Um dia escrita por Ero Hime


Capítulo 2
E bastou




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Naruto abraçou firmemente a mochila em seu colo.

Sentado em seu lugar preferido, ele balançava a perna incessantemente, com as costas apoiadas no estofado decadente. Encarava a janela, e além dela. Tinha acordado muito cedo, e pego o último horário de ônibus possível; depois daquele, somente pela tarde.

Dormira pouco, mas não se sentia sonolento. Sua cabeça estava cheia de pensamentos incompletos e sentimentos conturbados. Novamente, era ele a se mover para encontrar-se com ela. Há muito que já não tinha mais aceso no peito o fogo que lhe dava ânimo.

Tinha conhecido-a na escola, e, ao se formarem, fizeram juras de amor, garantindo um ao outro que a distância não era capaz de esfriar o relacionamento. Nos fins de semana, Naruto embarcava no ônibus circular, e suportava uma viagem exaustiva, embarcando e desembarcando em diversas das províncias menores, para que pudessem sair.

Ele engolia todas as desculpas, perdoava todos os atrasos, relevava todas as falhas. Até que não o fazia mais.

Queria amá-la na mesma intensidade que no colégio, mas eram pessoas diferentes do passado. Quando ela telefonou, perguntando, casualmente, se ele iria visitá-la naquele sábado, ele respondeu positivamente, e meditou, desde então, sobre que caminho tomar.

Naruto não era pretenso. Tampouco impiedoso. Ele teria de libertá-la, porque ela já não mais pertencia a ele. Só não sabia como fazer isso. Jogar fora quatro anos de relacionamento, entre idas e vindas, promessas desfeitas, um futuro planejado. Teria coragem?

Sua rotina o fatigava. Trabalhar todos os dias no escritório era maçante, e as madrugadas jogando no computador deixavam seu corpo dolorido – das diversas horas parado na mesma posição –. As roupas sociais, os cafés, os gráficos, as apresentações. Ele as fazia, e era bom com isso. E, dia após dia, continuava a fazê-las, porque tinha se acomodado. Que perspectiva haveria?

Não gostava de estudar. Descartou a possibilidade de um curso superior na primeira oportunidade. Era esperto, no entanto, e bom com números. Em uma cidade tão pequena quanto a que morava – que sequer tinha horários de ônibus convenientes –, não foi difícil encontrar emprego em uma pequena e respeitada empresa de contabilidade. Ganhava dinheiro, gastava dinheiro, procurava por distrações, deixava de pensar. Apenas seguia.

O balançar do ônibus na estrada o enjoava. Com sorte, a velocidade diminuíra, para entrar em uma cidadela esquecida por Deus, sem quaisquer sinalizações. Devia estar perto; mais uma ou duas horas de viagem.

Cruzou as ruas esburacadas pelo lado oposto, alheio para as construções antigas e os moradores desocupados. Entraram na rodoviária com o horário apertado, o itinerário atrasado. Não vendiam passagens suficientes para justificar uma linha de percurso próprio, então paravam em cada ponto da estrada e das povoações.

Naruto pensou em puxar a cortina para evitar o sol, mas não o fez. Estacionaram ao lado de outro ônibus, igual ao que estava – provavelmente também circular, com pessoas miseráveis nele, aguardando. Encostou na diagonal, e a bolsa escorregou de seu aperto.

Se virou para a sombra a tempo de vê-la aprumando os ombros, fitando-o fixamente.

Seu coração falhou uma batida.

Ela tinha olhos estranhos, sem cor. Poderiam ser assustadores, mas, de alguma maneira, eram belos. Como duas luas, iluminaram-se devagar, adquirindo um lampejo súbito. Sua pele era demasiada branca, e Naruto pôde assistir suas maçãs adquirirem coloração avermelhada, tal qual um filme em câmera lenta.

Não se importava de encarar descaradamente, tampouco ela o fazia. Seu rosto era delicado como nunca tinha visto antes. Ele não entendeu o que aconteceu com seu peito, e porquê estava tão doloroso. Suas pernas tremularam, apertadas, e um nervosismo que há muito não sentia tomou-o bruscamente.

Sentia-se vivo.

Ressignificado. Como se toda a justificativa do universo se resumisse àquela garota. As cores se tornaram mais vibrantes, o universo se tornou mais brilhante. E sua vida tornou-se boa. Por um milésimo de segundo, ele quis sorrir, mas estava paralisado.

Lembrou-se de quando aquele sentimento surgira antes, ao pousar os olhos em sua namorada pela primeira vez. Era a mesma sensação diminuta, que alojava-se em seus pulmões e tirava-lhe o fôlego. A chama que se apagara, e um dia tinha surgido da mesma maneira que naquele momento.

Naruto quis gritar e perguntar qual seu nome. Perguntar a ela de onde estava vindo, para onde estava indo, quais eram suas ambições, qual o significado da sua vida. Se ela tinha sentido aquilo também. Queria fazer perguntas profundas e ouvir sua voz. Tocar sua mão e lhe dizer que ele não entendia, todavia, que não tinha importância.

Seus olhos estabeleceram uma ligação imutável, inquebrável e infinita.

Seu ônibus deu partida, e, vagarosamente, ele observou sua janela se mover. Espalmou contra o vidro, como se aquilo o ajudasse a manter-se conectado a ela. Viu seu rosto se virar, querendo prolongar aquele contato, e, quando o veículo cruzou a esquina, sua presença ainda estava com ele.

Naruto respirou fundo, virando o tronco para ele. Pressionou os dedos na intersecção dos olhos, tremendo. Seus ombros subiram e desceram pesadamente, normalizando suas batidas e seus pensamentos. Deixou-se acalmar.

Tardaram a sair, porque uma das passageiras tinha esquecido a passagem no guichê. Naruto encarou a janela, na mesma direção, perdido no vão deixado pelo outro ônibus.

Nunca mais tornaria a ver aquela garota, ainda que a tivesse reconhecido. Ele a tinha reconhecido; de outros dias, de outras vidas, de outras situações. Sua alma tinha se conectado a dela, e, por um ínfimo instante, tudo fez sentido. Mas agora não fazia mais.

Continuou a viagem no sentido contrário, afastando-se cada vez mais. Em sua mente, ensaiava o que dizer à sua namorada. Pensou em dizer que tinha se apaixonado por outra; levou um dia, e um dia bastou.

Se lembraria dela pelas próximas semanas, e esquecer-se-ia dos detalhes ao longo dos anos. Um dia, no futuro, tudo que se lembraria seria da sensação, que escaparia entre seus dedos. Um dia, seu coração bateu, tão forte que foi doloroso. Se encararam por alguns minutos, e foram embora. Um dia, teria sido suficiente.

Riu sozinho ao pensar na possibilidade de um amor tão intenso ser surgido tão de repente, e o deixado com a mesma urgência. Tantas emoções em apenas um dia; mais que sentira em semanas, isso ele tinha certeza.


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Notas finais do capítulo

Representando todos os amores de ônibus que passaram pela nossa vida, espero que tenham gostado ♥