O Senador Rebelde escrita por André Tornado


Capítulo 6
Identidade roubada




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Se o androide fosse alguém que usasse roupas para se cobrir, ele teria arrepanhado a gola e puxado o infeliz por cima do tampo da mesa e exigido explicações. Mas era a maldita de uma máquina, um sólido geométrico compacto com arestas, sem nenhuma alavanca que ele pudesse agarrar para fazer o mesmo gesto dramático – puxá-lo por cima do tampo da mesa e exigir explicações.

Jotassete tinha aquela característica irritante dos androides, da passividade e da imparcialidade. Nem fizera soar um qualquer apito de indignação ao ter sido borrifado pelo licor de gojyriana. Pequenas gotículas espalhavam-se pela sua carcaça metálica polida e negra, naquela secção que funcionaria como um rosto, onde se situavam os processadores mais sensíveis. Nada fora afetado pela súbita aspersão alcoólica, porém. Não houvera faíscas devidas pela fusão de algum circuito, era como se nada tivesse acontecido.

Bateu com o copo na mesa, mais licor pelos ares, molhou a mão.

— O que raio se está a passar aqui, androide?! Aquele homem não é…

— Jotassete, por favor, senador. Disse-te que gostava de ser tratado por Jotassete. Sou o J7-21. Ao seu dispor.

— Que se dane, androide! Explica-te. – E antes de escutar o que exigia saber, adiantou: – Aquele homem é um impostor!

— Exatamente, senador.

— Não sabia que havia um impostor a fazer passar-se pela minha pessoa neste lugar situado nos confins da galáxia de que nunca ouvi falar. Em Ferth existe um senador Heskey, de Corulag?

— Não existia. Passou a existir assim que chegaste a Ferth, senador.

Ele cerrou os dentes e arregalou os olhos. Claro que essa intimidação não resultou, porque o seu interlocutor era um androide. Seria sempre prestável, porque lhe era exigido ser assim devido à sua programação. Jotassete contou:

— A personagem que acabou de entrar na cantina “Fogo Rápido” é um milium. Habitam Ferth em cavernas subterrâneas e são conhecidos por serem vigaristas profissionais. Aproveitam-se das fraquezas dos outros e tentam ganhar vantagem com a ingenuidade generalizada. A tua presença já foi notada em Ferth, senador, pelo Império. Espiões imperiais descobriram que aportou no espaçoporto leste um cargueiro suspeito e começaram a procurar por ti.

— Eu sou um senador imperial. Os espiões imperiais nada terão para reportar sobre mim… pois estamos do mesmo lado! – Recordou que dissera praticamente a mesma coisa a Ambarine. Olhou de lado para o androide. Isso seria obra da mulher de Kodadde? Ou daquela copiloto que embirrava com ele chamada Lenna? Se era para o assustar ou lhe dar uma lição, pareceu-lhe rebuscado demais.

O impostor distribuía garrafas e copos pessoalmente, como se conhecesse cada um daqueles que se chegavam próximo para aproveitar a sua generosidade. Até um dos humanoides da banda estava entre a multidão. Afinal, a rebeldia era postiça…

— O milium avançou e roubou a tua identidade do banco de dados do espaçoporto – prosseguiu o androide. – Ele vai criar confusão com os espiões imperiais e, neste momento, está a gastar créditos em teu nome.

— Não fui o único a chegar a Ferth. Por que motivo esse milium tomou a minha identidade e não a de qualquer outro dos meus acompanhantes?

— O teu nome tem outro peso e os milium são profissionais em escrutinar vantagens nas personalidades daqueles que pretendem roubar.

— Estou a ser roubado…

— A todos os níveis, senador – afirmou o androide, sem, contudo, alterar a modulação do seu processador de voz. – A reputação, o teu dinheiro, a tua segurança e o teu bem-estar.

— Ele está a pagar as bebidas com o meu dinheiro?! Como pode fazer isso, se os cartões estão comigo?

— Basta o teu nome e o teu título. Na cantina acreditam na palavra de um senador imperial.

— Em Ferth já sabem que o Senado Imperial foi dissolvido? Perdi a capacidade de impressionar quem quer que seja à conta do meu estatuto.

— As notícias viajam devagar até Ferth, ainda que estejamos num dos mundos do núcleo. Senador.

Ele teve vontade de se rir. Aquela situação era completamente irreal! Ainda mais irreal que o facto de ter sido raptado. Seria possível que ele só estava a gerar problemas, quando o que ele pretendia era simplesmente regressar a casa?

Abanou a cabeça e emborcou o segundo copo de licor de gojyriana. Bebeu-o de seguida. Sentiu-o a cair pesado e ardente no estômago. A cabeça ficou mais leve. Acometeu-lhe uma pequena euforia, um estado ligeiro de embriaguez. Sorriu abertamente, de uma forma desafiadora e trocista.

— E por que motivo achas que preciso de proteção daquele intrujão? Ele não me vai enganar, continuo a saber que eu sou o verdadeiro senador Heskey de Corulag. A não ser que ele use de algum truque de hipnotismo e me convença do contrário, o que seria trágico. De qualquer modo, no fim do dia e no fim do feitiço, serei sempre o senador Heskey de Corulag e ele não passará de um triste milium com uma vida chata nos subterrâneos deste planeta patético. Não tenho receio da confusão que ele possa criar com os espiões imperiais. Eu estou do lado do Império! Mais cedo ou mais tarde, hipnotizado ou não, irei entender-me com o Império e a possível confusão ficará rapidamente resolvida.

— Os guarda-costas, senador. Eles estão na cantina para te localizar e neutralizar.

O sorriso dele apagou-se.

— O que queres dizer… neutralizar?

— Eliminar fisicamente, senador.

Os dois soldados, notou ele, vigiavam o movimento da cantina com um olhar rapace que cobria minuciosamente cada canto, detalhe, cliente, gesto, espaço. Analisavam tudo com a atitude de quem está habituado à vigilância e à deteção de anomalias num lugar aparentemente insuspeito.

— Porquê?

— Os milium, senador, apropriam-se da identidade das suas vítimas, mas a seguir não acontece o reverso da situação. Quando um milium se torna alguém, é para sempre. Até roubarem outra identidade, permanecem nessa pele e vivem intensamente essa personagem. É o que os motiva a viver, senador. Um milium só sobrevive se for outra criatura senciente ou não. E para que mantenham a farsa precisam mesmo de ser essa segunda identidade, nunca podem desistir ou serem desmascarados. Por isso, o passo seguinte é eliminar fisicamente o original, para que o impostor se torne ainda mais genuíno.

— Isso é um absurdo!

Não lhe adiantava nada a indignação. O estrago estava feito e ele teria de se apressar antes de comprovar essa estranha maneira de existir de uma raça galáctica que lhe era desconhecida, até então. Observou melhor o androide e ficou desanimado. Não era uma máquina equipada com armamento, daquelas que eram usadas em missões paramilitares. Nem sequer lhe parecia um astromecânico ou mesmo um operador das minas, que possuíam apêndices aguçados e outras ferramentas que seriam úteis em caso de confronto.

— E como vais proteger-me? – perguntou.

— Já fiz o aviso, senador.

Heskey irritou-se.

— E é assim que me vais ajudar? Avisando-me?!!

— Pelo menos já estás em alerta.

— Oh, muito obrigado!

— O tempo está a acabar, senador.

Ele ia para se levantar da mesa, mas depois pensou que dessa forma ficaria irremediavelmente exposto. Sentiu-se encurralado. Por instinto, encolheu-se e ficou a observar atentamente os dois soldados que varriam a parte mais afastada da sala. Depois de verificarem que ele não estava ali, iriam passar àquele setor e ele seria descoberto. Haveria uma troca de tiros, barafunda. Podia haver feridos, mas o par de assassinos só descansaria quando ele fosse eliminado. E provavelmente teriam boa pontaria, pelo que os danos colaterais seriam mínimos. Ele era o alvo, ele seria prontamente abatido – e de forma eficiente.

Engoliu a saliva que tinha na boca.

— Jotassete, tens de criar uma diversão – ordenou ao androide.

— E como poderei fazer isso, senador?

— Que tipo de androide és tu?

— Sou um banco de dados, senador.

— Um banco de dados… e o que faz um banco de dados numa cantina?

— Creio que isso tivesse ficado bem explicado, senador. Estou aqui para te proteger.

— Proteger-me com um simples aviso. Pois… Escuta-me, Jotassete. Se me queres efetivamente proteger vais ter de te esforçar. Um aviso não basta.

— Estou ao teu serviço, senador.

— Ótimo! – Heskey debruçou-se sobre a mesa e sussurrou o plano que tinha inventado, de repente: – Preciso que cries uma diversão. Não me perguntes como o deves fazer, não conheço como funciona uma base de dados portátil.

— Não sou uma base de dados portátil. – E quando disse isto, as luzes do androide brilharam mais intensas. – Sou um dispositivo sofisticado de armazenamento e posso interagir com os utilizadores, ajudando-os a navegar nos meus arquivos, que totalizam mais de dez milhões de entradas, com os respetivos índices.

Heskey abanou uma mão.

— Não me interessa, Jotassete, o quão sofisticado possas ser. Usa os teus circuitos mais imaginativos e faz o que te peço. Eu deslizo para debaixo da mesa e tentarei, engatinhando, aproximar-me da porta e sair daqui. Na rua, continuarei a minha fuga. É importante que essa diversão cause um pequeno caos que confunda a escolta do milium. Estás a compreender-me?

O androide, que fora construído para obedecer a qualquer solicitação, respondeu, lacónico:

— Sim, senador.

— Muito bem. Preparado? Eu estou pronto…

O androide afastou-se da mesa.

Um dos soldados voltava a cabeça para aquela direção. Heskey encolheu-se mais, elevando os ombros. Segurou no tampo da mesa com ambas as mãos, empurrando o assento para trás para ganhar espaço. Jotassete, de repente, fez soar um estalo que ressoou sobre o burburinho do salão. Os que estavam mais próximo sobressaltaram-se e focaram a sua atenção no estranho ruído. De seguida, ainda mais inesperadamente, uma coluna de fumo negro saiu do topo do androide e este imobilizou-se. Por momentos, ele hesitou. Teria a máquina provocado uma avaria fatal que o tivesse desativado para sempre, só para atender ao seu pedido e para cumprir esse estranho desígnio de o proteger? Depois achou que não se importava com a sorte do autómato que ele tinha acabado de conhecer e que era passível de desprezo. No fim de contas, quem é que se apegava a uma base de dados? Jotassete não ficaria aborrecido se ele lhe fosse indiferente. 

E com todos aqueles pensamentos perdeu alguns segundos-padrão. Ao mergulhar sob a mesa ainda conseguiu perceber que o soldado que tinha girado o pescoço topou aquele movimento. Cumprindo a sua parte do plano, andando de quatro pelo chão nojento da cantina, apertava os dentes e censurava-se mentalmente por ter sido descuidado, precisamente na sua parte do plano.

Só via pernas e patas e as vestes das túnicas que se arrastavam pelo chão. Mas sabia que se girasse o corpo para a direita, um pouco mais de noventa graus, e estaria em face da saída que ficaria para além dos obstáculos.

Então, ele girou o corpo e começou a engatinhar mais rapidamente, quando um estrondo ecoou nas suas costas que o fez estacar e olhar por cima do ombro. O soldado que se tinha apercebido da sua fuga acabava de pontapear uma mesa que dera uma pirueta no ar e partira-se quando caíra. Estava a desimpedir o caminho para chegar até ele.

Um ligeiro pânico arrefeceu-lhe o sangue e ele deixou de sentir as mãos e os joelhos. Parou ao perceber que o soldado lhe apontava o cano da sua carabina laser às costas, ao crânio a qualquer ponto do seu corpo que se transformara num alvo. Iria disparar e perguntar depois.

A sua reação foi rebolar para o lado e um raio queimou um buraco no soalho.

— Caramba!!

O tiro atiçou ainda mais os frequentadores da cantina que começaram uma debandada aos gritos e aos urros. O falso senador Heskey estava siderado no balcão onde se aviavam as bebidas que ele estava a pagar, fazendo parte da farsa, iludindo os demais de que estava verdadeiramente espantado com o que acontecia – uma grande mentira, já que ele era o mandante daquela tentativa torpe de assassinato.

Heskey percebeu que teria de se levantar ou acabaria espezinhado pelas gentes que começavam a precipitar-se para a saída num tropel furioso. Rebolou uma segunda vez e foi outro movimento providencial, pois escapou-se de um segundo tiro.

— Este tipo não está a brincar…

Rastejou e foi ajudado pela sorte ao receber um encosto de alguém que tinha caído perto dele. Com esse empurrão agarrou-se a uma coluna metálica e com a ajuda das mãos, do medo e da urgência, impulsionou o corpo e pôs-se de pé, encostado à parede para não perder o seu agressor de vista. Os berros enchiam o ambiente tépido do salão, havia quedas, injúrias, uma rixa acontecia para o seu lado esquerdo.

Nisto, o androide passou diante das suas pernas.

— Depressa, senador. Segue-me.

Jotassete rolava apressado, sem qualquer indício de que tinha realmente sofrido um curto-circuito fatal. Ele reparou que se afastava da porta.

— A saída não fica para esse lado.

— Conheço uma saída de emergência.

— Se fores por aí, vamos cruzar-nos com aqueles idiotas que estão aos murros uns com os outros.

— Sabes lutar com os punhos, senador?

— Há muito tempo que não preciso de me defender assim.

Teve mesmo de ir atrás do androide, porque este afastava-se e estava com a atitude de que não iria esperar com ele, ou prosseguir com explicações adicionais para convencê-lo.

Ele estava mais do que convencido de que teria de seguir o androide. Colocou um braço sobre a cabeça para se proteger. Um gesto inútil, pois não o iria defender dos raios laser da carabina que o soldado voltava a apontar à sua pessoa, mas o instinto falava mais alto. Um terceiro tiro queimou sobre os seus cabelos.

— Depressa, Jotassete!

— Por aqui, senador – disse o autómato sem alterar a modulação do seu processador de voz.

Ele esquivou-se de um soco e tentou esmurrar uma criatura que rugia cega de fúria, com os braços levantados, mas não foi necessário já que esta foi rastejada por um terceiro tipo e caiu de forma espalhafatosa. O androide rolou até uma passagem e virou à esquerda, abruptamente. Enfiou um apêndice num painel lateral e uma porta deslizou para cima, revelando uma rua pouco concorrida.

Quando Heskey se viu no exterior da cantina, longe do alcance do soldado, sorriu. O seu sorriso foi de pronto apagado quando escutou Jotassete ordenar:

— Corre, senador!


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
É preciso correr.



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