Uma Canção de Neus Artells escrita por Braunjakga


Capítulo 6
Aquele que manda




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I

 

Terrassa, Catalunya

1 de Abril de 1704

 

Era uma tarde ensolarada de primavera, céu azul, sem nuvens, com um vento fresco vindo do norte.

A grama estava verdinha e as árvores já estavam se enchendo de flores.

Estavam na fazenda do Velho Oriol.

O velho Oriol Junqueras era um senhor velhinho, moreno, descendente de índios, simpático e muito sorridente, com a parte de cima da cabeça careca.

Era veterano de guerra, a Guerra dos Segadores, um conflito que aconteceu há sessenta anos, na Catalunya.

Por ter sido militar, o Velho Oriol se tornou amigo da família Bernat.

Os Bernat eram uma família que há anos tinha um membro ou no exército ou nas Américas.

O amigo do Velho Oriol Junqueras naquela guerra, Artur Bernat, teve um filho Jordi Bernat que teve um filho, Amadeu Bernat que continuou a carreira militar até atingir a patente de Coronel, se licenciar do exército e ir morar em Madrid..

Os Bernat tinha uma cabeleira castanha e olhos muito azuis claros como o céu, mas Amadeu não tinha barba e seu filho, Gerard Bernat, herdou os cabelos que lhe faltvam.

O menino era muito cabeludo e já começava a ter pelos nos braços mais volumosos que ele, pese a ter só dez anos. Era chamado de “meu pequeno ursinho” pelo pai, mas Gerard não gostava do apelido.

Aproveitando o clima bom, Amadeu levou o filho Gerard para dar um passeio em Terrassa, terra natal da família Bernat e visitar o leal amigo da família de tantas gerações.

Foi debaixo de uma árvore, sentado em cadeiras de balanço, que os três conversaram.

— Gerard, o que você quer ser quando você crescer?

— Eu quero ser um soldado que nem o papai e proteger todo mundo!

Gerard falou sem hesitar, animado. O pai sorriu e o velho Oriol perguntou mais uma vez:

— Ser soldado é uma coisa muito difícil, né? Ter que ficar longe da família, numa terra distante como as Filipinas ou as américas; você já pensou nisso, Gerard?

— Eu sei disso, o papai já ficou um ano no Peru e mandava carta direto pra gente! Eu mal esperava ele voltar! Ele falou que lutou com uns índios e tudo mais…

— E se ele não voltasse, Gerard?

O garoto se calou. Amadeu perguntou com os olhos para Oriol se aquilo não era avançado demais para a idade dele, mas Oriol retrucou com um “tá tudo bem…”.

— Eu ia ficar triste… A mamãe ia receber uma medalha de El Rey e do General Urrutia dizendo que ele lutou como um herói…   

— Você vê, Amadeu, como o rapaz é esperto!

— Eu preferiria que ele ficasse longe disso!

— Mas ele tem que saber, Homem!

Gerard olhou para o pai silencioso e confuso:

— Saber o que, papai?

Oriol e Amadeu se olharam para ver quem falava primeiro. Amadeu se adiantou:

— Filho, me escuta. Ser soldado é bom, você faz coisas legais, mas tem que tomar decisões difíceis; você sabe que a Catalunya e Valência declararam guerra contra Madrid, não sabe?

— Sei…

— E se você tivesse que lutar contra seus amigos, filho? Pegar em armas contra eles?

Gerard ficou calado, engoliu em seco:

— Seria o mesmo que atirar nos bonecos da prima?

— Não filho. Quando a gente atira em alguém, não dá colocar o enchimento de novo e costurar de volta…

— Então, não tem como mesmo?

Gerard estava com os olhos marejados, quase querendo chorar. Oriol interveio:

— Gerard, meu pequeno ursinho…

— Não me chama assim!

Oriol sorriu:

— Gerard, não fica assim; você sempre vai ter opção do que fazer, você sempre vai dar opção aos outros, agora, o que eles vão decidir, daí já não é mais com você…

Gerard se levantou da cadeira , bateu o pó das calças e olhou, quase chorando, para o pai e para o velho Oriol:

— Eu nunca ia atirar no Santi, no Pere, nem no Pau, nem na Neus! Nunca!

— Filho, se ele apontar uma arma pra você, você vai atirar sim! Ou é você ou é eles!

Gerard berrou um sonoro “não” e saiu correndo colina abaixo.



Parte II

La Pobla de Segur, Catalunya

7 de agosto de 1714

 

La Pobla de Segur era um pequeno vilarejo nas margens do Rio Noguera Pallaresa que rapidamente virou um inferno de fogo e sangue.

Uma fumaça densa subia da cidade e o rio, antes azul, agora mostrava uma cor vermelho alaranjada.

Muitos corpos de Miquelets flutuavam no rio também, roxos e inchados como as fardas azuis que usavam.

Gerard olhava tudo aquilo com espanto dentro de si:

— Enric; é incrível como a gente não pode te deixar solto por um instante e é isso que você me faz! – Disse, indignado.

Atrás de Gerard, um Miquelet gritou:

— Maleit, Espanyol! Pagarás amb la seva vida! (maldito espanhol! Vai pagar com a vida!)

— No sóc el únic espanyol això! Vosté és molt espanyol també! (Não sou o único espanhol por aqui! Você também é muito espanhol!)

O miquelet não quis ouvir Gerard.

Avançou loucamente com a baioneta do fuzil em mãos contra ele.

Gerard desviou-se do golpe e, com uma adaga que tinha em mãos, rasgou a barriga do Miquelet.

O soldado rebelde caiu na beira do rio.

O rio ganhou tons de vermelho, mas escuro e quente, saído das tripas do Miquelet.

Assim que caiu, o chapéu preto de três abas caiu também, revelando um coque preso debaixo do chapéu..

Era uma mulher.

Sim, uma mulher, logo quando ele pensou que fosse um homem quando a estava enfiando a adaga na barriga dela.

Sentiu um profundo enjoo e náuseas de si quando o coque escondido no chapéu preto de três abas se desfez no solo revelando o sexo do soldado. A farda azul começava a ficar vermelha também.

Se por um lado Gerard se arrependeu, por outro lado, ouvia na cabeça a voz de seu pai que dizia que seria o seu sangue a formar parte daquela paleta sinistra de cores do rio Noguera pallaresa, seria o seu sangue a estar tingindo a armadura vermelho sangue que usava se não tivesse se defendido com aquele golpe de adaga na barriga dela.

“Santi, você vai pagar por cada mulher que você fez vestir de homem só pra lutar nessa sua guerra suja!” – Pensou.

Saíndo das margens do rio, debaixo de uma laranjeira, Gerard viu o corpo de três crianças. Três crianças, um menino e duas meninas, todos mortos, ainda com os brinquedos e uma  laranja na na mão.

“Enric! Realmente eu não posso te deixar um minuto sozinho aqui e você já vai fazendo merda!”

Ele também foi criança um dia e ficou muito indignado.

Mas, de certa forma, agora entendia o que o pai lhe disse há dez anos, quando precisaria pegar em armas contra seus amigos de infância.

Pensando naquilo, Gerard lembrou-se de quando um dia, há dez anos, brincou debaixo de uma laranjeira como aquela em Terrassa.

Estavam ele, Pere, Santi, Neus, Pau e o resto da criançada do local, todos muito pequenos ainda para compreender toda a violência que agora causavam.

Uma menina de nome Dolors que sempre os acompanhava queria uma laranja, mas era tão alto que ela não conseguiu alcançar.

Ela pediu a ajuda de Santi.

na época, Santi era um menino franzino que gostava mais de minhocas e insetos do que brincar de correr, construir coisas ou nadar como os outros rapazes da sua idade.

Só pediu a ajuda dele porque ele era o menino que estava mais perto dela naquele momento.

Gerard se lembra quando Santi pegou um graveto e se esforçou, esforçou e se esforçou mas não consegui nada.

Ele, Gerard, viu a cena toda e, num só golpe de pedra, acertou a laranja e deu para a menina.

A menina agradeceu, mas Santi o olhou com muita raiva:

— Era de se esperar do meu rival!

Santi quebrou o graveto com tudo e jogou no chão.

Gerard nunca viu Santi como um rival, os dois eram tão diferentes.

Mas Santi via, desde aquela época, só não sabia agora.

Depois daquilo, Santi foi correndo chorar no colo de Pere. Pere, em seguida , foi tirar satisfações com ele:

— Hey, Pere, Se você quiser ser babá desse bebê chorão o problema é seu! Agora se você quiser me enfrentar como homem, eu tou aqui, tá? Eu quebro a cara dos dois com um golpe só!

Naquela época, ele foi arrogante. Arrogante como um menino que não sabia o que dizia.

Todas as meninas do local viram o desafio que Gerard fez contra Pere e Santi. Elas zombaram de Santi, chamaram-no de chorão e Pere de babá.

Gerard Nunca mais voltou a ver os dois depois daquilo.

O pai de Santi era comerciante em Barcelona e levou o filho em viagens pelo mediterrâneo. Pere foi para Cuba, nas Américas, destino de muitos catalães no novo mundo.

Só Neus e Pau mantiveram o contato com ele durante esse tempo.

— Pere… eu peguei em armas contra meu amigo de infância… Você nunca esteve tão certo, meu pai…

O que era Pere Para ele? Se perguntou.

— Pere virou meu inimigo, nada mais que meu inimigo, só a Neus e o Pau que falavam com ele, eu não!

Mais foi sempre assim?

— Eu cheguei a me despedir do Pere antes de ir pra Madrid com o meu pai, eu pedi desculpas pra ele, mas ele não aceitou; ficou mudo. Só aceitaria as desculpas se eu pedisse pro Santi também.

Nunca teve a chance de falar com Santi. Ele já tinha partido para Veneza com o pai.

As dúvidas voltaram a ocupar sua mente novamente:

— Quem é meu inimigo? Quem é meu amigo? Será que todo mundo que eu conheci em Terrassa tá virando meu inimigo?

Enquanto pensava, ouviu gritos de mulheres vindos de trás da árvore onde as crianças estavam mortas.

Correu e viu dez soldados da Ordem arrastado as mulheres para o meio do mato, atrás das árvores e dos rochedos.

O pior de tudo era que não eram todos homens. Haviam três soldados da Ordem que eram mulheres e participavam daquela barbaridade.

Enric, o homem loiro de olhos azuis que o acompanhava olhava tudo dando risadas, sem interferir.

— Essa deixa por minha conta! – Gritou.

Uma raiva que não soube de onde veio tomou conta de Gerard.

Ele tinha namorada, mãe, primas, tias e irmãs como aquelas mulheres.

Mesmo que muitas delas também fossem namoradas, mães, primas, tias e irmãs dos soldados que ele matou naquela batalha, ele não podia consentir naquilo:

— Hey, Enric, o que você tá fazendo?

Enric fez cara de que não entendeu. Só sorriu.

— Oras, pegando meu espólio de guerra!

— Que pegando espólio de guerra, o quê! Solta eles!

— Que soltar o que? Deixa os caras se divertirem!

— Se divertir? Se divertir com sangue catalão? Com sangue dos seus irmãos?

— Eles são meus irmãos, Gerard? É isso que você pensa? É meu irmão quem mata, atira nas nossas tropas? Quero ver você pegar alguém lá de Teruel que perdeu seus pais e irmãos nas muralhas de Lleida e falar “olha, esse aqui é seu irmão, você tem que respeitar eles”! Vê o que eles vão te responder na sua cara!

Gerard se irritou tanto com a resposta de Enric que pegou a adaga que tinha nas mãos e pressionou o pescoço de Enric com a ponta ela.

Enric trincava os dentes, não de medo, mas de raiva:

— Enric, solta essas mulheres ou eu enfio essa adaga no seu pescoço! Eu não quero saber que merda de ideias podres é essas que você tem, mas quem manda nessa merda aqui sou eu! Enquanto eu mandar nessa merda vai todo mundo fazer o que eu mando! Tá ouvindo?

Enric não respondeu. Olhou ainda mais desafiador para Gerard como se esperasse que ele fizesse isso mesmo

— Entendeu? – Gerard pressionou a adaga com mais força e berrou. Um fio de sangue saiu do pescoço de Enric.

Enric fez um sinal com as mãos e os soldados e as soldados da Ordem liberaram as mulheres.

Todas correram.

— Você não entende nada da Ordem, Gerard, nada! Nem nunca vai entender!

Enric deu uma trombada no ombro de Gerard e se foi.

 

III

     Gerard estava fatigado de toda aquela guerra e nem sequer passou um mês

     Já dizia o velho Oriol: “se você quiser controlar o universo, menino, tem que aprender a controlar sua mente e seus desejos!”

     Ele não se controlou totalmente quando colocou aquela adaga na garganta de Enric.

     Brigar com Enric na frente dos subordinados apenas piorou seu ânimo, afinal, Enric era o Sub Interventor da Ordem na Catalunya e sucessor dele, o segundo em comando.

     Não era costume na Ordem nomear alguém mais velho que o Interventor como sub Interventor; sempre foi tradição pegar um discípulo mais novo e ir ensinando aos poucos; mas, naquela época, sentiu que fazia justiça com aquilo.

     Enric estava há mais tempo e conhecia a Ordem melhor que ele.

     Precisava fazer as pazes com ele, mostrar o quanto ele era importante.

     Queria mandá-lo para Girona e reconquistar a cidade mas sem espólios humanos de guerra.

     Precisava conversar.

     Então, naquela tarde, foi até a tenda onde estava Enric, fora da cidade, no alto isolado de uma colina.

     — Enric?

     Abriu a porta da tenda e viu um espetáculo grotesco.

     Viu um cadáver em cima de uma mesa, cercado de sais, cristais, desenhos, inscrições mágicas e pergaminhos.

     Sangue circulava sobre a pele, saída de uma cavidade no peito que continha uma pedra negra cheia de riscos vermelhos.

     Escamas estavam enxertadas braços do homem.

     Era um homem forte, careca, com braços desproporcionais, típicos de mineiros ou ferreiros. Um dos braços tinha sido trocado por um braço de Jacaré.

     O mais engraçado era que ele se mexia quando Enric movia símbolos mágicos dentro de uma tábua cheia de runas ou falava algum comando.

    Zigor estava do lado dele vendo tudo, bebendo uma garrafa de rum.

— Já vou nem perguntar o que é isso porque eu tou vendo que não é coisa boa… — Ele tá brincando de ressuscitar os mortos como sempre, essa merda de ressuscitar quem já morreu! – Zigor jogou a garrafa no cadáver ambulante e a garrafa estourou pegando fogo, mas não feriu o corpo do cadáver com o fogo nem com os cacos.

     — Enquanto vocês discutem se é coisa boa ou não, vocês dois não entendem nada da Ordem…

— Eu entendo sim, moleque! A ordem sempre recompensou os seus! – respondeu Zigor.

— Exato! Tem muita gente que morreu que ainda não realizou tudo o que queria fazer… o meu papel está sendo meio que… acelerar esse processo todo… entendeu, Zigor, ou você quer que eu explique?

Enric olhou para Zigor provocando.

Zigor ficou irritado:

— Olha, Enric, se você não fosse o sub interventor da Ordem, eu juro que te matava agora mesmo!

O homem de cabelos grisalhos logo saiu daquela tenda de odor macabro.

— Pra que isso, Enric? – Gerard perguntou com indignação nos olhos e no rosto.

— Girona, não? Não é pra lá que eu vou? Os nossos soldados acabaram de me informar…

— Eu não perguntei de Girona, eu perguntei disso!

Assim que Gerard falou, o cadáver se levantou. Mexeu o braço enxertado e olhou ao redor, mas sem parecer ter consciência do que estava fazendo.

Enric continuou:

— O único que conseguiu ressuscitar alguém na ordem foi o Carlos Garaikoetxea… De forma imperfeita, mas depois disso não teve mais ninguém… ninguém! Ele destruiu os pergaminhos com o feitiço que ele usou, dizendo que a Ordem ainda não estava preparada pra atingir esse patamar…

— E ninguém tá pronto pra essas bizarrices mesmo! Nosso poder não é pra ser desperdiçado dessa forma!

— Esse é o problema… A Ordem foi muito tímida até agora… Precisamos de um salto de coragem.

— Coragem?

Gerard colocou as mãos na boca de indignação, mas depois tornou a perguntar:

— Ele consegue lutar sozinho?

— Sim, só preciso colocar uma armadura nele pra testar.

— Excelente… ele vai pra Girona no seu lugar… Você vai pra Seu d’Urgell.

Agora era Enric que estava indignado:

— Seu d’Urgell? Não tem nada lá! A cidade já é nossa!

— Por isso mesmo… Lá você não vai ter chance de matar nenhuma criança ou “pegar” nenhuma mulher como espólio de guerra…

Gerard saiu da tenda sem olhar para trás.

 

Continua...  


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