Solta o som escrita por Cínthia Zagatto


Capítulo 2
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Sejam bem-vindos ao primeiro capítulo, meus amores. Eu espero que vocês gostem tanto dos novos personagens quanto eu, porque tem muitos deles pra vocês conhecerem.
Aproveitando o ensejo: tem alguém de RESENDE (RJ) por aí? Dos dias 6 a 9 de junho (daqui a três semanas) eu estarei na FLIR. Volto com a lembrança disso no capítulo 2, mas já fica o aviso. Venham me ver! Estarei com todos os meus livros e marca-páginas das duas histórias do Caíque pra esperar vocês.



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Não era a primeira vez que Caíque tinha toda a sua vida dentro de uma porção de sacolas, tampouco a primeira em que a avó o ajudava a carregá-las para seu novo quarto. Contudo, podia dizer que era a primeira em que estavam rindo enquanto tentavam arrastá-las pelo chão. As alças caindo de seus ombros para os cotovelos, e a avó lutando para devolvê-las no apoio certo, enquanto puxava as malas com rodinhas, que davam menos trabalho.

Corredor adentro, o alojamento do campus era muito diferente do que havia visto nas fotos disponíveis no site da faculdade. De fato, a estrutura estava em seu devido lugar, mas decerto jamais seria possível que uma imagem refletisse o que realmente era. As portas decoradas com piadas artísticas ou manifestações de qualquer tipo, os garotos saindo apressados de seus dormitórios, a música alta os chamando para o grande gramado ao lado de fora.

É ele, eu tô dizendo, um sussurro alto se destacava em meio à euforia matutina. O garoto do teatro, escutou o complemento enquanto encontrava o quarto de número 022 ainda no andar térreo, quase no fim do corredor. Não mesmo. Agora estava mais atento à conversa, que devia ser discreta enquanto se afastava às suas costas, mas passava longe disso. Tô te dizendo, olha o treco na cabeça dele. Enquanto apalpava os bolsos, distraído, a avó enfiou os dedos em seu bolso da frente e tirou de lá a chave que havia recebido na secretaria. Não sei o talento, mas, olha, as calças...

E então era tarde demais para torcer para que ela não tivesse escutado, porque, quando os olhos se encontraram, vó Dirce estava segurando uma risada, enquanto ele tentava evitar que as bochechas enrubescessem. Foi ela quem destrancou a porta, enquanto ele resmungava um pedido para que não falassem sobre isso. Talvez tivesse sido só um resmungo mesmo, do tipo incompreensível, mas fizera muito sentido para ele.

O quarto era pintado de cor creme e a mobília era branca, do tipo que dava uma impressão bastante ruim de hospital. Era a primeira coisa em todo o campus que não parecia ter muita graça, mas  Caíque abafou o pensamento com outro, o de que logo o lado que era seu estaria coberto por suas coisas do interior, reorganizadas de uma maneira mais prática e madura, quem sabe. E quem sabe também conseguisse mantê-las organizadas.

— Tá entregue — a avó comentou, como se fosse uma mercadoria despachada para a capital do estado. Quando olhou para ela, soube que era apenas uma brincadeira para aliviar as lágrimas que tinha nos olhos. — Quer que a vó fique pra ajudar a arrumar? A gente faz rapidinho.

— Não, vó, eu me viro. Não quero que pegue a estrada sozinha muito tarde.

— São onze da manhã, Caíque.

— Mas logo são quatro da tarde. — Empurrou a última sacola para dentro e se virou para ela outra vez. — Eu te levo até o estacionamento e quero que me avise quando chegar. Já basta ter me trazido até aqui, eu podia ter vindo de ônibus.

— Claro que não podia — e o tom que ela usou o impediu de tentar qualquer contradição. Rendeu-se a um abraço, que trouxe lágrimas aos seus olhos também, e apertou a cintura da avó como se ainda tivesse tamanho para se encolher debaixo do queixo dela, mas se contentou em deitar o rosto em seu ombro. — A vó tá tão orgulhosa de você.

— Obrigado, vó. Obrigado por tudo. Eu vou lá te ver o tempo todo, te prometo.

— Ah, que besteira. Tem que aproveitar pra estudar.

— Mas eu levo minhas tarefas pra lá — garantiu, por mais que desconfiasse de que não fosse ter muito disso de tarefas na faculdade. E ela também parecia pensar o mesmo, porque riu e chacoalhou a cabeça.

— Então tá bom. Mas não precisa me levar pro estacionamento, eu sei o caminho.

— Mas a senhora me trouxe até aqui, é só...

— Não. Não precisa, fica aqui arrumando seu quarto.

E ele parou de insistir quando notou que a despedida apressada não era para livrá-lo da obrigação de acompanhá-la, mas para que ela lidasse melhor com o fato de deixá-lo a bons oitenta quilômetros de casa, após ter sido sua mãe pelos últimos três anos. Ou provavelmente dezoito.

— Então a senhora me avisa quando chegar em casa. Eu vou contar uma hora e meia, pra ir bem devagar. Mas vou ficar preocupado depois.

— A vó avisa, e vai devagar. Se cuida, me ouviu? E liga pra vó se precisar de qualquer coisa. Ouviu, Caíque? — ela insistia. — Vou ficar muito brava se você estiver precisando. Vou ficar olhando a sua conta, me ouviu?

— Vó, eu não vou precisar de nada.

Mas não teve tempo de fazê-la acreditar. Com o rosto entre as mãos de vó Dirce, ficou para trás após mais um beijo forte na bochecha. E tratou de engolir o nó que se formava no início da garganta.

Precisou de alguns minutos sentado na ponta da cama para voltar a respirar direito. Uma hora e meia de viagem, dizia a si mesmo. Uma hora e meia de viagem e estaria em casa sempre que quisesse. Não havia nada além dela que o faria ter vontade de voltar, mas, ao contrário de quando estava lá, vivendo no quarto ao lado e desejando fugir daquele lugar, agora sabia que ela era um excelente único motivo.

Escolheu o lado direito da porta para ser o seu e começou por abrir a janela, depois a mala maior. O armário estava limpo e tinha poucos cabides disponíveis. Encheu primeiro a gaveta superior, onde deixava as meias e as cuecas. Depois desceu para a de camisetas, a de shorts e pijamas, e por última a de roupas de cama. Apertou as poucas calças onde pôde pendurá-las e passou a organizar os perfumes, desodorantes e a coleção de bandanas numa porta menor.

Nada ainda tinha cara de seu, com as outras sacolas todas cheias, quando um som curioso chamou sua atenção por detrás da porta. Direita, esquerda, direita, esquerda, direita, esquerda, as vozes sincronizadas se aproximavam. Talvez até parecessem uma só para um ouvinte menos treinado, ou menos atento.

Ignorou a curiosidade de abri-la para espiar, mas isso acabou mesmo não sendo preciso. Tá aberta! Um toque na maçaneta e ela estava escancarada à sua frente, com um garoto baixinho entrando com os braços para trás. E então a ponta de uma mala, que era um exagero de grande, atravessada entre ele e, bem, outro dele.

— Ai, caramba, tem gente.

O da frente parou, mas o de trás não. Trombou com o quadril na mala que segurava, e isso a impulsionou para frente. Como resultado, foi de encontro à bunda do outro.

— Ai, Felipe! — Com um pulo assustado pela batida, ele soltou o puxador, que caiu com um estrondo no piso frio. Sem muita delicadeza, o outro fez o mesmo com a extremidade das rodinhas. E, quando elas bateram no chão, uma se soltou do suporte e rolou até o meio do quarto.

— Pronto, terminou de quebrar — ele comentou para o gêmeo.

Caíque ainda estava com a cabeça bagunçada pela velocidade em que aquela entrada havia acontecido, mas conseguiu assoprar um riso confuso quando colocou os pensamentos no lugar.

— Você deve ser o Caíque — o da frente comentou, com alguns passos em sua direção e uma mão esticada.

— Oi, isso. — Apertou a mão dele, mas esperou que o garoto de trás viesse cumprimentá-lo também. Porque, pelo que havia entendido, ele era Philipe, seu colega de quarto.

— Eu sou o Philipe — o comentário do menino que apertava sua mão lhe chamou a atenção outra vez.

— Pensei que você tinha chamado ele de Philipe. — Olhou novamente entre um e outro. Eles eram tão iguais, que talvez tivesse mesmo confundido de quem havia vindo a reclamação sobre a batida.

— Ah, não, eu chamei ele de Felipe.

Caíque se sentiu piscar algumas vezes, como se as pálpebras pesassem e fosse possível marcar o compasso em que elas se movimentavam. De fato, enquanto sua cabeça ia de toda aquela informação a um branco intenso e repentino, o que havia de mais certo ali era o piscar de seus olhos.

— Espera — pediu uma vez, enquanto chacoalhava a cabeça.

Os dois estavam rindo, idênticos. Os olhos verdes estreitos, mas não surpresos, apenas um tanto infantis e malcriados. Por um instante, imaginou que fosse uma brincadeira para deixá-lo confuso. Estava prestes a resmungar quando o da frente apontou para trás.

— Eu sou o Phil e ele é o Lipe, pros menos íntimos.

— Justo, eu posso ser menos íntimo — comentou em silêncio, enquanto assentia, e conseguiu uma risada alta e sincronizada como reação. Era uma magia tão obscura que começava a deixá-lo com dor de cabeça.

— Eu vou arrumar o meu quarto, volto às seis pra festa — o de trás anunciou.

O menino mais próximo assentiu com a cabeça e se virou na direção da porta, onde o irmão agora acenava e lhe dirigia a palavra pela primeira vez:

— Prazer em te conhecer, Caíque.

Sobrou a si mesmo assentir em silêncio. Quis arriscar um “o prazer é meu, seja lá qual for seu nome”, mas já não lembrava se ele era Phil ou Lipe. Foi conseguir desfazer o nó da cabeça apenas quando a porta fechou, mas já era tarde. Se seu colega de quarto chamava Philipe, segundo o e-mail que havia recebido, então ele deveria ser o Phil. Pela lógica. Se é que havia alguma lógica.

— Porcaria de companhia aérea — o que havia ficado praguejou, enquanto andava até a rodinha da mala no meio do quarto e a pegava para jogar no lixo sob uma das escrivaninhas.

Caíque não chegou a perguntar o que havia acontecido, porque agora podia imaginar. Andou até a primeira de suas sacolas e a virou sobre a cama, para decidir onde colocar cada um de seus pertences mais especiais: o mp3 velho que ainda funcionava, o notebook velho que também ainda funcionava, seu pote de canetas e os cadernos que havia comprado especialmente para a faculdade.

De repente notou que seu canto do quarto não teria cara de nada, mesmo após sua mudança estar completa. Porque seu quarto de criança não tinha cara de nada, nem o de adolescente, porque ele não costumava ter muitas coisas. Com exceção à estante cheia de DVDs, a verdade era que sua infância física havia sido um grande bolo de nada. Tinha existido uma paixão atrás da tela dos computadores – e em todos os outros lugares que havia pisado, fosse dita a verdade –, mas o impedimento de mostrar às pessoas quem realmente era não o deixara acumular muito. O fichário com as imagens de seus filmes preferidos coladas manualmente havia ficado para trás, anos antes. Talvez fosse hora de começar a colecionar algumas coisas.

— De onde vocês são? — questionou apenas.

— De Porto Alegre.

Assentiu em silêncio e estava pronto para dizer que ele próprio era de pertinho, do interior, quando notou que a falta de interesse de Philipe com relação a isso era apenas uma brecha para que aquilo acontecesse. Aquela confusão que lhe veio à cabeça, assim que juntou a informação recebida com o pensamento de que nunca teria imaginado que eles fossem do Sul. Virou-se sobre o ombro e estreitou os olhos, então notou que ele estava sorrindo.

— Vocês são mentirosos compulsivos ou o quê?

Uma gargalhada bem alta, e lá estava em seguida. O sotaque que ainda não havia escutado. Que em outro momento teria lhe arrancado um “aun”, mas não agora, nem por como era propositalmente exagerado.

— Bah. Foram meses pra perder, ok?


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