O Senador Rebelde escrita por André Tornado


Capítulo 5
Uma bebida e uma canção




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/777500/chapter/5

Ferth era um mundo pequeno que por pouco não escapara à classificação de lua, tal a exiguidade do seu território. Era também um mundo frio, permanentemente coberto por uma camada de nuvens esverdeadas que brilhavam por causa das tempestades elétricas que ocorriam nas altas camadas da atmosfera. Então, Heskey percebeu, observando os céus agitados, por que motivo tivera de se segurar bem durante a descida, por que razão a nave sacolejara loucamente e parecia que iria despenhar-se na pista de aterragem. Era um desafio alcançar a superfície de Ferth. E agradeceu secretamente por os dresselianos serem bons pilotos ou não iria acontecer a sua reunião com a Aliança.

Enrolou a sua capa no corpo para ficar mais aquecido e combater o vento que soprava em rajadas geladas. Os outros estavam silenciosos e depois de Ambarine inserir os códigos de acesso, puderam abandonar a pista de aterragem situada numa plataforma elevada, no exterior.

O espaçoporto apresentava-se deplorável. Paredes descascadas, condutas maltratadas, o chão imundo com montículos de lixo nos cantos escuros, fios elétricos pendurados de painéis abertos. Aquele lugar não conhecia o significado de manutenção havia muito tempo e a inclemência do clima frio fazia-se sentir nos corredores – sem aquecimento, portanto. Heskey conformou-se com o facto de estar na companhia de uma pirata espacial, ela não frequentaria planetas sofisticados ou entrepostos comerciais oficiais. Só deveria estar habituada a cenários miseráveis como aquele. Como o seu cargueiro. Como a sua tripulação. Ele mordeu a língua para parar com as censuras murmuradas e cingiu a capa a si, para manter-se quente.

Um androide protocolar veio recebê-los à saída. Anotou a identificação de Ambarine e aceitou a explicação sumária de que ela ficava responsável por todos eles e que o código seria partilhado pelos seis. Ele revirou os olhos com a falta de cuidado do androide – nunca um código único seria aceite em qualquer lugar civilizado da galáxia! Era uma falha de segurança muito grave.

Certo, Ferth não era civilizado. Ele percebeu isso imediatamente quando apanharam um transportador decadente, com um cheiro pestilento no interior. Puxou uma das pontas da capa para cobrir o nariz e a boca, evitando respirar aqueles eflúvios nauseabundos que lhe ofendiam as fossas nasais. Quando levantou os olhos para apreciar qualquer espécie de paisagem que as janelas cobertas de pó poderiam oferecer, a viagem terminou. Um trajeto tão curto que ele ofegou de indignação. Recompôs-se. Fora ele que insistira em descer até ao planeta para uma bebida. Se se pusesse com censuras, esquisitices e apontamentos, regressaria ao cargueiro e à arrecadação que, pelos vistos, era classificada como o seu alojamento a bordo. E ficaria ainda mais suscetível, zangado e irascível. Não seria um bom estado para ser apresentado a um Alto Comando da Aliança.

A bebida era a melhor das ideias desde que fora raptado, pensou, agarrando-se a esse pedaço de pensamento com as duas mãos. Precisava de recuperar o seu discernimento para poder negociar em condições com a pessoa que contratara o bando de Ambarine. Aparecer como um desgraçado desorientado seria péssimo. Cerrou a boca numa linha dura e adotou a costumeira expressão quando se preparava para defender na assembleia do Senado Imperial um qualquer projeto de lei inútil.

Ao descer do transporte, as surpresas desagradáveis continuaram. As ruas que pisava eram desencorajadoras. O bairro era sujo, sombrio, fétido. Os edifícios decadentes eram ainda mais velhos que o espaçoporto, num ordenamento caótico de coisa erguida sobre escombros de um qualquer conflito local.

Observando melhor, ele notou que os pisos superiores serviam de hospedaria. Havia uma profusão de chaminés metálicas e esguias por onde se escapava fumo imparável que criava um cobertor denso acima do topo das casas, que se confundia com as próprias nuvens em revolução. As janelas eram muitas, não havia parede sem uma janela. Abertas, fechadas, com gente a espreitar, criaturas humanoides e outras cujos vultos adivinhavam apêndices e calosidades que desfeavam qualquer harmonia. Esses observadores calados espiolhavam com minúcia os passos de quem andava na rua, com especial foco nos forasteiros. Ele sentiu esses olhares obscuros sobre si como algo peganhento. Agradeceu estar a vestir a capa que lhe servia como barreira.

Os pisos junto ao solo eram lojas – todos eles. Grandes, pequenas, simples corredores, salões imensos, bem arranjadas, desarrumadas, anunciadas em coloridos e faiscantes letreiros luminosos sobre as portas que se abriam de par em par, ou estavam fechadas para proteger o negócio que se queria mais discreto. Lojas para todos os gostos e que vendiam todo o tipo de produtos e de serviços. Peças sobressalentes, remendos de chaparia, reatores termonucleares em miniatura e capacitadores improvisados, tecidos, calçado e perfumes para senhoras vaidosas, comida embalada e comida servida na hora em balcões apinhados, bebidas e conforto momentâneo, fardas imperiais contrafeitas e senhas clandestinas, equipamento de telecomunicações, botões de controlo para androides, combustível, óleo e outros fluidos, motores desmontados e inteiros, livros eletrónicos e brinquedos, sorte e azar ao jogo, boletins com notícias falsas e verdadeiras, pequenas máquinas que faziam trabalhos domésticos, armas, granadas, explosivos. Heskey ficou impressionado com a imaginação dos comerciantes, com a variedade de ofícios e de oferta, com o descaramento dos anunciantes, com a ilegalidade que permeava toda aquela vasta e interminável zona comercial. Quis ver onde acabava a rua, mas parecia que as lojas não tinham fim, multiplicando-se num número impossível.

Pararam no meio da rua, junto a um aglomerado de gente que esperava a sua vez para fazer uma aposta ridícula que envolvia uma roda, dardos e prémios em fichas que podiam ser convertidas em comida quente. Ambarine entregou-lhe um intercomunicador.

— Daqui a duas horas-padrão, encontro no espaçoporto, junto ao cargueiro. Não te quero comigo quando formos negociar o combustível. O teu rosto poderá ser conhecido, senador. Existem espiões imperiais em todo o lado.

Ele fungou, em desagrado. Olhou rapidamente para o pequeno aparelho tubular que cabia na sua mão. Fechou o punho e disse para a mulher:

— E depois que eu seja conhecido pelos espiões imperiais? Fui um senador. Trabalhei para o Império.

Quis acrescentar que a sua iminente reunião com a Aliança não fazia dele um rebelde, mas achou melhor não mencionar o facto naquele momento, ainda que estivessem dissimulados numa multidão de anónimos desconhecidos. Fora para esse fim que ela escolhera parar ali, entre aqueles patéticos apostadores que jogavam para ter uma refeição quente.

— Não trabalhas mais. E estás na nossa companhia.

— Oh, percebo… mas eu não estou convosco de livre vontade. Posso contar o que aconteceu e creio que não serei punido por isso, minha cara. Pelo contrário.

— Não precisas de me lembrar isso, a toda a hora! – rosnou ela. Acalmou-se no instante seguinte e acrescentou: – Não querias ir beber alguma coisa? Estou a dar-te essa oportunidade.

— Muito obrigado. – Emendou, carregando na ironia: – Não te preocupes, querida. Eu não te vou estragar os negócios em Ferth e continuarei a não beliscar o acordo que fizeste com os teus amigos, que não pertencem ao Império. Já percebi que precisas muito do dinheiro que vais ganhar comigo. E eu preciso da minha liberdade de volta, que me vai permitir tomar um banho em condições. Quero que esta nossa parceria termine tão depressa quanto possível e sei que esse é também o teu desejo.

— Adoro perceber que estamos sintonizados! – Comunicou, dando um toque em Lenna para retomarem a marcha: – O gamorreano fica contigo.

Ele rodou sobre os calcanhares, traçou a capa e disse alto para que se escutasse naquela algazarra, pondo-se a caminho:

— Nem pensar! Vou sozinho! Já tenho o intercomunicador e não me irei perder.

Joyce, o nikto, disse:

— Chefe, queres que o detenha?

— Não é necessário – respondeu a voz cansada dela. – Ele que vá sozinho. Com o intercomunicador poderá chamar por mim. Só está programado para a minha frequência e conseguiremos encontrá-lo. Para mais, já sabe que tem duas horas-padrão e não se vai atrasar.

— Ele é intratável – queixou-se a copiloto.

— Deixa-o ir beber, pode ser que se torne mais tolerável… gosto tanto de viajar com ele como tu…

— Depois de beber?

— Pode ser que durma!

E após um grunhido aprovador do gamorreano, ele não conseguiu ouvir mais nada. Que fossem todos arder na lava de Sullust! Estava mais do que farto daquela aventura, daquela companhia… daquele contratempo! Estugou o passo para se afastar mais deles, mas percebeu rapidamente que teria de ir mais devagar, pois desconhecia onde estava e teria de analisar cuidadosamente os letreiros para descobrir uma cantina decente onde saciar a sua sede.

Todas as lojas lhe pareciam indecentes, contudo. Ele estava habituado à sofisticação de Coruscant e dos mundos do núcleo. A lugares limpos, ordenados, higiénicos. A sua rebeldia, que nada se ligava à rebelião contra o Império, fora sempre muito controlada e dentro de certos padrões de qualidade que ele nunca abdicou. Podia ter sido um jovem zangado com o mundo, quando os problemas da galáxia estavam longe de o perturbar, quando só queria afirmar-se pela contradição de tudo o que o rodeava, mas não ia além de certos limites que o seu estatuto exigia. Por isso, conseguira sobreviver à loucura desses anos e regressar inteiro, de corpo e de espírito, sem cicatrizes constrangedoras, à casa paterna querendo, efetivamente, fazer alguma coisa que lhe ocupasse os dias que se tornavam longos depois de fazer os quarenta.

Parou junto de uma porta larga e baixa, equipada com uma abertura estreita junto à travessa por onde passavam sombras. Leu o nome do estabelecimento, “Fogo Rápido” a piscar em letras vermelhas intensas, junto a uma espécie de onda quente a derramar-se de um copo de vidro e sorriu. Aquela cantina prometia bebidas fortes como chamas que incendiariam quem as bebesse e ele gostou da proposta. Bateu com os nós dos dedos na porta metálica e logo surgiram três olhos na abertura. Ele solicitou acesso e sem lhe pedirem mais nada – identificação, se tinha créditos (por acaso tinha ainda consigo um cartão recheado de dinheiro), uma qualquer senha secreta – abriram-lhe a porta e ele entrou.

A cantina enchia-se de fumo pesado e de odores carregados de diversos tipos de suor. Ele arrependeu-se por se ter deixado influenciar pela propaganda do reclamo luminoso que lhe prometia uma bebida forte de efeito rápido. Circunvagando o olhar apercebeu-se de que a sala estava apinhada de humanoides, alienígenas e androides. Crispou o cenho. Nunca gostara de locais onde serviam androides. Havia sempre alguma máquina que tinha pertencido a uma força policial e no fim da festa havia detenções, identificações e zaragatas que terminavam, invariavelmente, ou com o androide espatifado, ou com a criatura humilhada.

Sacudiu os ombros, disposto a demorar-se pouco tempo ali. Não precisava de ser notado por ninguém, logo, não tinha necessidade de correr o risco de ser reconhecido, identificado, preso ou insultado. Era beber e sair. Duas horas-padrão naquela espelunca iriam passar depressa e ele, em breve, estaria de volta ao seu primeiro pesadelo, o cargueiro de Ambarine.

Avançou até ao balcão flutuante, uma pequena modernidade tecnológica que destoava naquela cantina velha e sombria, que tinha o soalho tão sujo que a porcaria se lhe pegava à sola das botas à medida que caminhava. Desviou-se de alguns ébrios e de um androide protocolar que palrava sozinho, devia ter o circuito da linguagem fundido e debitava palavras gaguejadas em diversos idiomas.

Uma vez ao balcão pediu whisky corelliano. A mulher corcunda que o atendeu riu-se com uma boca desdentada, mas ele não fez nenhuma careta ou mostrou o seu desagrado. Comportava-se como se fosse um cliente habitual daquele tipo de antro, não queria destacar-se e ser expulso. Ou ser identificado por algum espião imperial. Tinha trabalhado para Palpatine, naquele momento dispensava que o recordassem desse facto – pois viajava com piratas espaciais e desconfiava que a sua reputação não o iria salvar em Ferth.

A risada da mulher foi justificada quando ela, com uma voz enrouquecida, o informou de que não se serviam ali essas bebidas finas.

— O que me propões, querida?

A palavra “querida” pesou-lhe na língua, porque aquela mulher estava longe de ser adorável. Ela colocou-lhe à frente um copo grande com uma bebida azulada e borbulhante. Chegou-lhe um isqueiro esguio e incendiou a superfície. Uma pequena chama bruxuleou quente e viva sobre o líquido. Então ele compreendeu a razão do nome da casa – as bebidas eram todas servidas com fogo. Interessante e desprezível.

— Licor de gojyriana – reconheceu, forçando um sorriso. – Tenho boas recordações associadas a licor de gojyriana.

A mulher recebeu o pagamento e voltou-lhe costas para ir servir um barabel que resfolegava, impaciente. Pelos vistos, ela não era dava a conversas e confissões, estava ali para trabalhar e mais nada. Ele não se importou. Dispensava a sua companhia, ou qualquer outra. Queria estar sozinho. Segurou no copo, levou-o até ao rosto. Observou a chama a apagar-se. Fechou os olhos e bebeu um gole generoso. A garganta ardeu-lhe, mas sentiu um enorme prazer por estar a humedecer a boca seca.

Deixou o balcão e escolheu uma mesa vazia, à qual se sentou. Afastou todos aqueles que fizeram menção de se sentar com ele com um sacudir da mão esquerda e um olhar cruel – ele sabia mostrar-se bastante desagradável quando queria. Ninguém se aproximou mais, ao perceberem que ele mostrava uma cara tão ameaçadora e antipática. Desejava realmente estar sozinho, despojado, abandonado em si mesmo. Nem sequer forçou o cérebro a pensar. Cortou todas as ideias, limitando-se a escutar o zumbido irritante do interior da cantina, onde se misturavam dezenas de vozes e de outros ruídos.

Quando terminou o licor de gojyriana, pediu outra dose a um dos empregados que cirandavam pelo salão a servir às mesas. Um segundo copo flamejante foi pousado diante de si e ele, de braços sobre o tampo, ficou a contemplar a pequena chama a dançar até se extinguir.

Bastavam-lhe quatro copos daqueles para se embriagar. Por um instante ele considerou essa possibilidade. Ficar bêbado. Dormir. Esquecer onde estava e o que lhe exigiam. Depois recordou-se que deveria estar apresentável para se encontrar com o Alto Comando da Aliança, quem quer que este fosse. Até podia ser um barabel furioso, outra mulher corcunda, um anão com uma voz irritante, um gigante apatetado, qualquer um que por mais estranho que lhe parecesse iria merecer o seu respeito. Por isso, não podia apresentar-se ébrio.

Recordou-se do entusiasmo revolucionário de Bail Organa e sentiu-se triste por estar a escarnecer da ilusão do amigo. Recordou-se da filha de Organa, a princesa Leia, trancada numa cela à espera da morte e sentiu-se melancólico por não ser capaz de incendiar a sua alma com esse fervor altruísta.

Ele era aquele fogo pequenino que bailava no topo de uma bebida alcoólica e que se apagava ao fim de pouco tempo, quando o combustível se esgotava por ser tão miseravelmente limitado. Ele era um charco de alegria fugaz que, de vez em quando, brilhava com uma furiosa vontade de queimar, mas sendo totalmente inofensivo.

Suspirou.

As luzes do salão diminuíram ligeiramente e um grande holofote azul acendeu-se mais adiante. Ele levantou os olhos e viu uma pequena banda de três elementos em cima de um estrado. Duas guitarras e um conjunto de percussão. A música começou – ruidosa, provocadora, rude. O vocalista, um dos guitarristas, berrava ao microfone e dava-lhe cabeçadas sempre que se chegava mais perto, a despejar uma raiva escaldante contra o mundo todo.

A música era selvagem, mas não surpreendeu nenhum dos frequentadores da cantina, mais entretidos com as suas bebidas, o seu jogo, os seus negócios clandestinos, os seus problemas. Ou provavelmente aquele género musical era habitual no lugar, ele é que desconhecia o facto e estava a ser um idiota.

O seu suspiro deu lugar a um largo sorriso genuíno.

Ele já tinha tocado aquela canção. Era um clássico de Carida, um sistema que exportava mais do que vinhos requintados e gente afetada. Em Carida havia também música, as canções mais provocadoras que ele já tinha conhecido. A juventude, habituada a luxos e a uma vida fácil, revoltava-se procurando por emoções fortes nos motivos errados. Os jovens criadores inventavam poemas onde se escondia a provocação, mais tarde musicados por outros jovens talentosos. Amores desgraçados, vidas vazias de propósito, ansiedade e deceção. Ele fora um desses jovens. Vindo de Corulag, compreendeu que o que ele procurava, também era objetivo dos jovens de Carida – e de outros planetas prósperos. Havia uma corrente, um movimento. Uma moda. Apenas fazia sentido quando se era jovem e cheio de hormonas. Depois passava. Com ele, passou. Teve amigos que ficaram eternamente nesse estado, de fúria latente, de frustração. Amigos que resolveram enveredar pelo lado errado da lei, que resolveram desistir, que resolveram continuar perdidos. Ele, afortunadamente, conseguira ser como os outros amigos e sair, quando as novidades estavam esgotadas.

Aquela música agreste, porém, iria sempre chegar ao seu coração – e havia poucas coisas que conseguiam alcançá-lo tão profundamente.

Ficou a escutar a canção e a trauteá-la em silêncio, movendo os lábios. Os seus sentidos acesos. Ele todo aceso por dentro. A música fazia melhor efeito do que o licor de gojyriana e de certeza que não se embebedaria com a harmonia e o som. Enchia-se de adrenalina e cantava.

 

Se quiseres, estou aqui

Mas depois vou-me embora

E já não me vais encontrar mais,

Porque o universo é profundo e escuro.

Onde está a tua hipervelocidade, meu? Onde está?

Não me alcanças.

Deixa-te estar! Deixa-te estar!

Vais perder, meu amigo

Porque eu sou mais rápido do que tu

Se quiseres, estou aqui…

 

O seu pé batia ao ritmo da batucada que o tipo da percussão arrancava dos seus tambores e bombos, num registo frenético e animalesco. Eram os três humanoides e estavam possessos em cima do palco. Um dos membros da sua banda fora igual a eles. Não eram uma espécie conhecida com um sistema de origem bem definido e o seu amigo, pelo menos, apresentava-se como um produto malformado de uma experiência genética falhada. Era ótimo para introduzir a banda, ter alguém que não se encaixava em nenhum padrão. Um híbrido entre um humano e um alienígena senciente. Um estranho numa galáxia tão eclética como aquela! Curiosamente, os três tipos que tocavam e cantavam ali eram todos iguais ao seu amigo. Sem classificação. O que fazia supor que, afinal, podiam mesmo ter um qualquer planeta natal.

Ele adorou a primeira canção que terminou demasiado rápido – mas todas as canções daquele género eram breves. Largavam a mensagem como uma bomba, acontecia a explosão. Sobre a devastação nascia uma segunda canção. No fim, era tudo descartável.

Uma excelente invocação da juventude, que também se desvanecia com o passar dos anos. Efémera e explosiva.

Ah, mas ao rever a canção ele era novamente jovem! O seu espírito agitava-se, inflamado de animação, da mesma fúria que embebia as notas musicais daquela apresentação!

E por estar tão envolvido naquela catarse – uma bebida e uma canção e ficara curado do seu mau feitio – não se apercebeu que ganhava companhia, que se postava diante dele. Não se sentou porque lhe era impossível fazê-lo. Heskey rodou ligeiramente o pescoço e deparou-se com um androide que se encostava à sua mesa. Uma máquina compacta e escura, um paralelepípedo com uma faixa de luzes piscantes no topo que seccionavam a parte superior no que seria para assinalar como aquela do corpo metálico onde se situavam os sensores de movimento e os dispositivos que permitiam a visão e a comunicação. Na parte inferior possuía rolamentos e algo como patas que permitiam a deslocação e o equilíbrio quando estacionava.

Heskey apertou o copo com a mão esquerda. Se este fosse mais frágil, tê-lo-ia partido.

— Some-te daqui androide.

— Estou aqui para te proteger, senador. J7-21 ao seu dispor.

Soou-lhe a esquema ardiloso.

— Não me conheces de lado nenhum e aviso-te que não perderei tempo contigo. Esta é a minha mesa e não pretendo partilhá-la com ninguém… ou com alguma coisa. Não é pelo facto de me tratares por senador que eu ficarei curioso e dar-te-ei o benefício da dúvida.

— Poderás tratar-me por Jotassete. Gosto desse tipo de tratamento. – Quando fazia soar o processador de voz havia uma pequena luz verde que ficava acesa durante a frase.

Gostas? – Heskey revirou os olhos.

— Vai entrar alguém na cantina.

— Está sempre a entrar alguém na cantina – resmoneou, desagradado, levantando o copo.

— E depois vais precisar que eu te proteja.

— Oh… Um atentado à minha vida? Isso começa a ser ridículo. Não vejo por que motivo alguém vai importar-se comigo ou sequer saiba que estou neste fim do mundo chamado Ferth, numa cantina a beber e a ouvir música.

— Segundo a minha base de dados, gostas deste género musical.

— Hum…

Era mesmo um esquema ardiloso. Levou o copo aos lábios.

De facto, alguém entrou na cantina. Exuberante e barulhento, arrastou consigo um vendaval que o incomodou, a tal ponto que a aragem que sentiu nas costas fê-lo afastar o copo dos lábios e espreitar por cima do ombro. Era um homem esgalgado, calvo, com tufos de cabelo branco que lhe rodeavam o crânio como uma auréola, caindo longos até aos ombros. O rosto era torto, um nariz proeminente, olhos escavados, um queixo afiado como a quilha de um star destroyer. Vestia-se com roupas caras, de bom corte, quase ofensivas num ambiente de baixo nível. Envergava uma capa que rodopiava elegantemente. Atrás do homem apareceram dois soldados que, pelo fardamento, pertenceriam a uma milícia local. Estavam armados e moviam-se como dois guarda-costas. Desnecessário e patético.

O homem ergueu os braços magros ao alto e a música interrompeu-se. Caminhou até ao balcão flutuante e anunciou numa voz tonitruante:

— Meus caros! Uma rodada de bebida por minha conta. Bebam o que quiserem, não olho a despesas. Com os meus cordiais cumprimentos, lembrem-se do meu nome. Senador Heskey, de Corulag!

Ele cuspiu o gole de licor que tinha acabado de sorver.

— Eu disse-te, senador, que irias precisar de proteção – afirmou Jotassete.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Identidade roubada.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Senador Rebelde" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.