Uma Canção de Neus Artells escrita por Braunjakga


Capítulo 17
A namorada




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Tarragona, España

3 de Setembro de 1714

 

3 de setembro de 1714. Era o aniversário de Neus. Vinte anos de vida ela fazia.

Para comemorar, Kero convidou Neus para comer fora.

Kero empurrava um prato de Paella negra para Neus, prato preferido dela.

Estava repleto de camarões como ela gosta e o guardião tinha pagado o prato com o seu dinheirinho

Neus empurrou o prato de volta para ele.

Estava triste e abatida.

— Neus, Come alguma coisa!

A garota não respondeu.

Neus ainda estava numa tristeza de morte.

Olhou o mar e começou a chorar.

Tarragona foi o primeiro lugar da Catalunya onde Pau e Neus conheceram o mar.

Vieram acompanhando os pais, vendendo melancias na feira da cidade.

Fazia quase uma semana que estavam na cidade.

Voltaram de Girona pela costa litorânea, evitando o interior.

Neus nem quis saber de passar em Sabadell, aquilo traria memórias do irmão.

Foi pela estrada do litoral até Barcelona, passando por Blanes.

Pau recebeu um enterro em Blanes, uma promoção pós-morte para Tenente e uma salva de 21 tiros.

Nada disso traria ele de volta.

Neus se sentia fraca, frágil, estava deprimida, não sorria mais e comia pouco.

Parecia a sombra daquela mulher valente que enfrentou exércitos.

Era como se uma parte dela tivesse morrido.

Durante esse tempo todo, Kero cuidou de Neus. Ela só comia e tomava banho de o guardião falasse.

Passou por Barcelona, conversou com Santi e explicou para ele o que aconteceu.

Santi entendeu Neus. Ele também perdeu Pere na guerra.

Santi também autorizou a dispensa de Neus dos Coronelas, mas ela não aceitou.

Neus ainda podia encarar Enric e o resto daqueles interventores mais uma vez, por sua fazenda e por Pau.

Era isso que a motivava.

Soube que as tropas de El Rey em pessoa já tinham conquistado Reus e marchavam para Tarragona antes de atacar Barcelona.

Tarragona era uma cidade antiga que existe desde os tempos do Império Romano. Chamava-se Tarraconense e desde sempre suas casas e prédios eram feitos com pedras das montanhas e cascalhos do mar.

A cidade tinha grande movimento no porto, mas não tão grande como Málaga ou Barcelona.

Não costumava receber barcos das Américas, mas tinha bastante comércio com o Império Otomano, República de Veneza, França e Egito.

Muita gente exótica estava por lá e o que favoreceu todo aquele comércio foi o fato da cidade não ter entrado na guerra.

Tarragona era legalista da casa Bourbon e jamais aceitou as pretensões do Arquiduque de Áustria ao trono espanhol.

Não haviam coronelas e miquelets na cidade, mas todo aquele que vestisse a farda vermelha ou azul era tolerado, mas por pouco tempo, e agora menos ainda com a chegada iminente do Rei.

Deram a Neus e Kero até a manhã de amanhã pra sair de lá.

Ela só precisava de uma noite, daquela noite para tirar uma dúvida.

Depois, iria para Barcelona se juntar aos miquelets e coronelas restantes para um golpe final.

Enquanto pensava em tudo isso, Kero chamou Neus de novo:

— Neus, eu também tenho um irmão, sabe, o Yue. Eu não gosto muito dele, mas a gente se dá bem de alguma forma… ele tá preso com a Ordem do Dragão e .. O Clow tá tentando salvar ele… Eu também quero ajudar… por isso eu tou com você, pirralha! A gente precisa de toda a força do mundo pra enfrentar a Ordem…

Neus deu um sorriso leve e deu uma colherada e mais outra no prato de Paella Negra.

Estava com fome.

Kero aproveitou e comeu os camarões do prato, Neus nem se importou.

Era a primeira vez que sorria depois da morte do irmão.

Entre uma colherada e outra, Neus levantou a cabeça do prato e viu  dois soldados da Ordem andando tranquilamente pela rua e sendo saudados pela multidão.

A Paella Negra azedou na boca de Neus e os pelos do braço dela arrepiaram.

— Pirralha?

Neus ficou séria.

Tocou a chave do lacre no pescoço e a espada rosa surgiu em suas mãos.

— Kero, fique aqui, eu vou atrás deles!

— Pirralha, você tem certeza que aqueles caras tão aqui?

— Eu vim aqui pra isso mesmo, Kero! Pra tirar essa dúvida!

— Neus, é perigoso! Você pode ser presa se eles te verem! Eu te acompanho!

— Isso é uma coisa que eu tenho que lidar sozinha, Kero! Eu já volto!

Neus correu em disparada pelas ruas.

Kero deixou alguns xelins ingleses e libras esterlinas na mesa e seguiu Neus, voando pelo teto das casas.

 

II

 

Neus enfiava a espada na garganta de uma Tenente da Ordem como um serrote.

Tentou arrancar a espada da mulher e ela prendeu no osso do pescoço.

Não tinha prática com aquilo, mas agora matava com gosto aqueles soldados de armadura vermelha como sangue.

O outro companheiro dela estava com o peito esmagado na parede, parecendo barata morta.

Tinha usado a carta “força” e, com apenas um soco, tingiu a parede de pedra com sangue e víscera do homem.

Conseguiu soltar a espada e ficou lembrando o que eles disseram:

“Será que eles vão demorar muito? A gente tá esperando o Enric faz duas horas e nada!”

“Não sei, Helena, o Arcebispo garantiu que Tarragona é nossa! Amanhã a gente  já trazas tropas pra cidade…

Depois disso, apareceu na frente deles e deu no que deu.

O importante era que Enric estava lá.

O homem que matou seu irmão.

Daria tudo para acabar com qualquer um que estivesse perto deles.

Estava diante da Catedral de Tarragona.

Se escondeu atrás de uma casa ao lado da construção e usou a carta “Pulo” para aguardar no telhado a saída deles, do lado de Kero.

A porta da Catedral se abriu.

Saíram Zigor, o homem grisalho de armadura vermelha e espada longa e Pietra, a mulher loira de cabelos curtos segurando um escudo.

Sua mão tremia.

Kero já ficou na forma verdadeira de leão com asas.

Rangia os dentes de raiva.

Apertou a mão no peito como se estivesse infartando:

— Acalma coração meu! Hoje eles vão pagar!

Enric foi o próximo a sair.

— É agora, Kero!

Neus se preparou.

Um último homem de armadura vermelha como sangue saiu da catedral ao lado do bispo de Tarragona.

Era o general mascarado da outra vez que parecia liderar os demais. Ainda usava o capacete com máscara.

Neus se segurou mais um pouco.

— Não, se preocupe, General, amanhã de manhã eu abro as portas de Tarragona. Os miquelets e coronelas daqui já fugiram pra Barcelona…  

— Eu vejo, reverendo. Parece que estão se reagrupando em Barcelona mesmo…

O general mascarado estranhou:

— Zigor, Pietra, cadê o Ferran e a Helena? Eu pedi pra eles esperarem aqui…

Zigor andou um pouco e encontrou o corpo decapitado de Helena e o corpo esmagado de Ferran:

Zigor olhou para o bispo:

— Reverendo entre! Você também, general!

O bispo fechou de imediato as portas imensas da catedral.

O general mascarado não entendeu o pedido de Zigor e acabou não entrando.

— Pau!!!

Neus gritou, pulando do alto da casa em frente a catedral, a espada em mãos e o rosto cheio de ódio.

Era para pegar Enric.

Ele desviou.

Mas a espada conseguiu cortar exatamente no meio o capacete do general mascarado.

Como bandas de ovo de páscoa, as duas metades cortadas do capacete caíram no chão.

Neus ainda estava com a espada em riste na frente dele e se preparou para ferir a barriga dele.

Pietra e Zigor nem conseguiram e nem conseguiriam reagir, tamanha rapidez teve o golpe de Neus.

A cara de raiva da Coronela virou choque quando tentava dar um corte na barriga dele.

A espada na horizontal parou na hora com o susto.

Neus viu que era Gerard por trás do capacete.

Os dois olhavam boquiabertos um para o outro.

Gerard Bernat, seu namorado, o rapaz de olhos azuis, cara barbuda e castanha que conheceu, sem nenhum detalhe para tirar, nem pôr.

Neus havia combinado de se encontrar com ele naquela cidade, daqui a 15 dias, só que estava vendo-o agora, naquele instante, usando a armadura da Ordem do Dragão, a mesma ordem que matou Pere e Pau.

Arrepiou-se da cabeça aos pés.

Enric gargalhou e quebrou o choque de Neus:

— É mentira, né?

— É a verdade, Neus! Não falei pra você que não garantia que a verdade fosse bonita? – Disse Enric.

Neus apertou a espada de raiva e fechou os olhos, desejando que aquilo fosse um pesadelo:

— Você é o Gerard mesmo?

— Amor, me deixa explicar…

Gerard tremia. Era ele mesmo. Só ele a chamava daquele jeito.

Neus nem sabia mais se sentia raiva ou chorava.

Seu namorado, seu noivo era chefe do cara que matou seu irmão e queimou sua fazenda.

— Me diz, Gerard, me diz que isso é um pesadelo que eu tou vivendo! Me diz que não é você, que você tá sendo manipulado por eles. – Ela apontou para Zigor e Pietra, berrando. – Me diz que você não tá do lado dos caras que mataram o Pau e queimaram nossa fazenda!

— Zigor! Pietra! – Enric chamou atenção – Pelo que eu sei, um atentado contra o nosso comandante supremo da Ordem do Dragão é digno de morte! O que vocês estão fazendo contra isso?

Zigor e Pietra correram e ficaram entre Neus e Gerard, isolando os dois.

Pietra com o escudo em riste e Zigor fincou sua longa e pesada espada no chão, como ele tinha feito antes em Girona.

— Garota, eu estou falando sério! Vai pra casa e cai fora daqui!

— Comandante supremo?

Neus gargalhou de raiva, chorando.

Agora já sabia como se sentia.

Fechou o punho com tudo e Kero pulou do telhado cuspindo fogo contra eles.

Pietra levantou o escudo e protegeu Gerard.

Kero não parou e continuou a cuspir fogo contra eles.

A magia foi tão forte que Zigor e Pietra acabaram pegando fogo.

Pietra, cega pelas chamas, jogou o escudo com tudo para longe, tentando acertar Neus ou Kero, sem sucesso.

Os dois interventores se debatiam, tentando apagar as chamas, mas Kero soprava mais.

Enric não fazia nada.

Neus viu que era a hora.

Partiu para cima deles.

Ela ia acertar a espada em Pietra, uma flecha bateu tão forte na espada que tirou a arma das mãos de Neus.

Era Gerard, desesperado.

Cada vez mais Neus sentia raiva dele.

— O que é isso Gerard? Essa mulher me bateu em Girona e você faz isso?

— Neus… Eu não posso permitir isso!

Gerard falava completamente perdido.

A incredulidade e tristeza na cara de Neus virou raiva de vez.

Trincou os dentes, estendeu a mão e a carta “espada” veio voando até ela.

Seu alvo agora era Gerard.

— Kero!

O guardião amarelo correu até ela e a Coronela montou nele.

Como um cavaleiro numa justa, Neus correu com uma espada em riste.

Pietra também estendeu a mão e chamou seu escudo. Ele acertou em cheio Neus e derrubou-a de cima de Kero.

— Neus! – Kero se assustou e correu para salvá-la.

Zigor conseguiu apagar as chamas do seu corpo e pulou com tudo para perto de Kero.

— Calma aí, Gatinho! Vamos conversar!

Kero mostrou os dentes e soltou um rugido na cara dele.

Neus se levantou e Pietra já estava de pé, encarando-a com o escudo na mão:

— Eu acho melhor você desistir, Neus! Você não tem chance contra nós quatro!

Neus e Kero estavam cercada pelos dois lados.

Nenhum dos dois queria desistir.

Ainda tinham energia para mais, não importa quantos fossem.

Olhou para Zigor e, misteriosamente, ele estava com a mão no punho da espada esperando por um movimento, mas não era para contra atacar Neus não, era para Pietra.

A mulher galega e muito loira ainda queria lutar.

Talvez ela não jogasse o escudo porque aquele homem de cabelos grisalhos impediria com um golpe da espada de duas mãos.

Por hora, vendo que não era atacada e nem tinham a intenção de fazer nada, Neus aceitou conversar, com a espada numa mão e a carta “escudo” em outra, sem baixar a guarda:

— Gerard, como você pode ser tão cara de pau! Eu sabia, eu sabia que você ia se juntar com o Exército Espanhol! Eu até podia perdoar isso, mas matar o meu irmão foi demais pra mim! Eu nunca, eu nunca vou perdoar isso, Gerard!

— Eu te disse, Neus, pra você ficar longe dessa guerra! Eu te disse pra você não se meter nisso! Eu te disse pra não ouvir o Santi, e o que você fez? Você resolveu escutar ele e não me escutar! Você acha que tou feliz com isso? Você resolveu se jogar e jogar o Pau nessa guerra em troca de uma ilusão sem pensar nas consequências?!

Quando Gerard tocou no assunto 'Pau’, Neus virou uma fera.

Avançou alguns passos até Gerard e a espada começou a brilhar, como quando lutou contra Enric.

Zigor segurou o ombro dela para evitar que fizesse besteira:

— O que você tá dizendo aí, rapaz? Tá falando que a luta do meu irmão é ilusão, é? Tá dizendo que eu sou uma inconsequente?

— Eu não disse isso…

— Você que é o inconsciente, Gerard! Você se voltou contra o seu país! Você matou sua gente…

— Você tá sendo injusta comigo, Neus!

Neus gesticulava com os dedos e com as mãos e Gerard estava indignado, como estivesse se defendendo de uma mentira.

Quanto mais batiam boca, mais se aproximavam um do outro.

Neus só não partiu para a pancadaria contra Gerard porque Zigor segurava a sardenta.

Até Pietra ajudava a segurar a moça.

Kero mordeu de leve o braço de Pietra, só por garantia.

— Parou! Parou! Parou vocês dois! – Gritou Zigor – O rei vai chegar aqui amanhã e a gente tem uma visita pra aprontar. – Voltou-se para Neus – Garota, se você quiser brigar junto com o gatinho, eu digo que a gente tem lenha pra queimar e você também e mais está pra vir pra cá, gente barra pesada mesmo, tá ouvindo? Não pense que você vai levar essa birra muito longe! Você tá sozinha e estamos em cinco!

Zigor encarou Neus com seriedade.

Ele não estava errado.

Tremia.

Não de raiva, mas de medo.

Nunca pensou em estar em lados opostos com Gerard.

Os dois sempre foram muito unidos, mas as suas missões agora os separavam.

Gerard também tremia e não reagia uma migalha.

Enric, seu alvo, ficou a luta inteira parado, comendo mamão encostado na parede, assistindo aquela luta fratricida.

Gerard não era seu alvo, mas poderia ser.

Não conseguiu segurar mais e chorou, tentando segurar em vão a cara de raiva.

Tudo que conheceu de Gerard, seu namorado, seu apoio, desmoronou como estátua de areia diante de seus olhos.

Neus estava com as pernas tão bambas que seu chão debaixo dos seus pés e estava prestes a engoli-la.

Foi a voz de Zigor quem apareceu para salvá-la, mesmo expulsando ela:

— Sai daqui, Neus! Foge com esse Gato daqui pra Barcelona, Sabadell, qualquer canto, sei lá!

Kero, em sua forma verdadeira, tão imponente, fez sim com a cabeça.

Montou e agarrou o pescoço dele, dando uma última olhada para Gerard.

Pela primeira vez, depois da raiva, viu que os olhares dele estavam tão vazios e tão perdidos quanto o dela.

Então Kero voou para longe dali.

 

Continua…

 


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