que fui parar na diretoria, foram por causa de colegas dele.

Felizmente as aulas passam rápido, e logo é hora da saída. Eu e Julio vamos seguir pra locais diferentes, ele trabalhando na clínica do meu tio e eu, na academia. Por alguma razão, ele parece preocupado.

—Cara, o que foi? – Pergunto, enquanto saímos da sala de aula. – Sei que você sabe a matéria de cabeça, mas você não parecia prestar atenção em nada.

—Eu só estou com algumas coisas na cabeça. – Julio desconversa. – Não esquenta, é só coisa do trabalho. Seu tio às vezes só falta arrancar meu couro.

—Eu posso não ser tão inteligente quanto você, mas se precisar desabafar, só chamar. – Digo, enquanto dou dois tapinhas nas costas dele e vou embora.

—Valeu... – Ele dá um sorriso fraco e começa a seguir na direção oposta.

 

 

Julio

Enquanto vou pro meu expediente na clínica, um monte de coisas não saem da minha cabeça. A primeira delas é justamente a Christie. Não sei se isso é de agora, mas começo a perceber o quão bonita ela é. Os cabelos loiro-platinados, quase brancos... Como aquilo era natural? Os olhos cor violeta. Será que eu estou gostando dela?

Se bem que essa não era a minha maior preocupação, mas sim... Quando o James colocaria ela a par do que aconteceu com o corpo dela? Sei que ele me chamou pra trabalhar justamente por causa do fato de que sou amigo próximo de sua sobrinha, logo poderia confiar em mim. Me sinto mal de ter que esconder isso dela. Espero que ele diga a verdade a ela.

Meus pensamentos enquanto caminho são interrompidos por um grupo de três garotos, bem maiores do que eu. Mas é claro, Roberto e seus dois pela sacos. E Roberto não parece nem um pouco feliz. As coisas vão ficar feias pra mim.

—E aí, otário? – Roberto já chega, dando um empurrão em mim com as duas mãos.

—Qual é o seu problema? – Pergunto, irritado.

—Trouxas fofoqueiros. – Ele responde, enquanto seus cupinchas se aproximam de mim.

—Não tenho culpa se a Angela te chutou porque você é um escroto mimado. – Isso não vai terminar bem pra mim, mas ei, quando eu teria a chance de mandar uma dessas?

—Aquela vadia vai ter o que merece, assim como você, seu... – Ele para antes de dizer algo. Provavelmente me ofenderia porque sou negro.

—Termina essa frase, vai! – O desafio, mas ele, covarde que é, apenas acena pros amigos dele me segurarem. – Ah, claro, porque o bonzão não consegue bater num cara menor que ele sem a ajuda dos buchas de canhão. Só me respondam... Qual de vocês dois é o ativo e qual o passivo?

Nenhum deles responde minha provocação, mas Roberto acerta um soco em minha boca, logo antes de começar a socar meu estômago e costelas. E cacete, como essa merda dói. Eu não sou um atleta feito a Christie, então basicamente eu fui transformado em patê ali.

Dez minutos, que pareceram duas horas, os três me largam no chão, não sem antes chutarem a lateral do meu corpo. Ai! Então era assim que um torcedor se sentia depois de provocar a torcida adversária num estádio de futebol. Ainda assim, preciso ir trabalhar, e como trabalho numa clínica, poderia usar o serviço de graça.

Cuspindo um pouco de sangue dos lábios ensanguentados, vou caminhando com um pouco de dificuldade até a clínica. A maioria das pessoas me evita porque... Sei lá, elas que cuidem das próprias vidas, não é como se eu fosse morrer por conta de uma surra.

Chegando na Clínica Williams, já sou atendido pelo próprio James, que estava descansando enquanto as outras funcionárias saíram no horário de almoço.

—Julio, minha nossa, você foi atropelado? – Ele me leva até o consultório, preocupado.

—Eu impedi que um babaca fosse dar em cima da Christie. – Respondo, enquanto ele me examina. – O babaca chamou seus dois cupinchas e me deu uma surra.

—Pelo visto não foi nada de grave. – James suspira aliviado. – Então, pode tomar banho e colocar o uniforme.

No chuveiro, enquanto a água cai em meu corpo, a minha vontade é de gritar e socar. Eu estava ultra frustrado, não poder me defender, ter que depender da presença da Christie pra esse tipo de coisa, doía. Não por ela, mas por mim mesmo.

Mas, no momento não posso fazer nada a respeito disso, então termino meu banho e coloco meu uniforme da clínica. Porém antes de começar a trabalhar, preciso tirar uma dúvida com o James. Vou até o consultório dele.

—James, preciso falar algo contigo antes de começarmos. – Meu tom é sério.

—Pois não. – Ele permanece descontraído.

—Quando você vai contar a verdade para a Christie? – Vou direto ao ponto. – Você sabe que não vai poder esconder isso pra sempre.

—Pretendo que isso seja em breve... – James não esconde o jogo. – Julio, você, melhor que ninguém sabe o que estamos fazendo. Foi difícil reverter o processo deles sem que ela soubesse, e ainda mais construir o que fizemos com base nisso. – Ele abre a gaveta e olha para algo, algo que estávamos fazendo desde o último Natal, antes mesmo de eu trabalhar oficialmente aqui.

—Mas... Quem são "eles" afinal? – Pergunto, aliviado que James não pretende esconder o jogo.

—Essa é a pergunta valendo um milhão de reais. – James responde, dando de ombros. – Tudo o que a Christie lembra de depois do incidente é acordar dois dias depois num abrigo, logo depois ela entrou em contato comigo e veio pra cá.

Eu lembro bem de como a Christie chegou aqui, porque foi coincidentemente num dia em que vim parar na clínica por conta de uma coisa que entreguei para a lanchonete dos meus pais. Ela estava num estado emocional além das lágrimas. Totalmente catatônica, totalmente diferente da garota que é hoje.

Mesmo no começo, quando ela começou a estudar aqui, ela se mantinha isolada e todo mundo tratava ela como uma coitadinha porque perdeu os pais no Dia Zero, sem considerá-la de verdade. Apesar de tudo, ela treinava sempre na academia do tio, pouco tempo depois de James tê-la adquirido.

—Eu trabalhei muito depois do exame que fiz nela, e chegamos ao ponto em que estamos hoje. – James continua. – Alguém fez alterações no corpo dela. Consegui de algum jeito hackear essas modificações.

Esse era um outro ponto delicado, pro mundo, James Williams era só um médico com uma clínica e uma academia numa cidade pequena do Rio, mas descobri por acaso que ele trabalhou por um breve período para o Serviço Secreto Britânico, e conseguiu algumas coisas em uma missão de espionagem. O conhecimento que ele adquiriu em nanotecnologia permitiu que ele hackear as modificações feitas no corpo da sobrinha.

—Basicamente, nós estamos num ponto da praia, esperando uma onda específica bater na parte da praia em que estamos. – Faço uma analogia longa, mas ele concorda.

—Agora, vamos parar de enrolação e começar a trabalhar. – James muda de assunto, mas olho e relógio da parede e vejo que as funcionárias já devem voltar do horário de almoço, então devo começar a trabalhar.

 

????

—Quando poderemos começar? – O garoto dizia ao homem de terno na frente dele. As mãos dele estavam sujas.

—Esta noite é o ideal. – O homem responde. – Agora, o que foi isso na sua mão.

—Ah, eu só surrei um moleque qualquer. – O garoto dá de ombros.

—Você poderia ter aguardado e feito dele a sua primeira vítima. – O homem de terno suspira, exasperado.

O garoto começa a andar em círculos na sala, enquanto o homem permanece parado.

—Nenhuma dessas historinhas me impressiona. – Digo, para os dois ali, sentado numa cadeira atrás de uma mesa. – Vocês tiveram sucesso em descobrir quem roubou os nossos dados meses atrás?

Como sempre, nenhum daqueles dois imbecis podia me prover uma resposta convincente. Eu provenho dinheiro, recursos e mesmo uma posição de poder na cidade, mas ainda assim não descobriram quem foi o responsável por roubar 75% de uma pesquisa nossa.

Não apenas roubaram, mas infectaram nossos servidores a ponto de que se tentarmos redesenvolver os projetos roubados, um vírus entra em ação. Quem teria tal habilidade? Felizmente, outros projetos estavam prontos.

—Nenhuma resposta? – Pergunto, antes de sair.

—Johann... – O garoto se dirige a mim. – Como está a Alpha?

—Bem... Bem melhor que vocês. – Respondo, saindo. – Em breve ela ficará 100% apta a avançar.

Sem dar atenção a qualquer outra coisa, saio daquela sala. Impressionante, como as pessoas fazem qualquer coisa, incluindo entregar a própria liberdade, por uma porção de algo semelhante a poder. Mesmo que isso custe a vida das pessoas que estão ao redor delas, é patético... Porém conveniente.

Saindo daquele prédio, me dirijo ao veículo que me aguarda lá, um carro preto simples. Não quero que me associem a nada aqui, não antes do tempo.

—Está na hora do jogo começar... – É tudo o que digo, quando o carro que viera me pegar chega a seu destino.

Atravesso corredores de azulejo branco, até chegar numa sala onde uma garota de cabelos rosas faz alguns abdominais. Os olhos dela eram de uma cor igualmente rosada, e estavam completamente focados no exercício em questão.

—Johann... – Ela percebe a minha presença, mas continua o exercício dela. – Quando o Alpha Watch vai ficar pronto?

—Dê mais um tempo... – Respondo. – Mais alguns dias, uma semana no máximo, enquanto isso... Deixe que eles trabalhem.

—Tudo bem. – Ela sorri.

Alpha era uma garota fascinante, apesar de estar sob o nosso controle, ela tem mentalidade e vontade própria, mas não vê problema em cumprir nossas ordens. Claro, ainda não demos nenhuma ordem fora daqui, mas qualquer coisa que ordenemos, ela cumpre.

Bom, finalmente, depois de décadas agindo nas sombras, essa cidadezinha seria o primeiro passo de nosso plano. Sobrevivemos a segunda guerra, seguimos nas sombras, crescemos, nos tornamos influentes. Pense em um ato terrorista ou guerra dos últimos sessenta anos, teve dedo nosso. Ditaduras? Nós secretamente as financiamos para aumentar o caos.

Claro, houve a falha no Dia Zero, o que atrasou nossos planos, mas agora é hora de seguir em frente. Saio da sala onde Alpha treinava, tirando meu jaleco branco. Na parte de trás do meu pescoço, havia uma tatuagem. Sei que essa atitude minha não era necessária e exige que eu use roupas pesadas quando estou entre os civis, mas eu queria mostrar um pouco de personalidade. A tatuagem, claro... Era uma cruz suástica.


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