O Senador Rebelde escrita por André Tornado


Capítulo 4
Contratempo




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/777500/chapter/4

Passou a última hora-padrão sentado no chão duro da arrecadação, na mesma posição. Ganhou uma terrível dor nas costas, músculos magoados pela imobilidade e um tédio crescente que o deixou perigosamente irritadiço. Ambarine não tinha fechado a porta, não cogitava que ele se fosse evadir dali para ir para qualquer outro lugar daquele cargueiro imundo e esse foi o único pormenor positivo daquele cativeiro.

Viu passar um androide astromecânico, um modelo bojudo e desengonçado que rolava apoiado nos seus apêndices metálicos inferiores que raspavam o chão. Viu ainda passar dois androides MSE-6 modificados, que eram conhecidos como ratos, aos solavancos e sem a fluidez daqueles que ele se habituara a ver a cirandar pelos corredores do edifício do Senado. Depois foi a vez de um dos gamorreanos estacionar na vizinhança. Espreitava-o e sumia-se, a grunhir. Estava a vigiá-lo, mas não o fazia de forma descarada para não o embaraçar – já que ele era um convidado.

Fungou, aborrecido. Era um prisioneiro, pois estava a ser levado para uma reunião contra a sua vontade. Estava numa prisão, pois não podia simplesmente sair dali. O infeliz gamorreano haveria de travá-lo, com uma desculpa qualquer rosnada que ele não iria entender.

Se porventura sentira algum indício de medo quando entrara no cargueiro dos piratas, facto que ele não confessaria, aquele grupo patético não era o suficiente para que ele se assustasse, agora sentia-se contrariado e cansado.

Esperou por um agrado que não veio. Ambarine não seria descortês a esse ponto. Levantou-se e espreguiçou-se. Movimentou as pernas que estavam dormentes e deixou-se ficar mais um pouco encostado à parede fria. O gamorreano espreitou fugazmente e sumiu-se. Devia ter notado que ele se mexera e viera conferir se ele não estava com ideias de se evadir. Revirou os olhos com o descaramento do pensamento daquele guarda caricato! E ele haveria de fugir para onde?

Pelos seus cálculos, já que ele era bom a contabilizar tempo de inação e inércia, aprendera a entreter-se com nada durante as longas sessões do Senado Imperial em que tinha de respeitosamente aguardar pelas intervenções das outras delegações, num marasmo que parecia congelar, tinha passado pouco mais de uma hora-padrão. Assim, teria de esperar tempo idêntico.

Quis esticar as pernas. De certeza que o gamorreano seria fácil de contornar. Se a criatura lhe colocasse algum entrave gritaria alto, de maneira a chamar a atenção de Ambarine. E claro que criaria uma tempestade dentro daquela maldita nave porque não admitia ser tratado daquela maneira tão vil!

Girou o pescoço para a esquerda e descobriu o metal polido de um painel. Limpou-o melhor com a manga e aproximou-se, verificando o seu reflexo. Viu um velho na imagem distorcida e franziu a fronte, descrente daquilo que os seus olhos contemplavam. Um homem magro, de cabelo cinzento desgrenhado, olhos azuis como gelo. Distinto, afetado, perigoso, trocista e afável. Um veterano de guerras nunca combatidas, um cínico que se escudava nas suas ações teatrais. Passou as mãos pela cabeça, considerando que não se devia enredar pela imagem visualizada, que não correspondia à nitidez devida por um espelho apropriado. Era a porcaria de um painel brilhante.

E ele estava com fome e com sede.

Saiu da arrecadação e logo o gamorreano surgiu a guinchar, aflito, intimando-o a regressar para dentro. Ele ignorou-o, relanceando o olhar pela passagem estreita. Não conseguiu aprofundar a sua análise, contudo. Houve um solavanco e ele teve de se agarrar ao monte de caixas para não cair. E foi por milagre que não derrubou esse muro improvisado. O cargueiro começou a sacolejar e parecia que iria desintegrar-se debaixo das suas botas. O gamorreano guinchou mais alto e ele empurrou-o. Iria averiguar o que se estava a passar, mas era evidente que, a meio da viagem das duas horas-padrão entravam em velocidade subluz.

Os seus passos foram interrompidos pelo gotal.

— Lishma pergunta onde o senador deseja ir.

Os olhos amarelos destacavam-se no rosto peludo e cinzento. Heskey endireitou as costas e observou a criatura de cima a baixo. Estalou a língua e esforçou-se por não soar antipático, pois antipatia era tudo o que sentia.

— Lishma… é assim como te chamas, certo? Muito bem, Lishma. Não sou vosso prisioneiro, mas um convidado e já estive a portar-me bem na última hora-padrão. Sentadinho naquela arrecadação vazia, sem me queixar. Agora apetece-me comer alguma coisa, mas parece-me que a vossa comandante, a bela Ambarine, esqueceu-se que eu lhe tinha pedido algo para beber e para fumar. Pois bem, vim saber por que motivo o serviço a bordo deste cargueiro é tão miserável quando percebo que já não estamos a viajar à velocidade da luz. Que explicação tens para me dar, meu caro Lishma?

— Lishma vai ver se há lanche para senador.

— Sim, um lanche, nesta altura, também seria interessante, se acompanhado por uma bebida espirituosa. Posso, eventualmente, dispensar um charuto cigarra se me fizeres o agrado.

— Os cigarra cheiram mal, senador. Lishma não charuto.

— Está bem, sem cigarra. E o que foi que aconteceu para termos interrompido a rota?

— Lishma sabe, não vai dizer.

— Ah, poupa-me! – exclamou Heskey erguendo os braços. Tentou empurrá-lo como fizera ao gamorreano, mas o gotal era mais forte, mais irredutível. Inspirou profundamente. – Queres dar-me passagem, Lishma?

— Lishma não percebe zanga de senador.

— Zanga? Eu não estou zangado… Quero dizer, posso estar um pouco zangado. Tenho estado sentado no chão sem me mexer, meu caro, é normal que possa estar um pouco zangado. Não concordas?

Lishma não respondeu, ficou a olhá-lo com uma expressão perdida, como se não tivesse percebido as suas palavras. Ele mordeu os lábios.

Um dos nikto passou mais adiante, a colocar a sua carabina laser a tiracolo e Heskey apontou para o fundo da passagem.

— Vamos desembarcar? É que se for isso, Lishma, eu não fico a bordo… Parece que chegámos antes do tempo ao nosso destino, onde é suposto eu encontrar-me com um contacto dos rebeldes, ou trata-se de outra questão? Vocês são piratas. Era só o que me faltava terem sido intercetados por uma patrulha do Império e que eu seja apanhado convosco!

— Lishma sabe que não é Império.

— Oh, por favor! Esta conversa não nos vai levar a lado nenhum!

Lishma não fincou os pés e a pressão que ele exerceu com a mão sobre o peito peludo do gotal foi suficiente para afastá-lo e deixá-lo passar. As suas emoções estavam todas baralhadas e a criatura estava a senti-las todas, de certeza, só que daquela vez não se mostrava tão ameaçador. Talvez a perceção lhe causasse alguma dor – naquela fase, ele pouco se importava com o que causava, só queria atender às suas próprias necessidades.

Chegou à área onde se situava a porta exterior. Muitas luzes piscavam e havia agitação na carlinga. Os nikto já se encontravam armados, voltados para a rampa, a aguardar o desembarque. Ambarine surgiu pouco depois, com dois gamorreanos no seu encalço. Todos armados. Até a mulher que depois de verificar as munições na sua pistola laser, a devolvia ao coldre.

— Chegámos ao nosso destino? – perguntou ele, desconfiado. – Julgo que tinhas dito que seriam duas horas-padrão.

— Vamos fazer uma paragem para abastecimentos.

Um arrepio súbito indicou-lhe que a situação se alterara e eram necessários mais esclarecimentos. Arriscou a observação:

— E enquanto tratas dos abastecimentos eu irei ao encontro desse tal membro da rebelião.

— Negativo, senador.

— Negativo…

O gotal apareceu, coçando a cabeça. Passou por eles fixando-lhe um olhar ferino. Heskey oscilou nos calcanhares e anunciou:

— Pois bem, irei contigo. Ah ah! Nem penses em negar-me este pedido, minha querida. O que raio se passa? Sou abandonado num quarto minúsculo e sujo durante um tempo infinito, sem que ninguém se chegue ao pé de mim.

— Estava lá um gamorreano.

— Um gamorreano! Ouve-me, querida, quero ir beber alguma coisa. Toda esta situação está positivamente a implicar-me com os nervos e tu não me queres ver zangado.

Ela tinha uma expressão de fastio no rosto.

— E vai adiantar de alguma coisa… ficares zangado?

— Posso escapar-me desta prisão!

— Tu não és um prisioneiro, senador.

— Não parece, querida.

— Estás a ser caprichoso.

— Sou conhecido, precisamente, por ser caprichoso. – Ele agarrou-a pelo braço e o gesto ousado fê-la estremecer de indignação. Cerrou os dentes, mas ele não se intimidou. Era um animalzinho imberbe a brincar aos adultos. – Então, esclareçamos os equívocos, de uma vez por todas. Se sou um convidado exijo ser tratado como tal. Irei contigo a… onde iremos. E por que parámos? Quero um relatório completo ou irei fazer com que não sejas paga pelo serviço duvidoso que estás a prestar à Aliança… Ambarine. Estamos combinados? Não me julgues pelo meu aspeto. Sei ser tão implacável quanto Darth Vader!

Ela sacudiu o braço, cada vez mais perplexa com a atitude dele. Ele adorou. Estava a conseguir fazer passar a mensagem. Se se tinha mostrado colaborativo até ali, naquele momento apetecia-lhe sabotar todos os esforços daquela empresa destrambelhada.

Ele cruzou os braços, incitando-a a falar. Ela respirou fundo.

— Estamos com problemas com as células de combustível – admitiu. – Alguns painéis queimaram-se e danificaram a parte da transformação subatómica do combustível em energia. Nunca chegaríamos ao ponto de encontro com os níveis que lemos nos depósitos. Então o Panno, o nosso piloto, sugeriu uma paragem neste sistema da Orla Média. Não é um local muito recomendável, mas já estive em planetas piores, nomeadamente nas Regiões Desconhecidas e na infame Orla Exterior.

— Mais um motivo para sair contigo, querida. Eu protejo-te.

Ela gargalhou sem alegria.

— Tu nem estás armado, senador!

— Oh, enganas-te! Tenho a mais poderosa arma de todas.

— A tua conversa.

— Sempre fiz o melhor uso da minha palavra, minha querida.

— Será que podias parar de me chamar de querida? Isso é irritante!

— Também é irritante ser um convidado-prisioneiro de um bando de mercenários indigentes, a bordo de um cargueiro que está a cair aos pedaços e que agora está com falta de combustível. Não sei qual dos cenários será mais… desafiante.

Ambarine voltou-lhe as costas. Os nikto escutavam tudo, preparados para intervir, mas mantinham-se obedientes ao sinal da sua chefe.

— Sabes conversar, sem dúvida… e sabes ser ofensivo.

— Pugno por ser excelente naquilo que faço. Não aceito menos.

— Muito bem, senador. Vais connosco.

— Serão tu, os dois nikto e eu? Um excelente quarteto!

— Lenna, a copiloto e um gamorreano também fazem parte do grupo.

— Oh, tanta gente! Quase que podemos preparar uma festa!

A ironia aborreceu Ambarine que suspirou.

— Não devias ter-me deixado sem uma bebida, minha querida – esclareceu Heskey, insistindo no tom desdenhoso. – Sem entretenha, sou pouco sociável e simpático.

— Ah, serás simpático… folgo em saber isso – resmungou ela.

— Como se chama o sistema?

— Ferth.

Desconhecia o local. Mais uma vez entregava-se nas mãos daquela mulher e daquele bando maltrapilho. Espreitou o gamorreano que grunhia ao seu lado. Seria, porventura, uma espécie de guarda-costas e ele sentiu asco. À primeira oportunidade, iria escapar-se-lhe.

Uma ideia tentadora. Fugir…

O gotal percebeu-lhe a excitação e ele varreu de imediato esse pensamento. Estava sereno e neutro quando o cargueiro pousou no espaçoporto, após uma travessia algo atribulada da atmosfera planetária.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Heskey está apostado em irritar tudo e todos que o estão a forçar a estar naquela situação. Tiveram de fazer uma parada imprevista num lugar chamado Ferth - veremos o que vai acontecer aí.

Próximo capítulo:
Uma bebida e uma canção.

Hoje estamos de parabéns.
Hoje é dia de Star Wars - foi no dia 25 de maio de 1977 que estreou, em Los Angeles, um certo filme que haveria de sair do ecrã e de se transformar noutra coisa qualquer. Sim, converteu-se numa outra dimensão, numa outra galáxia, noutro tempo; a sala de cinema é o portal usado para atravessar o wormhole e chegar a esse lado longínquo do universo.
Que a Força esteja com vocês!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Senador Rebelde" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.