Uma Canção de Neus Artells escrita por Braunjakga


Capítulo 15
O amigo




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Palácio da Ordem, Toledo

21 de agosto de 1714

 

O sol anunciava o nascer de um novo dia.

No palácio da Ordem, sobre as nuvens de Toledo, Gerard caminhava pelos Jardins do Palácio.

Aqueles eram jardins cheios de árvores, aquedutos e canteiros de flores.

Debaixo de uma das árvores do jardim, uma jovem mulher lutava com espadas de madeira contra uma menina que nem sequer tinha treze anos.

A menina de 13 anos recebe um golpe e cai no chão.

Frustrada, joga a espada de treino para longe:

— Gabriñe! Como é que você quer montar num dragão desse jeito!

— Eu não quero montar em dragões, Letízia!

— Mas é o seu dever, Gabriñe! Você vai montar em um dragão um dia! Seu pai já foi Tenente da Ordem, sua irmã tá lutando na Catalunya e só falta você!

Vendo a cena, Gerard foi transportado para um passado que aconteceu há muito tempo atrás:

 

No sítio do velho Oriol em Terrassa, havia uma colina com uma árvore em cima dela.

Dava para ver boa parte das fazendas ao redor e uma parte importante do Rio Riera de las Arenas cortando o sítio em duas partes.

Debaixo da árvore, o Velho Oriol e Gerard conversavam.

Era a segunda vez que Gerard visitava o veterano de guerra, amigo da família Bernat, dessa vez estava sozinho, sem o pai.

— Senhor Oriol, O senhor disse que eu tinha que lutar contra os meus amigos; se for assim, eu não quero lutar…

O velho sempre sorria com olhos fechados:

— Você não precisa lutar contra eles... Você será empurrado pra lutar com eles…

Gerard pulou da cadeira com o susto:

— Não se assuste; a vida é uma luta pra sobreviver todo dia, meu rapaz!

— Não! Eu não entendo isso! Eu não preciso disso!

— Você deve lutar e vencer, Gerard! Você tem que mostrar que lutou e venceu!

— E se eu for forçado a lutar, o que eu tenho que fazer?

— Sobreviva! Todo mundo vai ser forçado a isso uma hora… e seu primeiro teste está ali…

O velho Oriol apontou o dedo para Enric, nas margens do rio Riera de las Arenas, junto com outros membros da Ordem que estavam por lá:

— O Enric! Ele tem 30 anos! Ele tem a idade do meu tio, o dobro da minha idade! Ele conhece muito da Ordem! Como eu posso enfrentar um cara desses!?

— Enfrentando…  

O velho sorriu:

— Eu quero que você seja meu herdeiro, não ele…

— Senhor! Eu não estou pronto ainda!

— Basta lutar, lutar e vencer as guerras que virão.

Gerard continuava sem entender o que ele queria dizer.

 

— General? General?

Um grito trouxe Gerard de volta para o presente.

As duas meninas estavam paradas diante dele, batendo continência.

— Sim. Meninas, o que foi?

— Me… me apresentando General! Cabo Gabriñe!

A menina de 13 anos quase chorava, prestava continência tremendo e fazia de tudo para conter o choro:

— A… Aluna Letízia, General! É uma honra ser… ser da próxima geração de Dragooners!

A vontade de Gerard foi falar para ela que ela não precisava fazer aquilo se ela ao quisesse, não era porque um familiar dela foi da Ordem que ela tinha que ser também e que ela estava livre para fazer o que quisesse que não teria punição, era ele quem dava a permissão.

Mas a voz não saía da garganta.

Tudo o que fez foi acariciar a cabeça dela e dizer:

— Se esforce e um dia você vai ser uma Major ou até mesmo uma interventora!

A menina Letizia ficou com o rosto todo vermelho:

— Gentileza sua, General! Se.. se eu tiver a honra de ser a sua escolhida ou a do General Enric… mas sou fraquinha ainda…   

Gabriñe deu um cascudo em Letizia e as duas voltaram a treinar.

Gerard parou para ver as duas e depois continuou a caminhada matinal pelo palácio.

Gerard andou por mais alguns corredores externos do palácio e encontrou, por acidente, Enric.

Ele conversava segurando um pergaminho aberto e dava ordens para dois Majores da Ordem.

Enric e os majores olharam Gerard.

O Interventor fez questão de nem cumprimentá-los, nem saber o que eles estavam tramando.  

Enric acompanhou com a cabeça Gerard se afastando deles.

A mão de Gerard coçava para devolver aquele soco que ele deu em Neus, coçava para devolver a flechada que ele enfiou em Pau.

No fim só conseguia ir pro passado, quando outra pessoa se coçava para devolver o soco:

 

Estavam no palácio da Ordem do Dragão, no mesmo corredor, só que há dez anos atrás.

Enric estava todo molhado.

Tinha tomado um banho, ou melhor uma surra.

Os dois disputavam o posto de Interventor.

Estava irritado e tentava bater em Gerard e só não chegou a bater nele porque era segurado por Zigor e Pietra:

Diante de um Gerard ofegante, estava a armadura completa da Ordem do Dragão, nesse caso, da Catalunya.

Gerard estava cansado, assustado e surpreso ao mesmo tempo:

— Comum! Você é um comum de merda!

— Sim, um comum que tem metade do que você sabe, mas o dobro do seu coração...

Confuso e sem entender nada, Gerard colocou a mão no capacete da armadura:

— Aparezca Dragón!

A armadura se desmanchou no ar e suas peças ficaram flutuando por um tempo até encaixarem por si só no corpo de Gerard, com facilidade, como se fossem feitas para o tamanho dele.

— Agora você é um Interventor da Ordem! O nono da Catalunya!

Enquanto falava, Enric se soltou das mãos de Zigor e Pietra e todos ficaram apreensivos.

Havia um ódio profundo no seu olhar e ele apontava o dedo trêmulo para Oriol:

— Oriol, seu velho maldito! você vai me pagar! Vai ter volta!

— Eu sei que você vai vir e tenho certeza de que o Gerard vai estar te esperando.

O olhar de ódio profundo de Enric pousou em Gerard e depois ele saiu correndo daquele corredor.

O velho Oriol, sorrindo, entregou o arco e flecha, as armas mágicas do interventores da Catalunya, para ele.

Pietra e Zigor se ajoelharam diante do seu novo comandante, um rapaz de 15 anos mais novo do que eles e que não conhecia bulhufas de como era ser um membro da Ordem do Dragão, ainda mais Interventor.

 

Enquanto andava distraído e de cabeça baixa, Zigor deu uma trombada em Gerard:

— Olha por onde anda, garoto! Não vai querer ser trucidado pelo Enric! Ha!

— Eu devia te dar uma cacetada na cabeça!

— Aquela sua namoradinha ia matar a Pietra! Você sabia que ela podia acabar com a gente, garoto.

Gerard não respondeu.

— É o seu dever proteger a Ordem! Ela não tava errada!

— Eu não tou afim de falar mais sobre isso, Zigor!

— Nem eu…

De uma das dobras da armadura, Zigor tirou um pergaminho enrolado e entregou  para Gerard.

Estava lacrado com o selo pessoal do rei.

Gerard quebrou o selo e leu a mensagem.

Nela dizia que o Rei em pessoa saiu de Madrid e estavam em Teruel; em alguns dias estariam se juntando com as forças da Ordem estacionadas em Reus e que o rei deseja conversar com ele.

— Fala pra ele que eu já tenho gente de mais envolvida nisso! Não preciso de reforços!

— El Rey já sabe o que aconteceu em Girona, garoto.

— Eu disse: eu não preciso de mais tropas! Isso não é uma missão de ocupação! O que o resto do Interior vai pensar? Que eu quebrei a minha promessa com eles, é?

— Ele Rey também sabe que a gente tem poucas unidades pra atacar Barcelona! Os coronelas estão recuando pra capital e você bem sabe se Barcelona cair, a Catalunya cai! Mas se a gente perder… E tem muita chance de acontecer isso…

Gerard se calou antes de responder para Zigor:

— Quem tá vindo? Gente do exército?

— Gente da Ordem. Leão, Astúrias, Navarra…

— Mas que merda! Eu não falei que não queria mais gente da Ordem?

— O Enric convenceu El Rey do contrário; são ordens de El Rey em pessoa, não dá pra ir contra isso!

— E por que ele se meteu? Eu já não deixei claro que...

— El Rey sabe que o clima entre vocês não tá bom!

— E quem é ele pra convencer Ele Rey, hein? Ele é Interventor por acaso?

— Ele tem conhecimento, ele é mais velho, ele...

Gerard juntou toda a raiva que tinha e começou a tremer.

— Gerard! Se você acha que eu não sei o que você tá sentindo…

Gerard disparou contra Zigor toda revolta que acumulou:

— Você não sabe, Zigor! Não sabe!

— Eu sei sim, há mais tempo que você!

— Ah, é? Você sabe o que é perder o seu amigo, o seu melhor amigo e ver ele morrendo na sua frente, por culpa sua?

— Eu tentei impedir…

— Você sabe o que é ter a sua mulher lutando contra você no campo de batalha, sabe?

Zigor se calou.

— No campo de batalha! Você não sabe, Zigor! Você não sabe! Você deixou de sentir como homem, desejar como homem, ser como um homem há muito tempo atrás!

— Eu tenho alma de homem, rapaz! Mais respeito, hein! Eu fui tão vítima disso quanto você é agora! Se eu soubesse que era assim ter uma segunda chance, eu teria pensado duas vezes!

Gerard se cansou de discutir com Zigor, se sentou e chorou:

— É a primeira vez que eu via a Neus vestida de Coronela! Ainda mais capitã! Merda! Que merda! O que eu mais temia virou realidade! Maldito Enric! Maldito Santi!

Zigor tirou uma garrafa de rum de dentro da capa da armadura, tirou a rolha com os dentes e cuspiu ela para longe.

Deu um longo gole na bebida antes de responder ao profundo silêncio que ficou entre ele e Gerard:

— Eu sei que velho deixou claro pra você o tipo de merda em que você tava se metendo, da mesma forma que o Carlos Garaikoetxea deixou claro pra mim quando me trouxe de volta pra vida… mas aí que tá o problema! Falar é fácil! Difícil é viver a situação!

Zigor jogou a garrafa de rum na parede e continuou a caminhar, dando as costas para Gerard.

— E só resta a gente ir até o fim com essa merda, não é?

— É isso que faz da gente homem e mulher também, garoto! Saber o que fazer com as merdas que aparece na nossa frente!

Gerard deu um chute tão forte na parede que foi levado ao passado uma última vez.

 

Estava ele em uma câmara subterrânea, embaixo de um palácio em Madrid.

Era o Real Alcázar de Madrid.

Dentro da câmara, as paredes eram douradas e feitas de tijolos muito grandes, maior que uma pessoa.  

Os pilares que sustentavam o teto eram feitos do mesmo material e não estavam talhados, nem esculpidos.

Tudo era pedra bruta mesmo.

Na parede norte da câmara, estavam entalhadas em ouro puro as imagens de uma serpente gigante emplumada e de um pássaro gigantesco em corpo de homem.

As imagens tinham olhos formados por diversas pedras preciosas, como rubis, safiras, diamantes, esmeraldas e muitas outras.

Eram as estátuas dos deuses Quetzalcoatl e Viracocha, respectivamente.

— Tá vendo, Gerard?

— Sim, senhor Oriol… Os dois grandes deuses antigos dos Astecas e dos Incas, não é? O senhor me explicou…

— Eles são a fonte de energia da Ordem. Basta pedir que eles vão dar poder pra você! Ele pode curar suas feridas, fazer você voar, se transformar em Dragão…

— Senhor Oriol… Qual a diferença disso de vender a alma pro Diabo?

— Nenhuma, nenhuma mesma… A diferença é que tiramos essas fontes de energia de duas civilizações sanguinárias e trouxemos pro seio da civilização… Por España!

A barriga de Gerard tremia de frio diante da imponência daquelas imagens e a fala nacionalista do velho.

— E se eles quiserem de volta?

— Eles já morreram já filho! Só sobraram as crianças que eu não quis matar apesar da ordem que eu recebi…

Gerard tremeu mais ainda, querendo urinar.

— Isso foi há duzentos anos, duzentos anos atrás! Duzentos anos que eu trouxe elas com o meu mestre, Lluis Soler! Tomou de duas civilizações antigas ídolos repletos de energias mágicas e usou essa energia pra organizar a Ordem e controlar as Américas! Os dois ao mesmo tempo! Nunca vi um homem como aquele e acho que vai demorar mais quinhentos anos pra gente ver de novo! E eu tenho medo quando isso acontecer!

Oriol gesticulava e estendia os braços. Gerard conseguiu rir e se acalmar um pouco com a imponência do relato.

— É por isso que o senhor é o Velho Oriol!

Gerard riu do mestre, mas Oriol estava sério:

— Não ria, Gerard. – Disse O velho Oriol Junqueras em tom sério e sereno. – Amanhã você tem que enfrentar o Enric e se você perder, isso vai cair em péssimas mãos!

— Mas por que não o Enric, meu senhor? Ele conhece, ele é forte! Ele daria um bom interventor!

— Ser da Ordem, garoto, não é ter poder, é sacrifício! Você tem que pensar nos outros, no seu país, na sua cidade, nos seus companheiros, antes de pensar em você mesmo!

— Esse é um único jeito de eu não lutar com os meus amigos?

— Talvez, mas foi assim que a Ordem começou e é assim que ela tem que acabar. O Enric só pensa nele mesmo…

— Mas por que?

— As pessoas são assim mesmo, cheias de defeitos. Eu só sei que se ele colocar a mão nisso, outras mães e outras crianças vão chorar, sabe-se lá onde e tenho medo em saber… Eu já vi muito choro de crianças e mulheres, garoto, eu não quero que você veja isso…   

— Sei…

— Promete, garoto? Promete que vai proteger esse tesouro?

Gerard ficou com o rosto sério:

— Eu prometo, meu senhor! Eu vou proteger todo mundo! Vou proteger o Pau, o Santi, o Pere, a Neus, o meu pai, a minha mãe e todo o povo da Catalunya!

Oriol olhou triste para Gerard:

— Não prometa ainda pelos outros, Garoto, o que você ainda não prometeu pra si mesmo! prometa apenas pra sua missão! Essa é a única coisa que você e nem ninguém vai conseguir mudar!

— Certo! Eu sei no que eu tou me metendo!

— Não sabe não… não ainda…

 

Zigor andou um pouco pra frente e depois se virou para ver Gerard depois do berro que ele deu:

— Vamos lá ver El Rey, Garoto, pra saber o que ele quer com esse apoio? Você ainda é o Tenente General! Você sabe melhor que ele o que fazer com elas… temos muita merda pra limpar e depois disso, a gente vê o que faz pela sua namoradinha…

Zigor bateu continência para Gerard. Ele se acalmou um pouco

— Você sabe mais ou menos o que ele quer?

— Acho que ouvi ele falar que quer colocar uns soldados em Tarragona ou coisa assim, ele quer ter um apoio antes da invasão de Barcelona… Tarragona ainda é leal…

— Sei…

Zigor colocou as mãos nos ombros de Gerard e os dois caminharam pelos corredores daquele palácio, com o sol da manhã sobre suas cabeças e a promessa de um novo dia na alma.

 

Continua…


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