Vermelho Como Sangue escrita por VILAR


Capítulo 1
| Parte 1 | Tempestade Vermelha




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Cinza. Tudo ao meu redor é cinza. As ruas, as lojas, as falas, as pessoas, as emoções. Tudo. Até mesmo eu.

Meus tênis não se safaram. Observo-os, cinzas, batendo contra a calçada, cinza, enquanto ajeitava meus fones, cinzas, em minha cabeça, cinza, tirando meu cabelo, cinza, da frente. A minha única salvação desse interminável cinza é algo que não tem uma cor definida — é arco-íris, é aquarela. Qualquer coisa com milhares de cores que vier na minha cabeça.

Puxo meu celular do bolso do meu casaco cinza e fito o botão que me salvava de todos, de tudo. Meu único e maravilhoso herói. Ah, este botão tem cor. Uma cor que não sei nomear. Talvez branco, a união de todas as cores? Não. Com certeza saberia se fosse branco. Ainda não encontrei sua cor, mas ainda não desisti de procurar — apesar de ter a leve suspeita de que nunca encontrarei.

Ao apertar o botão, em uma explosão veloz e silenciosa, tudo se torna colorido. O céu azul, o cabelo rosa da garota a minha frente, as flores da floricultura que acabei de passar. A música é transformadora, de repente, tudo fica alegre e vibrante, e inspiro fundo conforme as batidas inundam meu cérebro, aliviada pelo fim momentâneo do cinza.

Música é meu ar, meu chão, meu alimento, o que circula em minhas veias. É o combustível que me dá forças para levantar da minha cama toda manhã ou tarde, dependendo do meu trabalho.

O caminho para a loja que normalmente dura cerca de cinquenta minutos, milagrosamente se transforma em apenas três. O tempo voa quando minha mente está longe, acompanhando a melodia, pensando em algo que gosto ainda mais do que música. Dança. Se música é meu alimento, que viveríamos sem por poucas semanas, a dança é minha água, que morreríamos sem em poucos dias.

Conter meu corpo para não seguir o ritmo no meu ouvido é uma tarefa difícil. Requer muita concentração e bastante força de vontade — uma pitada de bom senso também. Não gostaria de ser esculachada por começar a dançar no meio da calçada movimentada. Apesar de ser bastante tentador.

Pare. Não seja idiota. Não vale a pena encarar a humilhação apenas por uma música, não é? Ou vale?  

Saia já da minha cabeça, pensamentos!

Quando consegui dispersar as ideias absurdas estou na frente da loja onde trabalho. Às vezes, fico mais aqui do que na minha própria casa.

Subi pelas escadas íngremes e estreitas lamentando pelo que viria a seguir. Degrau por degrau, reprimindo a rebeldia de continuar mergulhada na monotonia pelo resto do dia. Paro na frente da portinha de aço, uma de várias do andar, e já não posso mais evitar. Pauso a música.

— Tem quatro computadores para ti hoje, Bianca — disse a voz masculina cansada, vindo de Ricardo, de trás do balcão descascado.

Bom dia para você também, Ricardo. Pode, pelo menos, tirar os olhos do celular para falar comigo?

— Certo — respondi simplesmente, afastando os pensamentos inúteis. 

Passo pela pequena recepção, cujos únicos móveis que davam vida ao lugar são um balcão branco descascado pelo tempo e uma planta prestes a murchar próxima a porta. Nem cadeiras para clientes, nem quadros. É tão morto aqui que atrair clientes perdidos e prováveis interessados é impossível. Nunca recebemos alguém que não seja conhecido de Ricardo ou Yuri, o babaca que vem nos ajudar — mais atrapalhar — a cada duas semanas, mesmo que esteja contratado para atender todos os dias, como eu. Mordomias de ser o filho do dono. Sempre que o velho Ferreira vem observar os funcionários, Ricardo e eu somos obrigados a mentir sobre a frequência do filho inconsequente.

— Falem de novo e os dois estarão no olho da rua no dia seguinte. — Foi o alerta que Yuri nos deu quando relatamos a primeira vez ao senhor Ferreira. Preferi não arriscar mais. Infelizmente a música não paga o meu aluguel. Ricardo também não falou mais nada. Deve estar preocupado de não conseguir alimentar a esposa e os quatro filhos. Não que eu saiba da sua vida. Ele tem cara de alguém casado e com quatro filhos.

Yuri é o pior tipo de pessoa que se pode ter por perto, devo parabenizar o velho Ferreira por conseguir morar com o filho durante trinta e três anos de sua vida. Yuri adora fazer deboches que magoam as pessoas, dando a desculpa que tudo é apenas uma piada. Realmente, Yuri, eu adoro sua piadinha sobre meu rosto ser sujo por causa das sardas que dominam meu nariz e bochechas. Também fico honrada com o apelido “sujinha” que me deu. Vida longa ao grandíssimo comediante que rebaixa os outros para não perceber o quanto é derrotado!

Passei ao lado do meu chefe concentrado em um joguinho bobo para celular e vou para o único outro cômodo do estabelecimento, praticamente a minha segunda casa. O local onde arrumamos as máquinas é ainda menor que a recepção. Com muita força de vontade e desespero, conseguimos fazer caber duas pessoas aqui.

A poeira logo atinge meu nariz e não consigo segurar a sequência de espirros. Maldita alergia.

Após me acalmar, abri a cadeira de ferro, que conseguimos do bar da esquina que estava prestes a quebrar, e coloco o primeiro gabinete a minha frente. Mais um excitante dia xeretando o computador das pessoas para saber o quão mal elas andam tratando-os. A maioria das vezes é vírus por acessarem sites pornôs. Tudo bem que ninguém costuma pensar direito quando está louco de excitação, mas é tão difícil fechar o maldito pop-up que abre assim que clica em um filme? Não custo nada, sabe? Poderia me poupar de ver o link “orgia louca no carnaval pau gigante de vinte e cinco centímetros” quando estou fazendo a limpeza. Isso nem faz o menor sentido! Duvido que exista algum desse tamanho.

Depois de duas horas e meia, o primeiro está feito. Retiro o gabinete da precária mesa de madeira e o deixo na recepção sob os olhos de um Ricardo ainda concentrado no joguinho. Ainda nada de cumprimentos.

O segundo é simples, quase cômico. A pessoa só desencaixou, provavelmente com uma batida ao cruzar as pernas — dedução da pessoa que mais faz isso no mundo: eu! -, a memória RAM. Abri e arrumei isso em menos de dez minutos.

O terceiro e o quarto são mais trabalhosos e chatos. Demoram cerca de três horas cada. Quando finalmente finalizo o último o dia já está quase no fim. Falta pouco para escurecer.

Para espairecer as ideias e escutar um pouco de música, saio da loja e fico encostada na parede do prédio, observando o movimento das pessoas que estão saindo de seus trabalhos. Fuço meu bolso do casaco a procura do acompanhamento perfeito para meu momento relaxante. Cigarros.

Ascendo o tabaco e trago o fumo horrível. Isso é o que acontece quando se tem que economizar e comprar o mais barato.

Não sou uma viciada. De jeito nenhum. Só ascendo em ocasiões específicas, como agora. Todo dia, nesta mesma hora, neste mesmo lugar; um único cigarro. Isso me ajuda a colocar as ideias no lugar e me preparar para aguentar mais quatro horas enfiada naquele lugar minúsculo olhando para o rosto apático de Ricardo, pois nunca temos nada para falar.

Ah, merda. Sabia que estava esquecendo alguma coisa.

Era hoje o dia que finalmente abriria mão da velha Bianca. Droga. Depois de prometer tanto a Larissa.           O que falarei quando ela ligar? Mentir? Não, aí não estaria cumprindo com o plano da nova Bianca. Adiar? É uma boa opção.

Coloco uma mecha castanha atrás da orelha, bufando.

Isso é um saco. Não deveria ter concordado com uma bobagem dessas. Vou cancelar e mudar o número da minha linha.

Larissa e eu somos... não. Não somos amigas. Temos uma relação complicada e totalmente unilateral. Nos conhecemos na faculdade quando ela roubou o meu lugar especial. Eu tinha certeza que ninguém frequentava aquele lugar e podia secretamente treinar passos de dança. Parei assim que ela, como quem não quer nada, perguntou se podia sentar ali também, em lágrimas. Larissa chorou o intervalo todo e eu não falei nada. Aumentei o volume da música para não escutar quando fungava. Foi estranho e desconfortável, pois, veja bem, só queria aproveitar a melodia. Não pedi uma mulher adulta, que cursava um curso diferente do meu, ali, chorando o tempo todo. Deveria ter levantado e ido embora, mas aí tudo ficaria mais estranho ainda, não? Ela poderia pedir para eu ficar. Felizmente não tive que ficar pensando em coisas difíceis como manter uma conversa.

Por incrível que pareça, essa garota estranha apreciou minha presença e começou a falar comigo todos os dias, no mesmo lugar. Fala sério, eu nem quis saber o porquê ela estava chorando. Não é considerado rude? Essa atitude não deveria afastar pessoas de mim?

Pensando melhor, até hoje não sei o motivo. Bem, não que me importe.

Não pedi por companhia, mas Larissa simplesmente entrou na minha vida para perguntar se tenho dormido direito, reclamar das minhas olheiras enquanto argumenta o quanto isso não é saudável, como estava me saindo nos estudos e, depois de alguns meses, quando me conheceu mais um pouco, se finalmente consegui fazer amigos. Sempre respondia a mesma coisa:

— Não. Não consegui porque, adivinha só, não quero. — E porque sou uma idiota insegura, que não consegue manter uma conversa por mais de um minuto. Mas isso ela não precisa saber.

— Ah, vamos, Bianca! — Contra-atacava com entusiasmo. — É legal conhecer pessoas novas. Vai te fazer bem.

Da última vez me rendeu um pé no saco. Você.

Nunca fiz nada para manter nosso relacionamento estranho e irritante. Larissa mantém contato comigo até hoje, três anos após o meu curso técnico, por vontade própria. Vai ver é uma masoquista sentimental.

Vinte para as seis. Hora de voltar para o lugarzinho quente e claustrofóbico e tentar ser a tal nova Bianca. Não deve ser tão difícil assim.

Apago o cigarro no cinzeiro da área de fumantes do restaurante capenga ao lado e reúno máximo de coragem que sou capaz. Força, Bianca. Você consegue. Subi as escadas com firmeza e, só quando chego porta de aço, encerro a música. Toda minha determinação murcha imediatamente. Talvez... se eu deixar para amanhã...

Não. Tem que ser agora. Inflo os pulmões, focando minha mente agitada em pensamentos felizes. Abro a porta que range tão alto que ecoa pelo andar inteiro. Ricardo ainda assim não olha para mim. Ótimo. Vai ser difícil.

Encosto a porta e dessa vez sou mais cuidadosa para não fazer barulho. Não que tenha adiantado muito.

Bem, é agora. Força.

— É... — Começo e logo me perco. Droga. Esqueci do principal: um assunto para conversar. Ah, porcaria, agora ele está olhando para mim, esperando! — Hm... — Logo agora que finalmente tenho a atenção dele... inferno, Bianca! Algo banal, corriqueiro, como... como... computadores! — Hoje foi bem tranquilo, né? Nem tivemos muitos para olhar. — Ótimo! Perfeito! Melhor impossível!

Ricardo concorda com a cabeça e volta atenção para o celular novamente.

Não dá! Simplesmente não dá! Esse é o pior cara que eu poderia arrumar para superar meus limites. Porcaria. Desisto.

Não, não posso desistir. Isso é o que a velha Bianca faria. Não sou ela mais. Agora sou a nova Bianca — uma pessoa que ama conversar, é compreensiva e absurdamente calma. Vamos tentar de novo.

— Blusa maneira — falo, balançando os ombros.

Sutil e gentil, uma grande combinação.

— É do Yuri, uma que estava perdida aí dentro há várias semanas. — Aponta o dedão para o cubículo que passei a tarde toda.

— Ah, então é uma blusa de merda.

Ricardo me olha, ainda sem esboçar nada.

Droga. Falei isso alto. Abro um sorriso amarelo para contornar a situação.

— Tem razão. — E voltou olhar para o celular.

Pelo menos temos algo em comum. Odiamos babaca do Yuri. Talvez possa transformar isso no próximo assunto, sem margem para se tornar uma conversa chata e cansativa, como, bem, a maioria. Mas como? Yuri nem aparece direito para termos algo mais para reclamar.

— Ele já veio essa semana? — Arrisco, esperançosa em trocar mais de três palavras com o caladão.

— Você o viu por aqui? — rebate imediatamente, ainda entediado, concentrado na telinha brilhante.

— O quê? Não... não vi.

— Então é porque não esteve.

Para o inferno com essa conversa. Quer saber? Desisto. Foda-se esse idiota e essa porcaria de emprego. Cansei. Espero que ele ao menos seja legal com a esposa e os cinco filhos. Ou são quatro? Ah, esquece!

Volto a colocar os fones e torço para as quatro horas passarem rápido, o que, infelizmente, não aconteceu.

Às 22h, Ricardo anunciar que vai fechar a loja e que eu estou liberada. Finalmente. Estou quase enlouquecendo dentro desse lugar apertado — nem a música consegue distrair completamente.

Uma coisa que nunca entendi é o motivo de uma loja de computador ficar aberta até essa hora. Mal tínhamos clientes para o ponto alto do dia, quem dirá nesse horário? É estranho e totalmente suspeito. Yuri deve fazer isso aqui como ponto de droga. Não que uma coisa ligasse a outra. Tudo bem. Não faz o menor sentido. Minha cabeça está cansada demais para pensar em algo coerente.

Desço as escadas e fico escorada na parede debaixo, esperando meu meio de transporte voltar para casa. O número de pessoas diminui, assim como a diversidade, agora apenas jovens energéticos caminha para lá e para cá, rindo e falando alto. O tempo mais escuro que o normal me motiva a puxar um cigarro. Fumo observando as nuvens negras tomarem o céu, não podendo evitar um arrepio na espinha. Fico sentada em escutar música, no entanto, assim não ouviria a buzina, que chega dez minutos depois.

Caminho até o gol cinza do outro lado da rua. De perto, os riscos eram bem visíveis. A mancha no teto por causa do sol forte também. É um carro velho, herança de família que ele se recusava a desfazer, mesmo que a cada mês tenha de levá-lo a oficina. Foi o primeiro presente que meu namorado ganhou do seu pai. E o único.

Isso mesmo, eu tenho um namorado. Um namorado saído de um filme dos anos 80 — que desce primeiro do carro e abre a porta para mim, mesmo que já não faça isso há muitos anos.

Abro a porta num estalo e sento na poltrona dura.

— Boa noite, Bianca. Como foi o seu dia? — pergunta quanto eu coloco o cinto.  Paulo sempre vinha me buscar de segunda a sexta, nunca faltou desde ue eu comecei a trabalhar aqui. Era pontual. Estava ganhando uma carona e tanto para casa. Sempre me recebia com essas mesmas palavras, como um robô. Mas eu não reclamo, eu também sou um robô.

— Nada de novo. — É sempre a minha resposta.

Paulo e eu nos conhecemos no Ensino Médio, quando tínhamos dezesseis anos e muitos sonhos impossíveis. Ele era do tipo tímido, aluno nota dez, que sentava o mais próximo possível do professor. Eu gostava de sentar na última carteira, a próxima a janela, e tirar um bom cochilo e jogar bolinhas de papel na cabeça dos amigos.

Nunca gostei do ambiente escolar, minhas notas eram sempre abaixo da média. Aquilo não era para mim. Não gostava de matemática, nem de biologia e nem de sociologia. Achava um saco ficar parada, só escutando, fingindo que me lembraria de tudo depois de me formar. Fui para a secretaria duas vezes por “desafiar os professores”. O que é mentira, pois só falei para o professor de matemática que não dava mínima para delta e para o de literatura que já cansei de memorizar os livros de Machado de Assis.

Ele era o exemplo, e eu apenas queria me divertir.  Meu boletim era um festival de notas vermelhas, mas no último bimestre sempre conseguia o dez que precisava. Porque Paulo me ajudava. Não que ele tivesse escolha. Os professores tiveram arilhante ideia de colocar o melhor aluno da escola para ensinar a aluna que não tinha o menor interesse em estar ali, já que a reunião dos pais todo bimestre já não estava funcionando mais.

No terceiro ano, começamos a namorar. E foi a coisa mais mágica que aconteceu comigo. O sentimento que nos cercava era maravilhosamente delicioso, nos completávamos em todos os sentidos. Ele era a minha música, que eu escutava várias e várias vezes e não enjoava nem por um segundo.

Os professores acharam que nosso namoro fosse atrasar o prodígio, mas Paulo nem uma vez deixou sua nota abaixar. Meus pais não podiam ter ficado mais felizes, todo final de semana convidavamulo para jantar lá em casa. E, com um sorriso brilhante e caloroso, ele aceitava. E, entusiasmado e segurando uma flor que pegava no jardim de sua casa, ele comparecia.

Paulo sempre sonhou em fazer medicina. Segundo ele, ajudar as pessoas era o combustível que o movia. Sempre me emocionava e me perguntava se existia outra pessoa com um coração maior que o do meu namorado. Paulo também me incentivava a estudar e, com ele ao meu lado, decidi fazer um curso superior. Não estava muito animada com a minha escolha, mas ele me garantiu que se eu não gostasse mesmo, poderia largar a qualquer momento e tentaríamos de novo.

Paulo me inspirava a crescer, a ser alguém melhor. Naquele mesmo ano realizamos o ENEM. No fundo, eu sabia que não pegaria uma nota boa. Sabia que um único ano não seria capaz de suprir todo o tempo que perdi. Mas eu sorri e, ao lado deus pais e meu namorado, torci para que tudo desse certo.

O resultado saiu no ano seguinte. Como esperado, eu não passei. Mas minha tristeza não teve lugar, pois estava alegre demais por Paulo ter conseguido o curso de medicina. Não podia estar mais orgulhosa. Comemoramos com muita bebida, sorrisos e sexo. Por duas semanas. Passamos mal por vários dias, mas não tinha problema. Tínhamos um ao outro. E um vômito desconhecido no vaso.

Meus pais não me pressionaram. Abraçaram-me e disseram que estava tudo bem, que sempre haveria o ano seguinte para tentar. Por um mês os escutei dizer o quanto estavam orgulhosos de mim por tentar. E resolvi fazer de novo.

Estudava sozinha e com Paulo, quando ele estava livre da faculdade. Nunca ouvi uma reclamação sua, arrisco dizer que parecia até mesmo feliz em estar ao meu lado rodeado de vros.

— Você não se importa mesmo? Estou gastando a sua folga com mais estudo — perguntei certa vez, abandonando a lapiseira no meio de uma conta de matemática.

Paulo riu e apoiou a cabeça em sua mão, me olhando intensamente.

— Claro que não, amor. Além do mais, ficarmos assim sempre me lembra de quando nos conhecemos.

Eu acompanhei seu riso e uma fina lágrima escapou dos meus olhos. Eu era a pessoa mais feliz do mundo; tinha um namorado maravilhoso e os melhores pais que podia pedir. Meu único desejo era para que isto durasse para sempre.

Mas não foi atendido.

Realizei a prova no fim do ano e me senti completamente preparada. Preenchi cada bolinha do gabarito com esperança e confiança, duas coisas que as pessoas mais importantes para mim me ensinaram a cada dia. Senti-me invencível, imponente, como se nada fosse capaz de me derrubar.

Mas derrubou.

Naquele mesmo ano, dois dias depois do natal, um grave acidente aconteceu evolvendo um motorista negligente e um ônibus em condições deploráveis. Meus pais e metade dos passageiros morreram na curva que levou o ônibus ao rio precipício abaixo. E, também naquele mesmo ano, poucas horas antes do ano novo,oda a força que construímos juntos,e abandonou. Eu só sabia chorar e ficar trancada no meu quarto. Na minha casa vazia. No meu mundo que, aos poucos, foi igualmente ficando vazio.

Paulo estava ao meu lado, firme. Deixava-me chorar em seus ombros, amarrotar sua camisa perfeitamente passada, deixa-lo exausto quando deveria relaxar, atrapalhar suas provas e comprometer suas notas perfeitas. Paulo reprovou metade das matérias daquele semestre por estar se dedicando demais a uma namorada que perdeu seu chão. E, agora, o pranto era por um motivo a mais.

Passei dois meses pelos cantos, comendo apenas o que Paulo me empurrava pela garganta. Sentia-me culpada. Incapaz. Inútil. Mas não tinha forças para voltar a ser aquela Bianca sorridente, sendo que dois de seus três pilares simplesmente desabaram.

Comecei a parar de chorar quando Paulo estava perto de mim, que era, bem, a maior parte do tempo. Falei que não precisava se preocupar, que o pior já passou. Incentivei-o a voltar a se concentrar em suas provas. Tranquei-me em um mundo escuro, sem cores, dolorosamente solitário e frio. Engaiolara o luto que não superei, com a falsa promessa de que tudo ficaria bem.

Mas não ficou.

Havia conseguido a faculdade que eu queria para o curso que eu almejava. Era para eu estar feliz, afinal, um dos meus sonhos fora realizado. No entanto, nada minimamente alegre passou pelo meu coração. Não estava nem um pouco realizada, mas fingi felicidade para agradar a Paulo, que havia lutado tanto por mim. Se eu acreditasse fielmente, talvez se tornasse realidade.

Comecei a cursar direito poucos meses depois. Não me identifiquei com nenhuma disciplina do primeiro semestre, porém ainda estava cedo demais para decidir se estava ou não gostando.  De nenhuma do segundo também, mas ainda estava cedo. Do terceiro. Do quarto. Do quinto. Do sexto não fiquei para ver. Larguei. Não por escolha, entretanto. Fui orientada a trancar a matrícula por um professor admirado pelo reitor, que exercia o papel de carrasco e sentia gosto por isso. Ele era um juiz renomado, praticamente impossível de ser demitido, e isso lhe dava passe livre para fazer o que bem entendesse.

— Você não leva jeito para isso — ele disse, jogando os cabelos grisalhos para trás com um movimento irritante. — Vai continuar aqui para quê? Essas suas notas ridículas não te levarão a lugar nenhum. Está só perdendo tempo. Vá fazer algo do seu nível. História, quem sabe? Qualquer idiota consegue se formar nesse curso.

Devia ter dito o que estava pensando naquele momento, ter ido a algum lugar daquela faculdade reclamar do que tinha ouvido. Protestar. Gritar. Ter feito qualquer outra coisa diferente do que tinha feito.

— Tem razão — eu disse.

E fui da minha sala ao prédio da secretaria sem esboçar nada no rosto, e com a mente igualmente vazia. Tranquei a minha matrícula. Tranquei o sonho pelo qual lutei por dois anos. Tranquei o único orgulho que levara a Paulo.

Demorei três semanas para informa-lo da minha decisão. E menti sobre o motivo. Falei que apenas não era para mim, que eu deveria tentar algo mais fácil. Algo do meu nível.

— Não se ponha para baixo, Bianca. Você consegue qualquer coisa que quiser. — Foi a sua resposta para a minha covardia. Naquela hora, eu não havia reparado que ele usou o meu nome e não o “amor” de sempre.

Eu concordei com a cabeça.

Mas não com o coração.

No final do ano, com o apoio de Paulo, cada vez mais ocupado, e Larissa, a tal amiga insistente, fui fazer um curso técnico. Escolhi um sobre computadores, algo totalmente diferente do que realmente almejava, que nunca havia sequer me interessado. Talvez fossema forma de me punir por ser um estorvo a Paulo, a quem tanto me fez bem.

Consegui um emprego mais tarde, na loja do senhor Ferreira, um grande admirador de computadores, que fala com orgulho ter acompanhado cada passo da existência deles. Finalmente passaria a pagar meu aluguel e a comida, sem ser mais o peso morto na vida de Paulo.

Dia após dia, a magia que unia Paulo e eu enfraquecia, até desaparecer completamente, sem deixar qualquerstro. Mas ele continuava aqui, ao meu lado, das 22h às 22h25, quando eu chegava em casa, de segunda a sexta. Ele ainda me levava ao cinema em alguns domingos do ano e em todos os meus aniversários me presenteava com um vestido novo, que eu nunca usava. Porque eu sempre odiei vestidos. E não sei ao certo quando ele se esqueceu disso.

— Tudo certo, então? — Sua voz súbita me tiraos devaneios. Piscogumas vezes antes de perceber que estamos portão do meu prédio.

De primeiro momento, estranhei. Paulo sempre lançaais cinco perguntas antes de mandar esta frase, que era a nossa despedida, mas então me lembro que dia é hoje. Sexta-feira. Daniela deveria estar esperando-o na faculdade para um fim de semana animado.

Concordo com a cabeça e empurro Nada de beijos abraços. Não fazíamos isso há dois anos e meio. Eu sei, pois estou contando desde então.

Acenei com a mão até o Gol inza sumisse no fim da rua. Estouespedindo meu namorado e entregando-o a Daniela, sua amante há pelo menos três anos, quando descobri.

Num domingo entediado, tinha cedido aos pedidos de Larissa e a acompanhei ao shopping para comprar blusas novas. Eu nunca saía neste horário. Ajudando-a com algumas sacolas, paramos na praça de alimentação, esfomeadas depois de tanto tempo enfiadas em várias lojas. Foi aí que eu os vi, risonhos, comendo um hambúrguer e dividindo o refrigerante, trocando um beijo apaixonado e lambuçado de molho. Podia jurar ter visto, com meus próprios olhos, a magia que antes nos unia, ali, rodeando aqueles dois.

Lágrimas molharam meus olhos, mas eu não chorei, não derramei nenhuma delas. Engoli qualquer que fosse que estava sentindosorri por ele. Por um Paulo que já não era mais meu amor, nem eu o dele. Por um Paulo que sofreu por anos ao meu lado, por uma garota que parou de caminhar, que se contentou a observar seus avanços de longe. Uma mulher congelada no tempo, sem sonhos e esperança. Alguém que apenas estava atrasando sua vida.

Deixei as sacolas com Larissa e fui embora, soterrando uma espécie de tristeza e me concentrando na felicidade. Ele merecia tudo de bom. Paulo era a pessoa que eu mais desejava que fosse feliz no mundo todo. E se não fosse ao meu lado, tudo bem, eu aceito.

Mas eu não terminei com ele, nem ele comigo. Paramos de trocar aquele selinho sem sentimento, automático, e nenhum de nós sentiu falta. Eu tenho um palpite do porque o término não veio. Paulo estava com pena de mim.

 “Coitadinha da garota que perdeu as pessoas mais importantes da sua vida tão cedo, que desde então nunca mais foi a mesma. Que dó. Se eu a deixar, talvez volte para aquele estado, porque sou tudo o que ela tem”. Quase conseguia ouvir sua voz dizendo isto para mim. Talvez não tão cruel, porém, no fim, era este o significado.

A contragosto, admito que ele está rto. Paulo é tudo o que me resta. E por isso não terminei, não o libertei para seguir com a sua vida. Não cortei esta linha fina e gasta que nos segurava juntos. Estou sendo egoísta, eu sei disso, mas não me importo.

Estou na frente do meu apartamento. De volta ao lar. A fachada descascada e de um branco encardido não é nada acolhedora, faz com que desejamos sair correndo o mais rápido possível ao vê-la – pelo menos é útil para afastar ladrões. Puxo chaves do bolso da calça e a giro fechadura. A porta faz o mesmo barulho da do trabalho. Estou cercada por coisas velhas caindo aos pedaços.

Subo dois lances e estou em frente ao meu quartinho. Minha casa também sofre com o problema de falta de espaço — felizmente não tenho tantos móveis assim. Tudo está comprimido em três cômodos, sendo eles a cozinha, por onde entro, o banheiro e o meu quarto. Como lá fora, tudo também é descascado e encardido, com manchas de infiltração. Foi o melhor que consegui com o meu salário de merda.

Arranco meu casaco e o jogo em cima da mesa da cozinha, assim não esqueceria ele no dia seguinte. Vem fazendo muito frio nos últimos dias, principalmente de manhã e à noite. A última coisa que preciso agora é adoecer.

Coloco água quente na melhor panela que tinha e espero ferver. Retiro o macarrão instantâneo do armário ao lado da geladeira e o jogo ntro da água escaldante. Meu jantar estará pronto em poucos minutos. Enquanto isso, sigo para o meu quarto ligar o meu computador, meu único entretenimento aqui. Internet sempre foi uma das minhas paixões. Tudo bem que perdia para a dança e a música, mas também não conseguiria viver sem ela. Afinal, é ela que me faz ter contato com a música e me ajuda a encontrar vídeos de dança para me inspirar. Então, bem, a internet é o pilar minha vida.

Tenho um maravilhoso plano para esta noite, para esquecer todo o estresse da falha da nova Bianca. Dançar! Abri o YouTube e procurei uma das novas músicas pop nacional, sem um cantor favorito para nomear. Esse gênero de música é tão vibrante que praticamente imploram para serem dançadas. Eu, claro, não vou ser louca de negar. Na Sua Cara estárregando quando volto para olhar o meu jantar.

O macarrão instantâneo está molenga e com uma cara nem um pouco apetitosa. Com certeza deve ter passado do ponto. É incrível como nem para preparar uma refeição pronta eu sirvo — melhor nem comentar o desastre para preparar uma do zero. Cozinha simplesmente não é para mim. Devoro tudo o mais rápido que posso, ansiosa para começar a mexer o corpo. Largo o prato sujo por ali mesmo e corro de volta para o meu quarto. Empurro a cama de solteiro para encostar-se a parede, ganhando mais espaço. Arranco meu jeans, ficando só de calcinha e a blusa que passei o dia todo. Estou confortável e pronta para extravasar!

O volume não pode ficar tão alto quanto gostaria por causa da hora e das paredes ridiculamente finas, mas o importante é dar para dançar. Por sorte, moro no primeiro andar e não tenho que aturar vizinhos chatos reclamando dos passos pesados.

Quando a música começa, eu já não estou mais no meu quarto. Nem na minha cidade. Muito menos no meu país. Já não estava no mundo. Como dizia a música, estou livre, leve e solta — menos a parte “doida para beija na boca”. Não estava. Mesmo. Certo que estava há muito tempo sem, mas não sou uma desesperada! Com certeza não.

Talvez só um pouquinho... Não. Para, Bianca! Só concentra na música!

Mexia o corpo e rebolava, ia até o chão e voltava com a maior facilidade do mundo, sem perder o ritmo. Assim, de olhos fechados, inundada pela música, me sinto perrfeita. Sem problemas. Esquecia-me da porcaria do meu trabalho, da falta de dinheiro todo final do mês, do merda do vizinho de cima que vivia me cercando e da maldita solidão. Dançando, eu não era a velha Bianca, nem a nova, era simplesmente a Bianca, uma mulher de vinte e três anos totalmente satisfeita com a vida – o que está longe de ser verdade.

A voz da Pabllo Vittar começa e arrisco um passo que estou treinando já alguns dias. Fico de lado, dobro levemente os joelhos e começo a mexer lentamente a coluna para frente e para trás, sem perder a sensualidade. Droga. Ainda não está bom. Parece que sou um pato com dor de barriga e com problemas na coluna.

Continuo dançando e dançando, inúmeras músicas e estilos diferentes, até meus músculos arderem e o pulmão pedir por socorro. O momento de parar é quando não consigo mais me manter em pé, o que resume minha situação agora. Arrasto-me até minha cama e sento na beiradinha — não quero sujar meus lençóis limpos de suor — a fim de recuperar um pouco de ar. O sono começa a bater, mas o afasto para longe. Preciso urgentemente de um banho antes de adormecer.

O banheiro é claustrofóbico e arranco minha camiseta e minhas peças íntimas o mais rápido que pude. Antes de perder a coragem, encaro a água que nunca esquenta o suficiente e estremeço com o líquido frio percorrendo meu corpo ardente. Maldito encanamento do século passado. Uma das maiores invenções da humanidade foi água quente no banho e nem ao menos posso aproveitar isso. Preciso de um novo local para morar, porém é complicado achar um que tenha uma dona tão simpática e compreensiva como a Martha, que sempre aceita o pagamento do aluguel atrasado e geralmente faltando vinte reais.

Volto para o meu quarto já de pijama quentinho. Enfio-me debaixo das cobertas para não acabar pegando um resfriado. A bagunça dos meus longos cachos castanhos colorindo o lençol amarelado pelo uso constante. Não me deixo cair no sono ainda. Falta o ponto alto da noite e poderia acontecer a qualquer momento. E, como se pudesse ouvir meus pensamentos, meu celular toca.

Aqui vamos nós.

— Bianca? — A voz feminina inunda meus ouvidos.

— Fala, Larissa.

— Ainda bem que me atendeu da primeira vez, menina! — repreende com a mesma voz que nunca deixa de ser gentil mesmo estando com raiva. — Vai, me conta as novidades. Seguiu o plano?

Suspiro, pronta para repassar meu dia. Conto do início ao fim, o que não dura muito. Basicamente fiquei no trabalho o dia todo e voltei para casa, como todos os dias.

— Poxa, Bianca. É realmente uma pena não conseguir por causa do seu colega de trabalho. — Larissa pensa por alguns segundos. — Mas não desista, tudo bem? Amanhã é outro dia e com certeza dará certo! — Lá está a personalidade otimista atacando. Obviamente não daria certo, mas Larissa ainda acreditava. Ainda bem que ela não conhece o caladão mal-humorado.

Deixo-a continuar com o monólogo sobre o quanto a vida é bonita e nunca devemos desistir por causa de bobeiras enquanto penso no que dançarei amanhã quando chegar do trabalho. Talvez tentar uma coreografia maior e mais animada do que sensual...

— Ouviu? — indaga animada.

— Sim, claro... — Que não. Mas já estou acostumado com essa conversa e provavelmente ela havia falado sobre como seu primo superou as adversidades da vida sem um braço e uma perna e agora é um empresário bem-sucedido que ganha cem mil por ano. Blábláblá.

— Ele é um exemplo a ser seguido! — Realmente era do tal primo. Nenhuma novidade. — Tento todos os dias ao máximo para seguir todos os seus exemplos.

— É, Larissa. Sei que está tentando. Acredito em você.

— E que tal se tentasse com aquele seu outro companheiro de trabalho? Yuri, eu acho. É isso mesmo?

Tais lesa, é? De jeito nenhum. Yuri não é flor que se cheire. — Reviro-me na cama só de lembrar sobre a sua existência. — Se dirigir alguma palavra desnecessária, isto é, que não seja vital para o trabalho, serei demitida na hora. E se isso acontecer, é bem provável que ele invente um monte de coisas a meu respeito para todo mundo da cidade, só para garantir que ninguém me contrate nunca mais. Às vezes penso que ele tem fetiche em ver sofrimento alheio. Te contei da vez em que ele ficou gritando comigo a tarde toda porque pedi para passar a chave inglesa, que estava do lado dele, do que levantar e fazer por mim mesma, não contei?

Larissa suspira exasperada.

— Tem razão. Melhor não arriscar. Nunca tive um bom pressentimento sobre ele mesmo.

Larissa e os seus famosos pressentimentos. Sempre falava sobre eles e assegurava para mim o quanto sempre estavam certos; obviamente eu não acredito em uma baboseira dessas. Ela vivia voltando ao assunto que foram eles que a levaram até mim na faculdade, no dia em que nos conhecemos.

— Deixa este assunto um pouco de lado, Bianca, aconteceu alguma coisa muito boa hoje?

Vinco as sobrancelhas.

— Sim. Não morri na volta para casa.

— Ha, ha, ha. Muito engraçada. Estou falando sério. — Quase pude vê-la revirando os olhos.

Revivo apressadamente os acontecimentos de hoje. Nada de assalto, broncas no trabalho, nem tive que aturar os assédios do vizinho de cima. Nada de ruim, mas também nada de bom.

— Bem... — Penso um pouco mais. — Yuri não foi ao trabalho. Isso é bom, né?

— Égua! Para, Bianca! — ralha ainda com a voz gentil e melosa de sempre. — Estou falando de coisas fora do normal, boas mesmo.

Tudo bem. Yuri faltar não é algo fora do normal.

— Não, nada demais.

— Hum... tudo bem.

— Se vier com o papo de “senti algo bom hoje sobre você” — imito sua voz lenta e açucarada de modo zombeteiro —, vou até a sua casa te dar um soco, tá bem?

— Sei que não faria isso. Você sabe que eu nunca erro, né?

— Não me teste.

— Pode ser que aconteça amanhã, então. Para falar a verdade, fiquei um pouco confusa quanto o dia exato. Parecia hoje, mas também parecia amanhã. Foi estranho e... Intenso. Senti algo grandioso e muito, muito sinistro. Tome cuidado, Bianca. Peça ajuda lá de cima, aos seus pais.

— Tá tudo bem, Larissa. Relaxa. — Ajeito minha cabeça sobre o travesseiro, totalmente despreocupada.

Não estou a fim de perturbar o sono eterno dos meus pais com esses pressentimentos sem nexo de Larissa. Eles finalmente descansam em paz agora que a causa da colisão do ônibus foi descoberta. Há dois anos, o laudo pericial saiu, confirmando o esperado – o motivo fora às peças desgastadas que a empresa optou não substituir para não ter gastos extras.

Balanço a cabeça, afastando os pensamentos ruins. Não preciso de mais uma noite de sono conturbada.

— Bianca? — chama Larissa, baixinho.

Suspiro, imaginando o que viria a seguir.

Eu tô bem, tá? Nada vai acontecer, Larissa. — Aperto o telefone em meus dedos. – Além do mais, você mesma falou que seria algo bom. Por que te afeta tanto assim?

— Eu... Eu não sei. Foi muito estranho. Era maravilhoso e terrível ao mesmo tempo. Não tem como você faltar ao trabalho amanhã?

— Sinto muito, mas gosto de ter o que comer em casa, obrigada.

— Tem razão. Foi uma ideia idiota a minha.

Larissa continuou pensando em novas ideias para me proteger da babaquice mística por qual era fascinada. Recuso todas, claro. Não posso me dar ao luxo de perder o emprego por causa de uma coisa não confirmada e totalmente intuitiva.

Todas as vezes que Larissa vinha com os seus “senti algo bom para você” são coisas pequenas e fúteis. Da última vez a tal coisa boa era que o gatinho que eu havia visto passando fome na rua tinha sido adotado. Obviamente foi uma coisa boa, mas não me afetava diretamente, não a ponto de mudar minha vida como ela falava.

As coisas ruins eu até que fico um pouco alerta — ainda não acredito! —, pois ela acerta uma ou duas vezes. Talvez vinte. Vinte e sete e contando. O que me levou a prestar atenção nas suas previsões catastróficas foi há três anos, quando me ligou desesperada contando que havia sentido uma escuridão assustadora por toda a minha casa. No dia seguinte, minha luz foi cortada.

— Tudo bem. Desisto. Se você não quer me escutar, não posso fazer mais nada! — resmunga, aumentando a voz.

— Faltar ao trabalho amanhã está fora de cogitação, Larissa. Perdeu a cabeça de vez? — lanço o olhar para o meu teto descascado. Seria maravilhoso escapar daquele lugar sufocante, mas não é como se eu tivesse outra maneira de me sustentar.

— De qualquer maneira, tu viste o tempo? — indaga, temerosa.

Engoli em seco.

— Pois eu vi. Até quando vai insistir com essa palhaçada?

Larissa descobriu meu segredo na faculdade, quando ao fim de mais um dia de aula, uma chuva violenta tomou toda a cidade. Não tardou para os trovões darem as caras. Sem saber o que fazer, com pensamentos falhos e fora da realidade, corri para o banheiro e me tranquei em uma das cabines. Enfiei minha cabeça entre as pernas e abafei os soluços elevados que ganhavam da minha força de vontade em detê-los.

Infelizmente, a garota estranha que gostava de me seguir resolveu me procurar para contar seja-lá-o-que sobre o rapaz alto e gostosão – palavras dela –, aluno de Educação Física. A sorte nunca foi uma das minhas companheiras, afinal. Desde então, mesmo eu negando de pé junto, Larissa vive me cercando e dando apoio em dias pavorosos como esta noite.

— Já falei mil vezes que não tem problema em sentir medo, Bianca. Para de tentar ser fortona o tempo todo. Quer passar a noite aqui?

— Nem comece, Larissa — continuo, cortando uma palavra que morre em seus lábios: — Vou desligar. Tchau.

— Você é sempre tão cabeça dura. Liga para mim se acontecer qualquer coisa, tá? Beijos.

            Empurro meu celular para longe e pulo da cama. O cheiro forte de chuva já impregnava meu quarto pelas frestas da janela. Preciso ser rápida, Larissa me atrasou mais que o normal. Procuro pelos meus fones e quando os acho, em cima da mesa da cozinha, volto para de baixo das cobertas. Nenhum barulho ainda. Coloco-os na orelha e aumento o volume da música até que não pudesse conseguir escutar nem os meus pensamentos.

            Seria uma longa madrugada. Com sorte, adormeceria na metade da playlist, apesar de isso nunca ter acontecido. Ainda que meu amor pela música seja colossal, odeio dormir em um ambiente barulhento. Dormir durante a tempestade, então, está fora de cogitação.

Espero que amanhã esteja com o tempo bom.

As três primeiras músicas passam rápido, mal as escuto, estou ocupada em me manter sã e não dar brecha entre uma música e outra para escutar os trovões chicoteando na madrugada silenciosa. Dentre todos os outros dias, este seria mais do que aceitável ser incomodada pelas festas malucas do vizinho de cima. Um som a mais para abafar a algazarra da mãe natureza.

Depois da vigésima quinta música minha cabeça pedia socorro. Uma dor dilacerante me impede de relaxar. Se ao menos pudesse ter lido sobre a previsão do tempo hoje... Que inferno, Bianca!

Tento ignorar a dor que esmaga meu cérebro, sem sucesso. É isso ou a tempestade, tento me convencer.

A octogésima segunda música termina e, com ela, a playlist mais animada do meu celular. Aperto rapidamente para repetir, errando algumas vezes pela tremedeira do meu dedo. O cheiro continua forte demais e eu, morrendo de medo de retirar os fones para verificar se tudo acabou.

Você gostaria de mudar?, minha própria voz interrompe meus pensamentos. Estranho de imediato, contudo não dura por muito tempo. Pensamentos semelhantes sempre saltitam pela minha cabeça em noites melancólicas como esta. Além do mais, sou eu mesmo, não tem porque o espanto.

A música é uma lembrança distante. Não me lembro de pausá-la. Talvez estivesse tão concentrada que meu cérebro esteja simplesmente esquecendo-se da sua existência.

É claro, respondo. Tudo o que mais quero é mudar. Mudar eu mesma, mudar as coisas ao meu redor. Uma mudança completa, que nem eu mesma possa reconhecer.

Agora é a hora da pergunta padrão: “então por que não o faz?”. Já estou preparada para isso. Até meu cérebro gosta de pregar peças e sempre me alfinetar com esta pergunta.

Nós podemos te ajudar.

Sinto, das pernas até o pescoço, todos os meus pelos se arrepiarem. Essa voz não é a minha. De jeito nenhum. Meu corpo endurece pronto para um ataque. No entanto, nada acontece nos próximos minutos. Provavelmente é coisa da minha cabeça amedrontada.

Estou na metade da décima música quando, de repente, a luz do meu quarto apagou. Gelo. Não há nada pior do que ficar sozinha no escuro no meio da chuvarada. A luz deve ter caído. Já, já volta. Acalme-se!

Dois segundos depois, acende. Finalmente...

E apaga.

E acende.

E apaga.

E continua assim. Está alternando rápido demais para ser uma queda de energia qualquer. Talvez seja alguma espécie de problema no disjuntor, sei lá. Não entendo muito disso. Isso significa que terei que levantar e olhar, o que está longe de acontecer.

Acendendo e apagando, acendendo e apagando.

Merda. Vai queimar todos os meus eletrodomésticos, que, bem, se resume a geladeira e computador... Ó, não! Meu bebê está em risco! Preciso levantar daqui e retirar tudo da tomada antes que o pior aconteça.  Mas minhas pernas não se movem.

Vai ser fácil, falo pra mim mesma. Não preciso tirar os fones. Vai ficar tudo bem. A janela está fechada e os clarões nem vão ser visíveis. Preciso só ficar calma...

Arrasto uma das pernas para fora do colchão. Com um esforço exorbitante, consigo empurrar a outra também. Calma, eu consigo. Apoio os cotovelos no colchão e uso a força limitada por causa dos braços trêmulos. Encosto os pés nus na cerâmica congelante e meus pelos se eriçam com o choque da temperatura. Calma, calma. Com os olhos ainda cerrados, obrigo meu corpo a ficar ereto. Dou três passos a cegas, adiando o sofrimento. Sou forçada a abri-los quando bato o dedinho violentamente no pé da cama. Não reprimo um palavrão.

Cambaleio até a tomada do meu computador, lutando bravamente contra as pálpebras que anseiam em ser fechadas, sequer pisquei. Engulo em seco quando encaro a próxima tarefa até a cozinha. A janela de lá não fecha completamente, de modo que uma fresta grande demais sempre deixa a vista o imponente céu noturno, coisa que costumo admirar em noites normais. Agora uso todas as minhas forças para amaldiçoar aquela maldita janela.

Aperto os dedos contra a palma da mão e imagino coisas boas. Hmm... Pizza de calabresa, com a borda recheada de cheddar e um guaraná bem gelado para acompanhar. Um barulho alto se sobressai à música. Que não seja um trovão, que não seja um trovão. Para sobremesa, sorvete de flocos com cobertura de chocolate.

Minhas mãos batem em alguma coisa. Em uma breve tateada reconheço a mesa. Estou quase lá.

O bolo de laranja da padaria da esquina... Hmm... Uma manteiga fresquinha para encorpá-lo. Suco de uva com grandes cubos de gelo. Mais sorvete de flocos.

Minha mão encontra a tomada sem demorada, acostumada com a posição. Suspiro aliviada. Agora é só voltar correndo para a segurança das minhas cobertas e torcer pela tempestade passar logo.

Mas, quando viro para fazer todo o caminho de volta, um barulho explosivo preenche o ambiente. Não é um trovão, nem estava perto de ser. Arregalo meus olhos por reflexo. A minha frente, a pequena janela que tinha a tarefa de arejar toda a casa está escancarada e, ali, uma figura deslumbrante atraí toda a minha atenção.

Uma mulher corpulenta, de pele tão lisa e brilhante como chocolate, ostentando cachos volumosos de um intenso vermelho, me fita com profundos olhos escuros. A vestimenta que cobre pouco o corpo é tão magnífica quanto à mulher. O top, que parecia feito de um tecido fino, cobre delicadamente os seios fartos. A alça de um dourado brilhante com detalhes de linhas elaboradas dá a volta em seu pescoço graciosamente. Nos braços, luvas negras que por pouco não iam até os ombros; na boca de cada uma, mais daqueles detalhes dourados. A barriga inteira está exposta. A saia é da mesma cor da outra vestimenta, negra como o céu noturno. Não, talvez até mais. A saia é cheia e curta na frente, próxima aos joelhos, mantendo uma diferença nada singela com a parte traseira, que certamente se arrasta pelo chão. Nos pés calça um salto quadrado, bicudo na frente, com uma tiara grossa que prende nos tornozelos e uma pedrinha do mesmo brilho dourado do top em cada um dos sapatos deixa tudo harmonioso.

Percorro novamente todo seu corpo esplendoroso até voltar para sua face cansada e totalmente concentrada em meus movimentos lentos. Os lábios proeminentes estão cobertos por um batom preto que os contorna perfeitamente, provavelmente deixando-os mais cheios do que realmente são. Os olhos, rodeados por traços igualmente pretos, fez de sua aparência ainda mais gótica — se é que é possível. Os fios de um vermelho vivo são segurados por algo que só agora havia reparado, apesar da existência faustuosa. Um chapéu, igualmente negro, alto e pontudo. Suas abas largas causam sombras na face dura da mulher. No começo do cone monumental, no canto direito, um laço dourado brilhante, cujas pontas escorriam pelo cabelo de fogo; e, bem no seu centro, de forma chamativa, havia um... Um...

Crânio.

Estou prestes a gritar, chego até a abrir a boca, mas outra coisa terrível acontece. Atrás da escultura em forma de mulher, um trovão parte o céu, e tudo se torna ainda mais assustador. Meus pés enraízam no chão frio. Não sou capaz de mover um músculo.

A mulher se move, caminhando obstinadamente em minha direção, exalando glória e autoridade em cada passo. Eu estou congelada do mesmo jeito. Estamos a cinco palmos de distância quando a princesa dos contos de fadas interrompe a aproximação. Seus olhos escuros parecem suavizar um bocado, porém o cansaço ainda está estampado por toda sua face.

— Como vai, Losire? — Uma voz doce, carregada de compreensão e gentileza, invade meus ouvidos. Estremeço. Não consigo responder.

O silêncio não dura por muito tempo. Mais trovões estavam ribombam pelo céu, meus olhos involuntariamente seguem cada um deles. Não sei de que sinto mais medo, se da mulher ou da tempestade, e estou prestes a ter um ataque cardíaco. Sentia o suor frio escorre pela minha testa. O coração parece pronto para pular pela boca.

— Losire Bianca, está me ouvindo?

Meu impulso é perguntar como sabe meu nome, mas duvido que criminosos revelem tudo assim, facilmente. Não são como vilões da ficção que ficam meia hora explicando todo o plano maléfico para o herói. Eu acho.

A demora do ataque corroía o resto de mim que estava são. Ah, pelo amor de Deus, se for para acabar logo comigo faça isso rápido. Se não for por suas mãos, acabarei morrendo pela vista privilegiada que tinha da tempestade.

— Lamento pela invasão nada educada. Peço que me perdoe, Losire. — O pesar substitui parte da sua dureza. Quase acredito que a assaltante está mesmo arrependida por, bem, fazer o que assaltantes fazem. — Mas peço que escute meus dizeres. — Sua face volta à seriedade, desta vez muito mais dura. — Nós precisamos da sua força. Todo um país precisa que sua benção recaia sobre nossa terra, Bianca. Eu imploro — a mulher se move, finalmente me tirando do transe dos trovões. Com movimentos graciosos e ligeiros, em poucos segundos seus joelhos estão dobrados, tocando a cerâmica gelada. Suas mãos firmes e quentes tomam as minhas, frias e trêmulas. — Nos ajude a salvar milhões de vida, Losire. Precisamos da sua benevolência.

Tudo ao meu redor gira. As palavras rodopia pelo meu cérebro, que não consegue processá-las sem que eu parecesse como um dos clientes do Yuri — o que pode ser um fato. Será que, na verdade, antes de sair da loja, Yuri deu um pulinho lá e me convenceu a misturar todos os tipos de drogas possíveis?

A mulher pronuncia mais alguma coisa, mas não consigo compreender. Já estou fora de órbita. Balanço a cabeça a fim de acordar meu cérebro. Com a vista embaçada, vejo seu corpo voltar a ficar ereto. O sorriso em seu rosto dizima todas as emoções negativas que antes cobria sua face. Seus olhos de obsidiana estão marejados. Não entendo o que a fez mudar tão subitamente, e também estou exausta e chocada demais para deixar palavras escaparem pela minha boca.

Quando está a centímetros de distância de mim, sua face volta a carregar seriedade.

— Faremos então um contrato, Losire Bianca. Eis o conteúdo: até o príncipe recuperar o que é seu de direito, você não poderá voltar para sua terra natal. Sua tarefa será escolta-lo em sua jornada e protege-lo daqueles que atentem contra a vida de Vossa Alteza. Você herdará o cabelo de sangue e a força que rege nossa raça. Ninguém poderá questionar sua honra, caso o fizer, a irmã será castigada a despossar a herança vermelha, E banida dentre as suas, sendo condenada a viver como humana pelo resto de seus dias.

O quê!?!

Antes que eu tenha tempo para raciocinar sobre tamanho absurdo, a mulher dá mais um passo, me assustando.

Estamos a menos de um palmo de distância, consigo sentir sua pele roçar a minha. É agora que vem o golpe de misericórdia, alerto meu cérebro zonzo. Uso o restante da minha força para fechar as pálpebras com força, tendo como companheiras as luzinhas saltitantes que deixam a escuridão menos assustadora.

E o golpe vem.

Mas é um beijo.

Entro em colapso logo em seguida.


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