O Senador Rebelde escrita por André Tornado


Capítulo 12
Passeio no mercado




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Ele nunca visitava o mercado de Curamelle. Era sempre Onca que tratava dos abastecimentos da mansão e nem mesmo o ithoriano pisava o local onde se situava o principal centro de comércio da cidade. Mandava alguém da casa, acompanhado de um androide para carregar com as caixas e os sacos e depois conferia as aquisições com a sua lista eletrónica. Havia uma razão para se evitar o mercado e ele iria descobri-la em breve – uma razão que imaginava qual seria e que se revelou idêntica à que antecipava, dando-lhe a certeza de que os seus instintos continuavam apurados.

Aquele dia, portanto, era uma exceção, um caso raro. O senador imperial Heskey resolvera ir ao mercado e fazer compras, por si próprio, acompanhado do seu androide pessoal, a unidade J7-21. Sem Onca, mesmo que o assistente tivesse insistido bastante para ir também.

Arrependeu-se assim que colocou o pé no chão pavimentado e colorido, assim que franqueou a entrada, um arco em pedra engalanado com flores como para um festival.

Todos os pelos do seu corpo se arrepiaram ao ver o caos que rodeava aquele recinto pejado de lojas, de bancas ambulantes, apinhado de gente barulhenta e alegre, num registo histriónico e exagerado, a indicar que seria obrigatório ser-se feliz para se visitar tal espaço de consumo.

Olhou por cima do seu ombro direito e esperou que Onca estivesse ali consigo, contrariando as suas indicações de que não precisava da sua companhia. Só que estava apenas com o androide e teria de se desenvencilhar sozinho, munir-se das suas capacidades de sobrevivência em ambientes hostis e avançar pela barafunda, compreendendo que havia realmente uma forte razão para se evitar o mercado.

Reteve a respiração no peito e empertigou-se, tornando os seus passos rígidos. Não desistiu, portanto, nem recuou ou voltou para trás, derrotado pelo seu mal-estar e pela sua aversão. Tinha Jotassete a rolar ao seu lado. O androide, por ser a máquina que era, não se deixava afetar com nada daquilo. Ele também não iria dar parte de fraco e melindrar-se. Seria como um autómato, insensível e objetivo. Iria depois contar a Onca que tudo tinha corrido bem e comporia um relato digno de uma façanha heroica, ou algo semelhante.

Por isso, andou mais alguns passos, caminhando com a sensação de que os joelhos se tinham calcificado, que tinha de forçar as articulações e aniquilar a dor para continuar a andar. Claro que não havia dor alguma e as suas articulações estavam perfeitamente saudáveis – era apenas a impressão de repulsa que lhe invadia cada fibra do seu ser, que se entranhava fundo, ao nível celular, ao ponto de lhe ser quase impossível aceitar que estava mesmo ali.

Adotou a requerida postura indiferente, uma expressão de estátua e caminhou, hirto como uma viga de durasteel. Apertou com as duas mãos as dobras da capa que lhe cobria os ombros de uma forma elegante e pôs-se a circunvagar o olhar pelos letreiros e pelos anúncios.

Não seria pior do que Ferth, pensava. Não seria pior do que qualquer dos locais que ele tinha frequentado enquanto jovem adulto cheio de sonhos e de vontades teimosas, com a sua banda de música, quando ser-se rebelde era uma noção que não se colava à Aliança para a Restauração da República, acrescentava ao primeiro pensamento.

Conhecera verdadeiros pardieiros, buracos fétidos, lugarejos miseráveis, que a sua rebeldia ansiava por contrariar toda e qualquer convenção, a começar pela comodidade e a terminar pela sanidade.

Mas depois tornara-se refinado e compreendera que preferia ser quem sempre fora, rodeado de luxo e de mimos. Gostava de ser aparicado, era um dos seus grandes defeitos. Gostava que lhe fizessem as tarefas mais mundanas, apreciava manter-se acima da vulgaridade. Era um snobe, era um excêntrico e ele não se importava que lhe colassem rótulos. Esses ficavam sempre nas suas costas e ele não tinha a capacidade, como algumas criaturas galácticas, de rodar o pescoço e apreciar o que existia atrás de si.

Analisou o sítio com toda a distância que conseguiu impor ao exercício.

O mercado dispunha-se numa ampla área, situada na zona Sul da cidade. O seu perímetro constituía uma praça elíptica rodeada por um muro agradável, pouco alto, onde se misturavam diversos materiais, desde o aço e o vidro, até a alvenaria opaca pintada de cores vibrantes. Dentro desse perímetro dispunham-se as lojas e as bancas, numa variedade que desejaria, porventura, emular a diversidade da galáxia. Em montras horizontais e nalgumas verticais exibiam-se os produtos que se encontravam à venda e à disposição dos clientes que tivessem nas suas carteiras os créditos suficientes para os adquirir. Carnes, peixes, frutas e legumes. Vinhos, refrescos e água. Loiça, cestaria e vasilhas. Tecidos, fios, lãs e agulhas. Chapéus, agasalhos e botas. Joias, perfumes e lenços. Até peças sobressalentes para todo o tipo de veículos, de aço, ferro, cobre e ouro. Havia uma zona atravancada de oficinas onde se reparavam androides que cheirava a óleo e a borracha queimada.

Cada loja tinha cores variadas e havia indicações em painéis eletrónicos que dividiam o mercado em alas, sendo cada rua dedicada a um comércio específico. A planta ordenada era fundamental para que os clientes não se perdessem perante toda aquela oferta e fossem diretos aos locais que procuravam especificamente naquela manhã. Quem queria comprar um agrado para a esposa, por exemplo, seguia para a rua dos ourives e nem percorria a viela das oficinas. Quem procurava uma peça para o seu speeder abeirava-se das bancas das lojas da especialidade e nem se aproximava do local onde se vendia roupa e calçado.

Os pregões sobrepunham-se numa vozearia irritante e era o ruído que mais o incomodava, pois era como se os vendedores lhe quisessem estourar com os tímpanos ao afirmar que os seus produtos era os melhores dos que os do parceiro da loja do lado.

Ao querer falar, descobriu que tinha a garganta contraída. Estava tão indignado e encurralado que ficara mudo de pasmo. Era absolutamente insuportável que se deixasse afetar naquele grau e achou que estava a ser terrivelmente embaraçoso portar-se assim. Ele era bem mais forte do que aquela pequena contrariedade. Onde estava o seu orgulho e a sua resistência? Aquela característica indelével que o fazia diferente dos aristocratas superficiais de Corulag? Então, Heskey pigarreou e forçou-se a dizer:

— Jotassete, para o nosso piquenique precisamos de comida e de bebida. Fiquemos apenas pela ala que apresenta o que queremos comprar.

— Afirmativo, senador.

— Este mercado é imenso… – desabafou enjoado.

— E bastante barulhento. Não concordas, senador?

— Oh, concordo, concordo. Como é que as pessoas vêm aqui todos os dias e não se cansam?

— Por necessidade, senador. Toda a gente precisa de comer, de se vestir e de se divertir. Até o senador. Só que é o Onca que trata das suas compras.

— Oh, claro… estás a dizer que sou um privilegiado. Acabas de me ofender!

— A minha intenção não era ofender-te, senador – corrigiu o androide no seu costumeiro tom monótono. – Só estou a constatar um facto. Eu lido com factos.

— Poupa-me as tuas análises. Não preciso delas, neste momento.

— O que precisas de mim, senador, para teres solicitado que viesse contigo?

— Companhia! Se eu tivesse vindo para aqui sozinho… acho que já me teria ido embora. E depois iria ouvir o Onca dizer-me que me tinha aconselhado precisamente para não vir sozinho ao mercado. Não quero receber lições do ithoriano, ele é o meu assistente, não o meu tutor!

— Nem o Onca vem ao mercado, senador.

— Eu sei, eu sei… Olha, vamos por ali.

Cingindo a capa a si, encolhendo-se para se espremer entre os transeuntes, Heskey avançou com passadas rápidas pela rua, virando depois à esquerda. Açoitado pela sensação de claustrofobia, ainda que o mercado fosse a céu aberto, apenas algumas lojas tinham telhados, outras bancas exibiam simples toldos de lona, até se tinha esquecido que o seu corpo relutava em mover-se com a sua habitual desenvoltura. Deu graças por ser um homem magro e que isso o ajudou a chegar mais depressa à loja cujo nome ele tinha fixado.

Já o androide sentiu mais dificuldade em mover-se, pois era um bloco largo e compacto de metal e circuitos, mas não o perdeu de vista. Devido a alguma cordialidade e espécie de código de conduta seguida no interior do mercado, todos se afastavam graciosamente para dar passagem à unidade J7-21. Não haviam muitos androides a circular por ali, os que se viam eram simples transportadores sem processadores de inteligência artificial, daí que fossem apenas máquinas que agiam mecanicamente e de acordo com uma rota pré-definida pelos seus donos. Ver um androide que comunicava seria ocasião rara e havia quem parasse para admirá-lo e mimá-lo, dando-lhe a primazia na circulação. Jotassete agradecia a todos com os quais se cruzava.

Heskey chamou-o com um aceno impaciente. Apontou para a loja.

— É aqui que nos vamos abastecer. Alguns pães salgados, frutas e vegetais desidratados.

— Afirmativo, senador.

— É o suficiente para um piquenique, se te estiveres a interrogar sobre a refeição ser excessivamente frugal em relação às que costumo fazer na minha casa – esclareceu ele, com alguma presunção. Segurava nas abas da capa e balançava-se sobre os calcanhares. – Trata-se de um piquenique, precisamente, e será um mero lanche para enganar o estômago. O objetivo é apreciar a viagem e a paisagem. Descansar. Fazer algo diferente da nossa rotina. Espairecer, esticar as pernas, contemplação pura e simples.

— Afirmativo, senador.

— Também é algo substancialmente diferente do que costumo fazer em casa.

— Negativo, senador. Vejo-te contemplativo nas tuas tardes de ócio, no terraço.

— Tens razão, Jotassete. Ultimamente ando mais reflexivo e calado.

Rodou a cabeça e após uma curta avaliação, engoliu a saliva da boca, enojado com o fluxo imparável de gente. Curiosamente, não sofreu qualquer encontrão ou foi incomodado por ninguém. Isso não impedia, contudo, que ele se sentisse no limite e desejasse começar a empurrar toda a gente para soltar-se da armadilha montada ao seu sentido de preservação e de privacidade.

— Ali está a loja de bebidas. Quero um bom vinho. Não irei abdicar de ter uma excelente colheita ao meu dispor na nossa pequena excursão, só porque se trata de um piquenique.

— Há elementos que são cruciais, senador.

— Precisamente! Não me importo de comer uma pequena refeição, mas importo-me que a acompanhe com água ou com um daqueles sumos para senhoras. Nem pensar! Fora de questão! Um homem define-se pela sua adega e pela qualidade do vinho que aprecia à mesa.

— Afirmativo, senador.

— E o vinho vai ajudar-me a suportar os insetos.

Eram o elemento dispensável de qualquer piquenique ou outra atividade ao ar livre, pensou com um toque de pedantismo. Os malditos bichos que se infiltravam em tudo quanto era sítio e se faziam de convidados indesejados, tornando a empresa ligeiramente penosa. Mas tudo valia a pena só para verem as gloriosas florestas de bambu e com duas taças de vinho tudo lhe iria parecer mais límpido e perfeito. O seu cérebro tinha a tendência para enaltecer o que os seus olhos viam se o palato estivesse satisfeito.

Olhou para o androide irritado.

— Vamos lá, Jotassete, do que estás à espera? De um convite? Avança! Julgo que o Onca te deixou na base de dados o que precisamos de comprar de acordo com as minhas indicações… incluindo o vinho. Sei que será um vinho excelente.

— Não posso ir à loja sozinho, senador – explicou o androide soando quase desolado.

— Por que não?

— Não tenho como carregar com os sacos ou as caixas que me forem entregues com os bens adquiridos, senador.

Heskey soprou o ar pela boca. A seguir respirou fundo, movimentou o pescoço de um lado para o outro fazendo estalar as vértebras, libertando-o de alguma tensão. Tomava coragem. Encheu-se de vigor e entrou na loja, fazendo um gesto com a mão para que o androide o seguisse. Por muito que lhe custasse admiti-lo e não o fez em voz alta, Jotassete estava com a razão. Realmente tinha a lista de compras inserida na sua base de dados, mas faltava-lhe os apêndices necessários para transportar essas mesmas compras. Lamentou não se ter lembrado de alugar uma plataforma de transporte individual – ele reparou, de soslaio, que havia quem as alugasse junto à entrada do recinto.

Bem, iria continuar a vencer aquele desafio e chegou-se ao balcão, ultrapassando um par de ithorianos que estavam na conversa, debatendo um preço qualquer. Como ele era um humano apenas o miraram com indignação e não fizeram soar outro protesto.

— Meus caros, queiram por favor servir o meu androide e aviá-lo com tudo o que ele lhes solicitar. O pagamento também será feito por ele, em meu nome. Pretendo tudo acondicionado em pequenos pacotes. Muito obrigado.

Era uma mulher que estava a atender os ithorianos e olhou-o de uma forma mais desaprovadora do que os clientes ultrapassados, mas fez aparecer um sorriso deslumbrante de simpatia ensaiada ao responder-lhe:

— Com certeza, meu senhor. Estamos ao seu serviço.

Ele ignorou-a e fingiu que contemplava as prateleiras bem organizadas do interior da loja. Tinha tudo um aspeto colorido, higiénico e agradável. Não havia nada fora do lugar, desalinhado ou descuidado. Era uma loja que correspondia aos seus padrões de exigência. Alguns estabelecimentos exibiam em painéis à porta o nome dos clientes mais recentes que tivessem algum destaque na sociedade de Corulag e o dele iria certamente aparecer nas linhas vermelhas que piscavam, após o pagamento. Era aborrecido, mas também lhe massajava o ego e entre as vantagens e as desvantagens considerou que as primeiras suplantariam certamente as segundas. Portanto, não ocupou o pensamento em demasia com aquilo.

O atendimento foi muito profissional e cordial, ele gostou disso. A mulher não foi excessivamente intrusiva e até lhe fez uma sugestão para substituir um dos produtos por outro que tinha surgido recentemente e que apresentava uma qualidade superior. Ele aceitou as indicações com indiferença e, passado poucos minutos, regressava às ruas do mercado com dois sacos, em cada mão. Não estavam pesados, mas retravam-lhe alguma sobriedade.

— Posso tentar encontrar um transportador, senador – sugeriu Jotassete.

— Deixa lá isso, vamos ao vinho e saiamos deste antro que me está a cansar.

— Afirmativo, senador. Posso ir à frente, desta vez?

— Oh, por favor… faz-me esse obséquio!

O androide rolava com bastante agilidade entre a multidão. Depois lembrou-se que este tinha vindo de Ferth, um local particularmente inundado de gente e de criaturas muito menos educadas do que ali, pertencera a um milium e movimentara-se num ambiente bastante mais hostil do que um mercado em pleno dia de negócio fervilhante. Era mais sobrevivente e adaptável do que ele. Que ideia absurda! Um androide ter mais habilidades do que um senador imperial.

Apertou as alças dos sacos.

A compra do vinho foi mais demorada, pois implicou uma prova de vários néctares em pequenas taças. Heskey gostou do exercício. Sentiu-se bajulado e era uma sensação ótima. Como se estivesse novamente em Coruscant numa daquelas receções do Imperador em que era tratado como um príncipe, parente do próprio Palpatine. Sentaram-no num sofá confortável, colocaram diante dele, numa mesa envidraçada cujo tampo emitia uma projeção holográfica de uma plantação de vinha em socalcos agradáveis, os cálices contendo diversos líquidos rubi. Ele provava e dava o seu aval. Ganhou pontos que acumulou num cartão e que lhe conferiu um desconto generoso nas garrafas que adquiriu. Fez uma encomenda de outras tantas garrafas, teceu elogios imensos à apresentação da loja, ao atendimento personalizado pelas duas jovens mulheres orientadas por um mester de cerimónias que controlava o cardápio e o orientava em relação ao vinho. Conforme o seu gosto assim os cálices iam sendo cheios. Escolheu outros dois vinhos que não estavam na sua lista de compras. Jotassete aguardou pacientemente num espaço dedicado a androides. Passou talvez mais de uma hora-padrão. Foi o melhor tempo que esteve no mercado. Até se esqueceu que estava num lugar que abominava.

Ao sair da loja para a luminosidade quente do dia estava um pouco tonto, mas tinha um sorriso a enfeitar-lhe o rosto austero e a impressão de que era mais feliz do que quando ali entrara.

Uma promoção espontânea de uma marca de comida processada arrastou um pequeno grupo que se colocou em redor de um palanque improvisado onde se estavam a dar amostras. A confusão aumentou exponencialmente e se não fosse o seu leve estado de embriaguez, Heskey ter-se-ia consumido numa irritação violenta. Assim, apenas olhou para o seu androide e disse-lhe:

— Jotassete, que outra rota podemos tomar? Parece-me que o nosso caminho está cortado por aquela gente louca por uma promoção. Isso é normal? Implorar-se por um desconto?

— Acho que será normal, senador. É também a minha primeira vez no mercado de Curamelle.

— Não ias às compras em Ferth?

— Nunca fui às compras, senador.

— Não precisavas de o fazer sendo uma máquina. Que idiotice a minha… Está a ser uma boa experiência?

— Muito diferente, senador.

— O piquenique vai ser melhor ainda, prometo.

— Tenho a certeza que sim, senador. Mesmo com os insetos.

Heskey sorriu com a observação.

Jotassete disse-lhe que o melhor seria cortarem pela via junto às oficinas. Não lhe agradou totalmente, mas também não tinha outra sugestão. Estava, para além de nauseado, baralhado em relação ao mapa do mercado, pois eram demasiados pontos de comércio e seguramente gente a mais para que ele pudesse definir o melhor sítio por onde avançar. Verificou os avisos a vermelho no painel com esse mapa, ou seja, os lugares com congestionamentos e a área das oficinas era a mais calma. Então, fez como Jotassete sugerira. Deu meia-volta e desceu para uma plataforma que o transportou, levitando, para a via das oficinas.

O mercado era composto por vários níveis. Existiam escadas e rampas que davam acesso a esses níveis, mas também plataformas móveis que levavam os clientes de um lado para o outro, em movimento permanente.

Junto às oficinas estava realmente bastante mais calmo. O único senão era que ficava longe da sua saída onde podiam chamar o transportador que Onca tinha preparado para eles. Os sacos, com as garrafas incluídas, continuavam a não lhe pesar nos braços e Heskey até pensou que devia alinhar pela opinião androide. A experiência no mercado estava a ser diferente e num registo mais arrojado, boa.

Nisto, escutaram-se alguns gritos na retaguarda. O seu instinto fê-lo parar e encostar-se à fachada de uma das lojas. O androide girou a sua peça cimeira, de molde a que os seus sensores se voltassem para os berros. Um calafrio mordeu-lhe a pele e ele sentiu-a arrepiar-se, o peso dos sacos a intensificar-se.

Viu uma criatura peluda correr esbaforida. Um chicote elétrico enleou-se nos seus tornozelos e esta caiu mesmo à sua frente, com um urro e um gemido dolorido. Heskey fez um esgar, dentes cerrados.

Quando a criatura o encarou com os seus olhos amarelos que lançavam chispas de medo, o calafrio intensificou-se e ele precisou de crispar as mãos para não deixar cair os sacos e quebrar o vidro da garrafa que guardava o seu vinho precioso para o piquenique que preparava.

— Eu conheço-te…

— Senador Heskey, de Corulag – murmurou a criatura.

Identificou a sua espécie. Era um gotal e recentemente Heskey tinha-se cruzado com um deles, num certo cargueiro operado por foras-de-lei liderados por uma mulher atraente e irascível, de olhos ígneos e pálida como uma lua estéril.

— Lishma?...

O mesmo gotal da tripulação do cargueiro de Ambarine. A criatura não pôde responder ao chamamento. Foi manietada por dois oficiais, que caíram em cima dela tão assanhados como se lidassem com o mais terrível dos assassinos. O gotal abafou mais gemidos, mas não protestou e depois de devidamente amarrado, as mãos atrás das costas e os braços imobilizados por uma grossa fita de tecido metálico, usada pela polícia local para submeter criminosos apanhados em flagrante delito, foi arrastada para um veículo que esperava no exterior do mercado. Uma porta lateral tinha-se aberto e mostrava o dispositivo policial que supervisionava a detenção. Havia até carabinas laser à vista.

Um dos oficiais voltou-se para ele e fez-lhe uma continência.

— Peço-vos perdão, senador, por teres presenciado este infeliz incidente. Trata-se de um ladrão. A ocorrência será devidamente tratada pela justiça de Curamelle. Se houver alguma reparação, farei entrada do seu requerimento junto do oficial de justiça que tratará do caso.

— Um… ladrão?

Era incompreensível que se tivesse admirado. Não era aquele gotal um pirata espacial? Então não havia qualquer dúvida de que aquela prisão seria justa. O gotal metera-se onde não devia e o seu descuido tivera como consequência ser apanhado. Mas houve um pressentimento de que não seria assim tão simples.

E qual a razão desse pressentimento? O calafrio persistia, a pele sensível e fria, como se fosse uma febre a irromper.

O oficial continuava a encará-lo.

— Ah… Sim, não será necessária reparação. Não apresentarei qualquer requerimento. Tudo foi muito rápido e não fui prejudicado.

— Tem a certeza, senador?

— A certeza absoluta, meu jovem. Bom… bom trabalho.

— Obrigado, senador. – Entregou-lhe um cartão transparente. – No caso de mudar de ideias, tem doze horas-padrão para apresentar o seu requerimento.

— Claro. Conheço o procedimento. Obrigado.

O oficial despediu-se com segunda continência e seguiu o seu colega que escoltava o gotal prisioneiro.

— Jotassete?

— Sim, senador?

— Quero saber o que se passa com o gotal. Todos os detalhes… o que estava ele a fazer e por que motivo foi preso.

— Onca poderá conseguir essas informações, senador.

— Então, o melhor será regressarmos imediatamente a casa.

Heskey andou apressado até à próxima saída. Havia um burburinho causado pelas conversas entre aqueles que presenciaram a prisão do gotal. Ele ignorou tudo isso, metido com os seus próprios pensamentos. Na verdade, não tinha qualquer ideia coerente, continuava a ser somente um pressentimento, bastante ténue.

— Isso quer dizer que o nosso piquenique será adiado, senador?

— Claro que não! – exclamou Heskey. – Não sejas ridículo.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Um caso a resolver.



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