Uma Canção de Neus Artells escrita por Braunjakga


Capítulo 20
Barcelona (Parte I)




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I

Cerdanyola de Vallès, Espanya

11 de Setembro de 1714

 

Um novo dia raiou na Catalunha.

Os raios tímidos de sol daquele dia entravam lentamente pela janela do quarto de Gerard.

A primeira coisa que Gerard fez naquele dia foi vestir a armadura da ordem, peça por peça.

Ele simplesmente podia tocar nela e dizer "aparezca Dragón" e ela montaria em seu corpo automaticamente.

Não fez isso.

Preferiu fazer tudo do jeito antigo, como os antigos Interventores faziam antes de uma grande batalha.

Assim que terminou, Zigor entrou no quarto:

— Garoto, El Rey mandou vir aqui e falar que dá pra adiar o ataque. A cidade tá cercada e, vendo nossas tropas, quem sabe eles podem negociar…

— Barcelona vai cair hoje, Zigor! Não vou atrasar essa luta.

— Mas por que, Garoto? Pensa bem…

— Eu conheço a Neus. Eu conheço o Santi. O Santi sempre foi um cabeça dura que nunca vai aceitar negociar.

— E a Neus?

Gerard parou para respirar e engoliu seco.

Sua cara estava uma tristeza de morte e a cada vez que inalava o ar, seu peito doía e seus olhos lacrimejavam.

— A Neus… a Neus não é mulher pra ficar esperando num cerco… ela vai vir encarar a gente de frente…

Só faltava pegar o arco e flecha.

Gerard pegou a arma pendurada na parede do quarto, sem hesitar.

— E eu vou estar pronto pra ela…

— Você não vai estar não… não mesmo!

 

II

Barcelona, Espanha

Prédio do arsenal de Guerra

 

Santiago Castell ajeitava um broche na farda de Neus.

Deu uma batida nas dragonas douradas nos ombros dela, puxou a alça da bolsa das cartas e continuou a colocar os broches.

Colocou outro e mais outro e mesmo assim achava que faltava um.

Já eram mais de dez broches e medalhas que ele colocou na farda dela.

Ele, pelo contrário, só tinha um broche no gibão preto, o broche de presidente da Generalitat.

Neus achava aquilo irritante e não via a hora de poder se mexer de novo.

Já estava há uma hora parada, posando para um retrato que parecia que não ia acabar tão cedo.

— Moço, falta muito ainda pra ficar pronto?

— Mais meia hora, General!

— Meia hora!

— Calma, Neus, o que são meia hora do nosso tempo quando se fazemos uma coisa que vai durar a eternidade?

Neus tentava sorrir de incredulidade, mas se conteve:

— A eternidade?

— A gente tem que acreditar na nossa força, a gente tem que mostrar pras pessoas do amanhã que a gente lutou e venceu… vencemos o nosso medo, nossa descrença e tornamos possível continuar sonhando…

Santi afagou de leve o rosto de Neus.

— E antes que eu me esqueça…

Santi tirou o broche de presidente da Generalitat do Gibão preto e colocou no peito de Neus.

— Agora sim! Agora está bom!

— Santi, o que é isso?

— Se alguma coisa acontecer comigo, você é a centésima vigésima presidente da Generalitat!

Santi pegou uma sacola de moedas de um pequeno baú daquela sala e entregou pro pintor.

— Salve os retratos a todo custo… – Disse Santi para o pintor.

Santi deixou Neus e o pintor à sós.

Neus ficou na sala, olhando para um ponto no nada vazio, tentando segurar em vão uma lágrima que escorreu dos seus olhos pela sua bochecha e um grito que não coube mais no coração:

— Gerard…

 

III

Fora das muralhas de Barcelona

 

Eram oito horas da manhã.

Os coronelas caminhavam a passos lentos pelos portões de Barcelona para fora da cidade.

Fileiras e fileiras de soldados de fuzis nos ombros marchavam e cantavam canções de batalha.

Dentro das fileiras, aquela era uma visão impressionante.

Os miquelets marchavam ao lado deles, tocando tambores, cornetas e puxando os cânticos.

Alguns carregavam carroças cheias de canhões com a ajuda de cavalos.

Outros e mais outros vinham atrás com carroças cheias de barris de munição e pólvora.

Alguns aríetes vinham atrás, para lançamentos à grande distância.

Na frente de cada tropa, os quatro principais comandantes: Germà Gordò, Joseba Otegi, Andreu Colell e no centro, Santi montado num cavalo e Neus montada em Kero.

Santi, Kero e Neus observavam o monte Tibidabo, no oeste de Barcelona.

Caso os Espanhóis fossem atacar, o principal ataque seria por lá.

Andreu Colell defendia o sul com um exército de coronelas e Germà Gordò defendia o norte com seus miquelets.

Joseba Otegi estava com os coronelas de casacão amarelo defendendo a cidade de insurreições, caso os espanholistas se unissem à batalha.

O clima da cidade estava insustentável e uma rebelião podia acontecer a qualquer hora. Já não dava para esconder que El Rey se aproximava da cidade.

Nas linhas de frente das tropas do oeste, estavam Neus, Kero e Santi:

— Hey, gente, quando é que esses caras do rei vão aparecer, hein? Tou cansado de esperar… Tive que esperar duas horas parado que nem boneco até o cara terminar a pintura, puxa vida! – Perguntou Kero.

— Eu entendo, Kero, a gente só está esperando o batedor voltar… Neus? Neus? – Santi perguntou.

Neus não falava nada, só olhava para um ponto vazio no horizonte.

— Oi, desculpa, o que vocês tavam falando mesmo?

Santi entendeu o silêncio de Neus:

— A gente não pode voltar mais atrás, Neus! A gente só pode andar pra frente agora! Visca la Rapública! – Santi levantou a espada para o alto.

— Visca! – Os coronelas atrás dele imitaram o gesto e levantaram o fuzil.

No horizonte, o batedor apareceu, correndo atrás da colina.

Ele fazia um “dois” com a mão suspensa.

O cavalo andou um, pouco e o coronela caiu morto no chão.

— Vocês viram isso? Tem vinte mil deles atrás do monte! Somos cem mil só no portão oeste, fora os outros! A diferença é de cinco para um e ainda querem nos atacar! Vamos a guanyar!

— Ele sabe que eu não sou de ficar esperando… – Comentou Neus.

Santi e Kero não entenderam e olharam Neus.

Santi levantou a espada de novo e as primeiras fileiras de tropas espanholas apareceram.

Não vestiam azul como os soldados espanhóis, mas vestiam a armadura vermelha como sangue da Ordem do Dragão, como os soldados que Neus teve que enfrentar em La Seu d’Urgell.

No meio deles, estava uma enorme bandeira branca com um xis vermelho carregada por Zigor, a bandeira do Império.

Ele estava montado em um cavalo em sua armadura completa, vermelha como sangue, com a capa ondulando no ar,

Ao seu lado, El Rey Felipe III em sua armadura dourada apareceu.

Por fim Gerard, na frente de todo mundo, andando velozmente em seu cavalo.

— Preparar! – Gritou Santi.

Toques e toques de corneta foram escutados em toda a extensão da imensa onda vermelha e azul de soldados na frente das muralhas de Barcelona.

 

IV

 

— Alto!

El Rey gritou e toques de tambor comandaram os soldados da Ordem a parar.

Gerard não queria, queria continuar avançando, mas obedeceu ao monarca.

Zigor chamou a atenção para que voltasse.

— Aí está o Gerard Bernat! Pronto pra se juntar com os seus! Pelo visto tá com pressa! – Enric, que vinha logo atrás, zombava dele.

Os olhares dos dois se cruzaram.

Gerard olhou feio para Enric e ele sorria.

— Todos os comandantes, Reunir! – Ordenou El Rey.

Enric, Zigor e Gerard conduziam a força principal de ataque e já tinham se apresentado.

— Relatório, Gerard!

— O General Urrutia já posicionou as tropas deles ao norte e ao sul, não vai ser muito difícil, mas os Coronelas ainda são numerosos…

— A gente podia ter juntado eles aqui no oeste, Gerard…

— O oeste é meu majestade! Não quero ninguém me atrapalhando…

— E que nada te atrapalhe mesmo, Gerard! – Disse El Rey, sabendo muito bem que Neus estava do outro lado da frente de batalha.

Os outros interventores da Ordem se aproximavam em seus cavalos, exceto Juan González, Interventor de León que estava doente e mandou Luna comandar suas tropas.

Ela foi a primeira a se apresentar.

A mulher de cabelos curtos e castanhos, carregava uma grande bandeira com quatro quadrados, dois com um fundo vinho e uma castelo dourado de castela e outros dois com fundo branco e um leão rosa de León, representando o amigo que não pode vir:

— Luna Hernandez de Castela e Leão, Majestade! Se apresentando!    

— Trés bien, Luna! Você sabe sua missão: Ataque eles pelo norte e evite atritos com o centro!  

— Certo! Depois disso, faça o Enric comandante!

Luna olhou com raiva para Gerard e foi assumir seu posto e chamar as suas tropas.

Pietra, a mulher de cabelos muito loiros e curtos, foi a próxima, carregando um grande bandeirão branco com uma faixa azul claro em diagonal:

— Pietra Beltrán da Galícia, senhor!

Os dois bateram continência:

— Consegue acabar com aqueles aríetes, Pietra?

— Vou concentrar meus esforços nisso! Majestade, não escute a Luna!

El Rey fez um sim para ela e correu para chamar as tropas.

Depois veio Nadja, a morena de cabelos pretos muito longos, com uma bandeira branca com uma flor amarela no meio:

— Nadja Rufián de Granada se apresentando!

— Apresentado, Nadja! Controle a vanguarda pelo sul, está bem?

— Sim! Gerard é o nosso comandante!

A morena saldou Gerard e Zigor com a cimitarra em mãos e correu para aprontar os soldados.

O comandante da Ordem nas astúrias, Augustin Carbajal, um homem calvo, apareceu com sua bandeira azul com uma cruz amarela no meio:

Ele desceu do cavalo e se curvou, fincando seu bastão de batalha na grama:

— Augustin das Astúrias, majestade! – Levantou-se. – A serviço do legítimo rei e do legítimo comandante!

Augustin olhou para Enric. O homem loiro fez um sim com a cabeça.

— Destrua aquelas carroças pra mim, Augustin!

O interventor confirmou e montou novamente no cavalo.

Luísa Almunia, uma mulher de cabelos cacheados e negros, trazendo uma bandeira de fundo amarelo com quatro barras vermelhas deitadas apareceu:

— Interventora Luísa de Aragão, Valência e Mallorca, me apresentando para o Comandante Enric Miró!

— Apresentada, Interventora! Agora ataque pelo centro! – Enric bateu continência e se adiantou até mesmo ao Rei.

— Você vai atacar pelo sul, interventora! Está bem? – Disse El Rey

— Tá…

Luísa saiu e foi se aprontar.

— Mas que barbaridade! Estamos questionando nosso comandante legítimo e tirando o poder de El Rey? Você é uma mentira, Enric, por isso o Velho Oriol nunca confiou em você!

Uma mulher idosa de cabelos curtos e lisos apareceu, com um bandeirão vermelho com um quadrado no meio formado por correntes amarelas.

— Uxue Araitz, minha velha amiga… – Disse Zigor.

Os dois se saudaram.

— Uxue de Navarra me apresentando! Sobrou alguma coisa pra mim, majestade?

— Mantenha a nossa retaguarda, Uxue! É um prazer ter uma mulher experiente nas nossas fileiras! – Disse El Rey.

— Eu podia ter mandado minhas meninas virem no meu lugar, mas vendo a loucura que a Ordem virou… Achei melhor vir eu mesma!! Vamos ter trabalho depois pra limpar tudo isso, Gerard!

— Eu sei, mas primeiro eu tenho outro problema bem na minha frente…

— Você vai ser forte e vai conseguir… – Uxue apertou os ombros de Gerard com a ternura de uma avó.

Todos os interventores da Ordem tomaram posição.

Cada bloco de tropa comandado por cada um se aproximava aos poucos.

Em cima de cada cavalo, estava um homem ou uma mulher de armadura vermelha como sangue completa, capazes de derrubar qualquer portão de qualquer cidade com apenas um golpe, tal como Zigor e Gerard fizeram em Lleida.

Antes de continuarem, Gerard, como era o comandante geral, ficou na frente de todo mundo e discursou, com seu arco em mão:

— Eu sei que muita gente aqui não gosta de mim, tem dúvidas ao meu respeito; Eu quero que essas pessoas se danem!

Vivas e vaias foram escutados.

— Eu só quero saber de mostrar aqui e agora que juntos somos mais fortes, desunidos não somos nada! E aqueles que querem nos dividir como os separatistas lá na frente vão ser espalhados como palha pelo vento! Porque eu luto pelo reino, pelo futuro dos meus filhos e não por mim mesmo! O motivo de a gente existir como Ordem do Dragão é pelas pessoas desse reino! Para esse dia que nascemos e para esse dia que viemos! – Gerard levantou o arco no ar e os demais fizeram a mesma coisa com suas armas – Agora é a hora! Que viva El Rey e que viva Espanha!

— A-U, A-U, A-U, Viva! – Todos disseram.

As tropas avançaram velozmente pelas colinas do monte Tibidabo, Gerard mais rápido que todo mundo.

V

 

Os gritos e os urras foram escutados à distância pelas tropas numerosas de miquelets e coronelas na frente das muralhas de Barcelona.

Santi e Neus se adiantaram a todo mundo e falaram para a multidão:

— Vocês ouviram os gritos selvagens deles por trás das colinas! Eles vieram, sim, eles vieram pra tomar a nossa liberdade! Eu digo que eu não tenho medo deles! Eles vem pisar nos nossos direitos e minar nossa luta! Se isso não é conquista isso é o que? Se tivermos que morrer, morreremos, se tivermos que viver, viveremos, mas nunca, nunca poderão apagar nossa luta e nossos desejos da história e dos nossos corações! Visca la República! Visca Catalunya Lliure i sobirana!

Uma multidão estrondosa de vivas mais alta e ensurdecedora do que a das tropas da Ordem foi escutada.

Até as muralhas tremeram e Kero teve que tapar as orelhas por causa do barulho.

A fileira de homens de armadura vermelha como sangue apareceu, mais numerosa do que muitos daqueles soldados já viram quando invadiram suas cidades e eles nem sequer puderam fazer nada contra eles.

Aquilo congelou um pouco o ânimo deles.

Foi a vez de Neus falar:

— Soldados! Já ouvimos muito aquela história de dois homens numa armadura vermelha como sangue estavam chegando, dois homens numa armadura vermelha como sangue iam invadir nossas cidades, eles não podem ser combatidos; eu digo que eu já enfrentei todos eles e hoje estou de pé aqui e agora pra mostrar que eu sobrevivi e eles! Perguntem lá em Girona, Perguntem lá em Seu d’Urgell! Se a gente ficar unido, a gente consegue ganhar deles sim!

O viva dos soldados foi mais sonoro e ensurdecedor que o discurso de Santi.

— Eu já tou cansada disso! Tomaram minha fazenda, tomaram meu irmão, tomaram meu noivo! Agora eles voltam de novo, trouxeram uns dez pra tentar tomar da gente Barcelona. Pois que venham! Vamos mostrar pra eles que a coisa não é bem assim! O que vale pra um vale pra todo mundo! Visca la Terra!

— Lliure! – Os soldados corearam.

Neus levantou a carta “espada” no ar e apontou para os soldados da Ordem descendo a colina.

Como um estouro de boiada e o começo de uma maratona, eles caíram para cima deles.

 

Continua…


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