O Senador Rebelde escrita por André Tornado


Capítulo 17
Divertimentos




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O entretenimento era uma arena onde se desenrolavam lutas contra bestas e outros condenados à escravidão. Quando descobriu isso, o sangue fugiu-lhe do corpo e Heskey quase que desmaiou com o susto. E o gigante ainda lhe dissera que acreditava nele por ser rijo! Nunca tinha lutado com ninguém na sua vida, à parte de umas escaramuças em cantinas quando bebia demasiado e quando era mais jovem, fugido da sua casa, com o sonho da música e da inconformidade. Tudo com os punhos e muita bravata.

Ele soube, então, que a sua vida corria sério perigo. Mas não havia muito que pudesse fazer a não ser alinhar naquela loucura e apresentar-se na arena de Pesak. Era impossível fugir ou iludir a vigilância que caía sobre ele e sobre os seus companheiros de infortúnio – havia outros escravos. Era impossível resistir ou apresentar um protesto que fosse ouvido por alguém influente. Todos eram coniventes e todos beneficiavam. Não havia motivos, realmente, para compreender as palavras assustadas de um escravo, ou sequer sentir simpatia pelo seu padecimento. Se ele se recusasse a obedecer, era substituído por outro, mais submisso. Vira isso acontecer ao seu lado – um wookie rebelou-se aos urros e gritos, a arrancar braços e cabeças, sangue de várias cores por todo o lado. Foi pulverizado. Outro wookie entrou na fila.

O Templo onde tinham ocorrido as horas mais terríveis da sua vida era um conglomerado de edifícios que se juntavam em torno de um imenso pátio interior, de forma quadrada, delimitado por um duplo pórtico de colunas. Ele foi levado em grande algazarra e numa alegria típica de festival primitivo até ao centro do pátio que se encontrava pavimentado com lajes negras. Então, fizera parte de uma peça teatral, uma comédia torpe.

O Fazedor de Tormentas era na realidade uma dupla, constituída por um homem aleijado, confinado a uma plataforma com rodízios que se movimentava pela simples vontade do seu ocupante e que se cobria de placas e processadores para não sucumbir à doença, e um androide protocolar que auxiliava o ciborgue que, por sua vez, o alimentava com as baterias que o mantinham vivo. Foi esse estranho anfitrião que conduziu todo o mercado dos escravos. Houvera música, dramatismo, gritos, apresentações elaboradas. Heskey andou nesse corrupio entre a fúria e a indignação. Arrancaram-lhe a capa e desfizeram-lha em farrapos. Foi rodopiado até ficar tonto e ir com as mãos ao chão, enjoado e de equilíbrio perdido. Foi apupado e vilipendiado. Foi aclamado e aplaudido. No fim de toda essa apresentação insensata, integrou-se num grupo de homens que era tudo menos homogéneo. Altos, baixos, magros, gordos, jovens e velhos. Aliás, tudo naquele mercado parecia aleatório e malvado, com o único propósito de proporcionar uma entretenha fácil a uma multidão desprovida de cérebro.

Ao ver-se privado da sua capa agradeceu ao seu bom senso que o tinha levado a esconder o disco roubado na bota. Continuava aí e ele, assim que conseguiu camuflar-se atrás de uma criatura anafada que resfolegava por causa do calor, enfiou os dedos e empurrou o disco mais para o fundo, prendendo-o junto ao tornozelo. Magoava-o mais, mas assim teria a certeza de que os planos ficariam a salvo.

Se ele também se mantivesse a salvo, o que começava seriamente a duvidar depois de perceber que iria ser exibido numa arena.

Uma euforia macabra rodeou o seu grupo e ele entreviu, entre a turba excitada, o mercenário gigante que o tinha vendido ao Fazedor de Tormentas que, por sua vez, o tinha transacionado com outro dono que ele desconhecia – a vida de escravo era ingrata a esse ponto, nunca se sabia muito bem o que acontecia à volta e que era sempre crucial para a própria sobrevivência – dono esse que, pelos vistos, organizava jogos num recinto local destinado ao efeito. Quis situar-se, mas foi impossível fazê-lo. Era constantemente empurrado de um lado para o outro e não teve outro remédio senão seguir no grupo. Fez sinal ao gigante, mas este não o viu e nem se mostrou interessado em procurá-lo para lhe dar alguma indicação. Ninguém dava qualquer informação e ele estava perdido no centro daquela barafunda quente e ruidosa.

Deixou-se levar, a bufar e a ranger os dentes, irritado, suado, cansado e saturado.

O grupo era composto por cerca de vinte indivíduos de diferentes raças galácticas. Nem se conseguia definir quantos deles eram humanos, pois a maioria usava vestes que cobriam todo o corpo e escondiam a sua verdadeira aparência. Ele era o que estava mais exposto, já que o tinham despojado da sua capa. Se a tivesse ainda, podia enrolar-se nesta, cobrir a cabeça, ocultar a sua identidade.

Foram carregados num transportador fechado – outra ideia descabida já que fazia um calor imenso naquela hora do dia. Por que motivo não usavam um transportador descapotável? O cheiro dos corpos acumulados num espaço exíguo tornou-se verdadeiramente insuportável e Heskey tentava, a todo o custo, não desatar aos vómitos.

O transportador pôs-se em movimento e ele tentava equilibrar-se no meio dos solavancos, sem tocar em ninguém. Mas os que estavam mais perto tocavam nele e ficava cada vez mais agoniado. Esperou que a viagem fosse curta. Naquelas condições, porém, qualquer viagem seria insuportavelmente longa.

Estava de olhos fechados, a gerir as tonturas, a amaldiçoar mais uma vez Emile Omonda, quando um encosto se prolongou. Alguém se apoiava no seu flanco direito, à descarada. Ele olhou indignado para a criatura que tivera o atrevimento de o usar como apoio. E mais espantado ficou quando o ouviu dizer:

— Fica junto a mim. Irei defender-te.

A criatura estava coberta por uma capa manchada, da cor da areia, um capuz sobre a cabeça cuja sombra lhe escondia o rosto. Arriscou que seria um humano, mas como poderia afirmá-lo se toda a porção do corpo estava coberta por mangas, calças e até luvas? A indumentária era descolorida e deslavada, suja até, como a capa. Observou, com desdém:

— Não és um pouco baixo para te julgares um defensor?

O outro volveu o rosto na sua direção e sorriu-lhe. Na penumbra pareceu-lhe, definitivamente, um humano. Um jovem adulto intrépido que queria exibir-se. Ele não perdia nada em aceitar aquela companhia mais estreita, uma vez que todos naquele grupo seriam companheiros por definição, mas quis conhecer um pouco mais esse seu novo amigo que estava disposto a defendê-lo.

— Já lutaste na arena? – perguntou.

— Não. Nunca.

Heskey fungou e revirou os olhos. Um exibicionista! Tinha-o topado logo. Atirou, brusco:

— Então como é que te achas qualificado para me defenderes?

— Confia em mim.

— Oh! Confiar em ti… Pois. – Meneou a cabeça. – Claro. Como se fosse assim tão simples, na presente situação – resmungou.

— A confiança é um processo bastante simples. Basta…

— Basta?

— Basta confiares.

— Pfff! Que conversa idiota… Quem és tu, rapaz?

— Não sou nenhum rapaz! – exclamou o outro, irritado.

— Oh… Toquei num nervo sensível. Para mim pareces um rapaz. És baixo e moves-te de forma impaciente. Como se o mundo não fosse suficientemente grande para conter a tua maravilhosa presença.

— Ah, isso define um rapaz? Gostei de saber… Não, não tocaste. Não tenho nervos sensíveis!

— Não era uma pergunta.

— Ei, não te tornes difícil de defender— avisou o outro, obviamente inquieto.

— Estás aqui de livre vontade.

— Acredita… vais querer que eu te defenda!

— Parece que acreditas muito em ti e pouco em mim.

— Sou um amigo enviado por outros amigos. É suficiente para que vejas isto de uma maneira menos desconfiada?

— Não, não é. Mas do que me adianta protestar?

— Correto. Somos todos escravos. Os escravos não protestam. Estão calados e aceitam o que lhes acontece, calados e submissos.

— Ainda bem que um de nós aceita razoavelmente bem essa condição.

— Não é com isso que te deves preocupar, amigo. Preocupa-te com o que vai acontecer na arena. Vais lutar contra animais.

— Animais…

— Isso não foi outra pergunta, certo? Costumas falar sempre assim, dessa maneira dissimulada?

— Dissimulada? Eu não falo de uma maneira dissimulada!

— Nunca afirmas nada, nem desmentes, nem fazes perguntas. Para poderes ter sempre uma desculpa suficientemente credível para te escapares da possibilidade do compromisso.

— Defeitos de ofício… Digamos que antes de ser escravo, a minha ocupação obrigava-me a uma certa… flexibilidade.

— Oh, estou a ver. Eras um cínico.

— Ainda sou, rapaz.

— Já te disse que não sou nenhum rapaz…

— Então, diz-me quem és.

— Sou um amigo! Não posso dizer-te o meu nome. Estamos no meio de inimigos. Demasiados ouvidos.

— Julgava que seríamos… colegas. – Heskey olhou para o grupo que se mantinha calado. Só eles os dois conversavam. Achou por bem baixar o tom da voz. – Vamos todos para essa arena e vamos partilhar o objetivo de sairmos vivos do espetáculo. Isso liga-nos e faz de nós uma espécie de colegas.

— Vamos competir uns contra os outros. Que ganhe o melhor…

— Oh… E os animais? Os animais vão estar na arena a fazer o quê?

— São bestas locais de Pesak, estive a informar-me antes.

— Um escravo pode informar-se… antes?

— E agora fazes uma pergunta, mas num tom irónico. O que fazias antes de teres acabado neste buraco, para precisares de ser assim tão intratável?

— Era senador. Contente? Já sabes mais de mim do que eu sei sobre ti.

— Um senador do Senado Imperial?

— Não devia estar aqui, nem este é o meu lugar, como é notório. Fui vítima de uma vil emboscada. Hei de conseguir sobreviver a essa arena e hei de estrangular o maldito que ousou fazer-me isto. Até lá… até lá preciso de contar com o apoio de… bem, com o teu apoio, pelos vistos. Apesar de eu achar que conseguiria desenvencilhar-me sozinho.

— Eu também estaria furioso se fosse um senador e tivesse sido feito escravo.

— Esta situação é reversível.

— Isso não foi outra pergunta, pois não? Mesmo assim, queres que te responda…

— Não presumas interpretar as minhas palavras e responde de uma vez!

— Calma, amigo! Calma. Estamos do mesmo lado, lembra-te.

— Sim, o meu defensor… Um pirralho que é quase metade da minha altura.

— Não exageres. Sim, a situação é reversível se conseguires sobreviver ao desafio da arena.

— Sinto-me bastante mais descansado – brincou Heskey, azedo. – Sabes bastante sobre escravatura. Estiveste a informar-te antes, mas acredito que sempre conheceste este modo de vida, desde que nasceste. Presumo que não nasceste numa família proeminente da galáxia.

— Estamos na Orla Exterior… senador! – zombou o rapaz. – Nestas regiões não existem famílias proeminentes. Só bandidos e gangsters que dão abrigo a bandidos, numa espécie de… família. Clãs.

— Hum, clãs… Então conta-me lá, que animais nos esperam e o que devemos fazer nessa arena?

— São nwarr, bestas parecidas a dewbacks. Vês? Já começas a fazer perguntas.

— Oh, por favor, rapaz! Não me irrites mais do que já estou! Não faço a mínima ideia do que é um dewback.

O rapaz soprou o ar pela boca, rabugento. Explicou:

— Um dewback é um animal de carga, oriundo do Mar das Dunas do planeta Tatooine. São répteis possantes, de grandes lombos que é possível cavalgar. São animais bastante dóceis e fáceis de domesticar. Já os nwarr são o oposto. Fisicamente são semelhantes, maciços de carne apoiados em quatro patas grossas, à exceção de uma proteção couraçada que lhes envolve a cabeça e o cachaço, com cornos e espigões. Os focinhos também são ligeiramente diferentes, os nwarr possuem seis narinas e estão sempre a soprar… assim, estás a ver?

O rapaz começou a bufar ruidosamente. Enchia as bochechas de ar e soltava-o em baforadas zangadas.

— Cornos e espigões…

— Os nwarr marram para atacar as suas vítimas e ficam terríveis quando são feridos – continuou o rapaz, empolgado. – Empalam quem se mete à sua frente.

— Ah… Vamos ser todos empalados!

— Todos, não. Só alguns. Eu espero safar-me, e tu safas-te comigo. Haverá outros. A carnificina nunca é completa.

— Oh, que agradável! E estiveste a informar-te sobre tudo isso…

— Estou numa missão de salvamento – sussurrou o rapaz, cobrindo a boca com a mão, para disfarçar ainda mais as palavras. – Tinha mesmo de estar informado. Certo, falávamos em empalamento. Mas…

— Há um mas? – Ergueu as sobrancelhas. O suor descia-lhe pelas costas e molhava-lhe a orla da cabeleira cinzenta. Começava a detestar toda aquela explicação. Manter-se na ignorância deixava-o mais descansado e com vontade de lutar contra tudo aquilo. Com tantos detalhes, perdia a coragem e tinha a tendência aflitiva para se render à evidência de que não estava talhado para aquele tipo de desafio. Iria conhecer o seu fim ali, naquele planeta desértico que ninguém conhecia. Pesak. Quem morava em Pesak? Nem delegação no Senado havia!

— Sim, há um mas. E é esse “mas” que nos vai salvar a pele.

— Conta-me, então… – pediu, desanimado.

— Os nwarr podem ser cavalgados, tal como os dewback. Não são fáceis de montar, daí que sejam usados neste tipo de divertimentos. O jogo é precisamente apanhar um nwarr em corrida. Se conseguires subir para a sua garupa é já meia vitória e podes assegurar que não sejas atravessado por um dos cornos mortíferos. No centro da armação, existe um espigão de cor alaranjada que se enche de sangue e pulsa com as investidas do nwarr. Arrancas esse espigão e a besta acalma-se. Os nwarr não se atacam uns aos outros, pelo que ficas seguro em cima do teu nwarr. Podes abandonar a arena, és libertado, quem apostou em ti fica rico e tu ganhas o dia pois voltas a ser livre.

— Muito simples. – Heskey revirou os olhos. – Afinal, os nwarr podem ser domesticados.

— Não, não podem. Quando lhes arrancas esse espigão ficam condenados. Quando volta a amanhecer em Pesak, mais ou menos passado um dia-padrão, o nwarr sucumbe e morre.

— Vamos matar esses animais… apenas por desporto? – apontou ele, perplexo.

— Ou és tu ou eles. Vais escolher e não me parece que, quando estiveres na arena, terás dúvidas. Não te preocupes, é uma morte bastante pacífica. O nwarr não sofre. Será como adormecer.

— Já assististe à morte de algum nwarr, meu rapaz? Para teres a certeza…

— Não. Mas disseram-me que assim seria. Eu acredito.

— Também terei de acreditar…

Heskey olhou para as demais criaturas do grupo. Ninguém se mostrava interessado na conversa deles, por desleixo ou por distração. Ou talvez alguma estaria a escutá-los à socapa, para ter uma hipótese de sobreviver.

— E os outros? Sabem disso? – perguntou num sussurro.

— Creio que sim. Escuta-me… não te preocupes com os outros, já te disse. Na arena, vamos jogar e será cada um por si. Vão tentar empurrar-te para a frente do nwarr e tu vais ter de lutar tanto contra os animais, como contra os outros. Menos nós, estaremos a funcionar em equipa. Uma dupla. E ainda teremos outro elemento no exterior que nos vai ajudar. Por isso, está tudo controlado.

— Oh, claro. Quando estivermos na arena eu digo-te se teremos tudo controlado. Um elemento no exterior… um cúmplice.

— Sim, um cúmplice.

— E ele não te vai atraiçoar… Imagina que ele se deixa seduzir pelas apostas e ganha mais dinheiro contigo morto do que vivo. Vai abandonar-te.

O rapaz riu-se.

— Esse meu cúmplice não é corruptível.

— Tens muita certeza.

O capuz voltou-se para ele. Sabia que se encaravam, mas continuava a ver apenas a boca e o queixo do rapaz, pelo que supôs que os olhos – como seriam os olhos dele? – estariam a fixá-lo para além do tecido que descaía numa prega amarrotada sobre a cabeça.

— Toda a certeza, amigo. Vivi toda a minha vida num planeta da Orla Exterior onde abundam as deslealdades e sei reconhecer um verdadeiro companheiro. Para além disso, conheço este tipo de entretenha para gente desocupada, com dinheiro para gastar e, sobretudo, para exibir. Só iremos ter uma oportunidade. Não existem tentativas. Ou fazemos tudo certo naquela arena, ou acabamos mortos. Compreendido?

— A tua arrogância é outro dos requisitos que me levará a confiar em ti?

— Poderá ser. Só te peço, depois de tudo o que te contei, não saias de ao pé de mim. Lembra-te, seremos uma equipa.

Heskey respirou fundo. Ia arriscar… Foi um pensamento repentino, uma ideia louca, um risco por calcular. Toda aquela situação era má, avaliava no limite do desespero. Estava prestes a servir numa arena e a lutar pela sua vida. Os seus joelhos fraquejaram. Apertou os punhos, apertou os dentes. Perguntou num sussurro ansioso:

— Sabes como contactar a Aliança?

— Sei! – respondeu o rapaz sem hesitar.

— Muito bem. Acabaste de me convencer. Ficarei contigo e… e, bem, confiarei em ti!

— Uma excelente decisão.

O transportador parou.

Um calafrio desceu-lhes pelas costas. E a sua boca tinha secado.

Heskey entreabriu os lábios. Daria tudo por um generoso copo de whisky corelliano.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Poeira, suor e perigo.



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