Solta o som escrita por Cínthia Zagatto


Capítulo 3
Capítulo 2


Notas iniciais do capítulo

Queridíssimos de RESENDE - RJ, chegando para lembrar que a partir de quinta-feira eu estarei aí para a FLIR (de 6 a 9). Vocês podem me procurar no estande da Editora Fora da Caixa para pegar marca-páginas de "Ele quer dançar" e "Solta o som". ♥

Bem-vindos, leitores novos. Obrigada pelos comentários, as estrelinhas. Aos antigos, por continuarem aqui comigo.

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Eram exatas seis horas quando a porta se abriu e Felipe entrou sem aviso. Talvez por ter crescido com um par daqueles no quarto ao lado, Caíque não chegou a se incomodar com a invasão. Também não precisaria de algumas semanas para se acostumar com a ideia de que não morariam a dois, mas muitas vezes a três. Para sua sorte, eles eram muito mais agradáveis do que seus próprios irmãos gêmeos.

— Toma sua cueca horrorosa. — O recém-chegado jogou no outro, que terminava de arrumar o cabelo em frente ao espelho de corpo inteiro dentro da porta do guarda-roupa.

Com um riso descomplicado, o irmão tirou a peça de roupa que havia caído em seu ombro e a jogou sobre o colchão.

— Se é tão horrorosa, não sei o que tava fazendo nas suas coisas.

Sentado em sua própria cama, Caíque olhava de um para outro e se limitava a prestar atenção na discussão.

— Eu achei jogada na lavanderia e trouxe pra você, mal-agradecido. Devia ter deixado lá. Uma bunda branca a menos na faculdade.

— Tá certo. Talvez eu devesse comprar um bando de cuecas pretas e confundir com as do meu pai velho.

Com um safanão abrutalhado, ele quase beijou o espelho. Caíque viu Felipe se aproximar de sua cama e sentar ao seu lado. Quando percebeu, estava no meio da discussão, com o menino insistindo por uma opinião sua:

— Ele jura por Deus que cuecas brancas são sexy.

Caíque pressionou os lábios quando notou que nunca havia pensado nisso. Em seu próprio armário, havia uma coleção de cuecas pretas, como o colega de quarto havia descrito.

— Eu não sei. Talvez? — arriscou, com pouquíssima vontade de tomar partido naquela briga sem fundamento.

— Bah, não! — O garoto jogou as mãos para o alto.

Do espelho, o irmão apontou o pente em sua direção:

— Bah, me deve cinco reais.

Caíque juntou as sobrancelhas quando viu os olhos verdes do colega ao seu lado rolarem. O outro continuava:

— Foi ideia sua.

— Vocês bateram uma aposta pra perderem o sotaque? — confirmou apenas por formalidade, porque já havia entendido o que eles estavam fazendo.

— Vai ser mais fácil assim — Felipe garantiu enquanto se levantava e ia até o irmão.

— Mais fácil pra quê?

— Pra passar pelo trote.

A resposta o fez franzir a testa mais uma vez. Não estava um mínimo preocupado com o trote, então não chegou a entender o que o sotaque poderia ter a ver. Deixou para lá mais uma vez, com os ombros erguidos. E Felipe retomou o assunto. Às costas do irmão, o olhava pelo espelho:

— Mas a gente tava falando sobre a cueca branca.

— Felipe, que inferno! — O outro jogou as mãos para cima e guardou o spray fixador no armário. — Eu tenho certeza de que não é por causa da minha cueca que todos os caras que eu curto gostam de você! Dá um tempo.

— Ai, errou — o irmão concluiu com um suspiro, que indicava que aquela conversa havia acabado de perder a graça. Caminhou de volta até Caíque na cama e ergueu a mão para puxá-lo para fora do quarto. — Vamos, que a nuvem cinza tá chegando.

O fim do horário de verão fazia com que a noite já estivesse avançada quando finalmente saíram para o pátio. O palco, que havia sido tomado por diferentes bandas ao longo da tarde, ainda estava ocupado. Caíque vinha escutando a música distante já havia alguns minutos, desde que o vocalista passara de uma garota para uma voz que lhe soava familiar.

Foi apenas quando bateu os olhos no garoto que descobriu o motivo. Reconheceu a pele negra de longe, escura de modo que chegava a brilhar sob a iluminação artificial. Ou era ele quem brilhava sozinho, não soube dizer. Rômulo. Ou Remo, como havia se apresentado durante sua audição para ganhar a bolsa de estudos que lhe permitira estar ali hoje.

Quando os resultados saíram no site da faculdade, ele não fora o único a encontrá-lo no Facebook, mas o único a lhe dar as boas-vindas. Não haviam conversado muito, pois o assunto morria logo, mas Caíque vinha sentindo uma falta de ar desconhecida toda vez que recebia uma nova mensagem.

“Tudo pronto pra vir?”, havia sido a última na tarde anterior. Coisa boba, mas que o fez parar ali mesmo assim que alcançou o gramado. Como se um passo a mais fosse colocá-lo às vistas do garoto e, uma vez no radar dele, não saberia como se comportar.

Não foi preciso. Do outro lado do extenso jardim, o garoto em cima do palco apontou em sua direção. E Caíque chegou a olhar para trás, mas havia apenas eles três ali. Colocou a mão na bandana vermelha em sua testa, certo de que havia sido ela a dedurá-lo. Depois acenou de volta, enquanto escutava um coro que dizia “hmmmm” ao seu lado.

— Mas já? — um perguntava.

— Ele já! — o outro respondia.

Caíque se virou para resmungar na direção dos gêmeos, mas novamente não soube quem era quem.

— Já chega, vocês precisam ter alguma diferença.

Segurou-os pelas bochechas, como as crianças que pareciam, um em cada mão. E, como se eles tivessem uma maneira de conversar por pensamentos, passaram a fazer caretas para não o deixar observar direito.

— Parem! — reclamou, com ambos ainda dentro de suas mãos. Eles não tentavam sair, mas nitidamente se divertiam com a ideia de atrapalhá-lo.

Lembrou que Philipe usava uma camisa preta com as costuras vermelhas quando voltara do banho. O irmão estava com uma igualmente preta, mas livre de detalhes. Logo não teve mais dúvidas ao olhá-los, mas o problema era que eles teriam que ficar para sempre com aquelas mesmas roupas para reconhecê-los de longe.

Então, até que ficasse claro para ele, como já era natural com seus irmãos muito idênticos, precisava de uma marca que os diferenciasse. Ficava difícil encontrá-la com eles entortando o rosto daquele jeito, mas imaginou ter enxergado algo mesmo sob a parca luz de um poste.

— Isso é um furo de piercing? — perguntou ao aproximar o rosto da boca de um deles. Havia um pontinho discreto sob o lábio inferior, à direita. — Você também tem? — perguntou logo, e então eles pararam de se mover. Assim foi fácil descobrir que o do outro era no lado esquerdo.

Eles saíram de sua mão ao mesmo tempo, e Philipe deixou um soco no braço do irmão.

— Falei pra gente colocar no mesmo lado, idiota.

Caíque olhou novamente as roupas para decorar. Philipe estava de vermelho e era o garoto com o furo no lado direito da boca. Se tentasse decorar o do outro também, acabaria fazendo confusão. Então ficou apenas com isso: Philipe tinha a marca que podia ser tocada com sua mão direita. Ou de repente não saberia se aquela direita era a sua, a dele, a do irmão ou o quê.

— Eu tô vendo umas bebidas ali. O que vocês querem? — Felipe perguntou com a mão no braço, onde o irmão havia acertado.

— Cerveja se tiver — o outro respondeu, e Caíque assentiu, embora não gostasse muito.

— Eu vou... — Tentou disfarçar ao apontar para mais perto do palco, mas escutou mais risadas.

— Isso, vamos mais pra perto do palco, garanhão. — Philipe o abraçou por cima dos ombros, com um esforço descomunal para isso, a ponto de ficar na ponta dos pés, e o arrastou para lá.

Precisaram apenas se aproximar para notar que tanto as pessoas quanto a grama do lugar estavam tingidas de pó colorido. Alguns dos garotos estavam especialmente imundos com as cores se misturando com suor. Embora Caíque não soubesse o que era, achou curioso e divertido. E Rômulo anunciou que tocariam a última música antes de passar os instrumentos para a próxima banda.

Lá pela metade do hino de George Michael, descobriu o que havia acontecido com aquelas pessoas todas. Elas se abraçavam, excessivamente embriagadas para o início da noite, erguiam os braços e cantavam de modo que ele nunca havia visto. Uma energia compartilhada da qual não queria se livrar tão cedo. Freedom! Freedom! E então o pó colorido voou para cima, em uma nuvem de azul, amarelo, rosa, laranja, roxo, verde.

Caíque ainda não sentia que fazia parte daquilo, mas só de estar ali era um grande avanço em comparação com a vida no interior, onde não fizera parte de nada. Balançou o corpo com muita timidez e cantou em silêncio ao observar os arredores, enquanto o colega de quarto o acompanhava.

E embora quisesse deixar toda aquela infância para trás, a adolescência confusa e muitas vezes depressiva, havia alguns detalhes que o acompanhariam para sempre. Por exemplo, aquela era uma das música do pai de Danilo. Da coleção de vinis que ele tinha em casa e que, quando eram melhores amigos, passavam os finais de semana inteiros escutando. Isso antes de os meninos decidirem que ele era gay sem que ele próprio houvesse entendido ainda, e que isso era algo ruim, e se afastarem dele, e ele fazer amizade com as meninas da escola.

Como um fantasma que o acompanharia pelo resto da vida, seus olhos cruzaram com os de Danilo do outro lado da multidão escandalosa. Ele também cantava em silêncio, em meio ao seu próprio grupo de novos amigos. Caíque assentiu para cumprimentá-lo, de modo muito mais civilizado do que todas as últimas vezes. Talvez porque os dois meses de férias houvessem sido o bastante, talvez porque o antigo amigo o houvesse ajudado a conseguir sua bolsa de estudos, ou talvez apenas porque o ensino médio houvesse ficado para trás. E Danilo respondeu da mesma forma.

Tentou ignorar o fato de que Rômulo havia descido do palco quando aconteceu a troca da banda. Não havia som para distraí-lo, ou bebida em que se afundar, porque Felipe parecia ter se perdido no caminho, e também não queria demonstrar para Philipe que estava ansioso. Em sua cabeça, queria muito que ele viesse falar consigo, mas o que estava prevendo era uma grande decepção enquanto ele passaria reto, como se não existisse, para se juntar aos verdadeiros amigos.

Escutou um gemido enquanto Philipe desviava o olhar, tirando o celular do bolso e se afundando nele para disfarçar a própria existência.

— Ain, ele tá vindo aqui.

Caíque soprou um sinal de que era para ele ficar em silêncio, embora não fosse fazer a menor diferença, porque o amigo estava cor-de-rosa de tão atentado. E por fim sentiu um toque na base de suas costas.


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