Sentenciados escrita por André Tornado, AnnieWalflarck


Capítulo 8
As razões do poder


Notas iniciais do capítulo

Olá leitoras, caríssimos leitores!
Eu e a AnnieWalflarck temos novo capítulo para vocês.
Hoje vamos conhecer um pouco mais outro personagem fundamental desta história: o milionário Gartix Vog.

Boas leituras!



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Gartix Vog observava a metrópole através da janela panorâmica do seu escritório. A sala ampla e minimalista situava-se no último piso do imponente arranha-céus que servia de sede à sua empresa multinacional. Era um dos edifícios mais reconhecíveis da cidade e fazia parte dos postais de turismo, pelo que eram organizadas visitas, em determinados dias, para satisfazer a curiosidade dos forasteiros e para que levassem uma recordação de viagem de um dos locais mais emblemáticos daquele lugar.

Ele apreciava esse tipo de adulação. Era bom para os seus negócios, era excelente para a sua lenda pessoal. Gartix Vog era um dos milionários mais conhecidos do país e o seu ego inflama-se com o orgulho de ser tão admirado. Todos os dias eram-lhe requisitadas entrevistas, sessões de fotografias. Todos as semanas aparecia num programa de televisão para fazer publicidade à sua faceta de filantropo. Todos os meses exigia que lhe apresentassem novas obras de caridade para fazer as suas contribuições e ser ainda mais admirado.

Ele alimentava-se desse ciclo vicioso de boas ações e de notoriedade, porque umas dependiam da outra e vice-versa. Se não fosse tão conhecido, não podia ser tão bondoso. Se fosse apenas benemérito nunca seria notado.

Essa era a parte luminosa de Gartix Vog. A parte que toda a gente conhecia e que toda a gente venerava.

A parte sombria, como na lua, estava sempre escondida.

Ele postava-se de mãos atrás das costas a contemplar a cidade que se estendia buliçosa e distante a seus pés. Ele reinava ali. Não tinha oposição, nem sombra, nem sequer um leve rumor de rival digno do combate. Tinha mais poder, sabia-o, do que o prefeito da cidade. E como acontece com qualquer poder absoluto, era embriagante.

Gartix sentia o perfume e o sabor do poder. Era capaz de um gesto magnânimo e de um gesto condenador. E como sucede quando se é imensamente poderoso, nunca se estava satisfeito.

Ele queria mais. Olhava em seu redor e a cidade não bastava. Teria de controlar o país, o continente, o mundo por inteiro. Fazer de todos, reféns, exigir um resgate tão imenso que a dependência da sua governança seria impossível de contrariar.

Fundara os “Sentenciados” como o seu exército pessoal, mas enquanto ele não fosse capaz de alterar a legislação tacanha que regia os preceitos antiquados que norteavam a justiça, continuaria a ser um grupo fora-da-lei. E ele relutantemente lutava para não ficar associado aos atos dos “Sentenciados”, porque isso iria prejudicar toda a sua carreira que, em última análise, o levaria ao topo que lhe iria permitir fazer as mudanças radicais e explosivas que tudo iria legitimar.

Contudo, pequenos deslizes começavam a minar o secretismo da sua atuação naquela empresa clandestina. Os jornalistas incómodos começavam a fazer perguntas esquisitas e a descobrir demasiado, alguns políticos, sequiosos de projeção mediática, aproveitavam aquilo que lhes era soprado aos ouvidos para fazer insinuações, grupos de cidadãos utilizavam migalhas que eram atiradas aos ventos para espalhar inverdades e conseguir uma movimentação da opinião pública.

Estaria a ser descuidado? Gartix inflou o peito de ar.

Acreditava que não. Talvez estivesse a agir de uma forma mais ansiosa, porque detestava a falta de resultados. E aquilo estava a levar demasiado tempo. O principal agente da sua impaciência era o maldito cientista, que o levara a tomar uma decisão que ele classificava agora como precipitada. Provavelmente tinha agido de forma leviana. Muito provavelmente…

A notícia do homicídio de Terris O’Brian, ocorrida na madrugada passada, enchia os noticiários de qualquer canal de televisão. Passava nos blocos noticiosos das estações radiofónicas e estava na capa dos principais jornais. O FBI tinha-se metido no assunto e controlava o fluxo de informações, pelo que apesar da insistência dos jornalistas interessados sempre numa boa história sangrenta e chocante, pouco mais se adiantava sobre o ocorrido, a não ser que o corpo do malogrado cientista tinha sido encontrado numa sala de um prédio de escritórios da Rua 21.ª, com todos os sinais de que tinha sido executado. Mais nada. O resto eram especulações e uma biografia elaborada do homem que trabalhava na empresa “Bionics”, com um elenco atabalhoado dos seus projetos.

Não se mencionara nenhum projeto secreto, nem qualquer ligação aos “Sentenciados”, embora Gartix soubesse que tinha havido um grupo numa rede social que aventara essa hipótese, em jeito de comentário provocador – que não tivera sequência.

De qualquer modo, o desaparecimento desse cientista, que não era muito conhecido da opinião pública, nem mesmo entre os seus pares na ciência, o homem era uma espécie de eremita, cioso do seu trabalho, não motivou grandes reações. Era apenas a morte de um pobre coitado que por acaso até deveria ser inteligente, ou não teria sido cientista…

A porta do escritório abriu-se e por esta passou o seu assistente pessoal, um homem atarracado e irascível que lhe era absolutamente leal. Gartix Vog não hesitaria em descartar-se dele quando lhe deixasse de ser útil, mas por enquanto era alguém que, teoricamente, lhe seria imprescindível. O homem acreditava também que guardava tantos segredos do seu chefe que não se encontrava em risco de perder tudo o que tinha acima dos ombros, mas era excelente que sentisse essa segurança. Gartix detestava pessoas hesitantes e ele precisava de um bom braço direito. Alguém estúpido, confiável, magnífico na sua falta de escrúpulos, que nunca contestasse ordem alguma.

O homem tinha algum bom senso pois nunca lhe falava de forma desrespeitosa, nunca elevava a voz, nunca mostrava emoções e nunca se sobrepunha ao espaço que ele ocupava.

Involuntariamente, Gartix Vog sentiu os músculos ficarem tensos. Virou ligeiramente o rosto para a direita, dando a indicação de que o outro podia falar.

Trazia más notícias porque não correspondeu logo ao sinal. A sua voz era clara, porém, quando disse:

— O acesso à pendrive ocorreu sem problemas. A informação estava encriptada, encontrámos alguns truques de amador que não colocaram qualquer problema à nossa equipa de especialistas informáticos. Aceder aos dados foi uma tarefa demasiado fácil…

— Mas? – cortou Gartix, antecipando-se ao assistente, percebendo-lhe as reservas.

Ao contrário do que ele esperava, o homem prosseguiu na sua habitual atitude temerária:

— Mas os planos estão desalinhados e a leitura dos mesmos carece de um especialista. As fórmulas são parciais, é necessário um segundo código, mais complexo do que a primeira encriptação, para colocar ordem nos planos e fazê-los compreensíveis para outro cientista que aceite retomar o trabalho do O’Brian. O nosso criptógrafo, no entanto, não conseguiu reconhecer o código usado, diz que se trata de algo muito pessoal.

— Estás a sugerir…?

— O cientista quer criar-nos problemas, ao deixar as coisas nesse ponto.

Gartix voltou a olhar para a metrópole ao entardecer. Passou a língua pelos lábios, furioso.

— O cientista fez-se indispensável. É isso? – indagou.

— Não queria colocar a questão nesse modo tão definitivo – contrapôs o assistente –, porque acredito que um único indivíduo não será mais inteligente do que qualquer grupo de cérebros que o teu dinheiro consegue comprar, senhor Vog. O facto é que presentemente estamos com problemas que não serão resolvidos nas próximas horas. O prazo que nos deste de vinte e quatro horas não poderá ser cumprido. Precisamos de mais tempo para descodificar o projeto do O’Brian e dar-lhe seguimento pelo nosso departamento secreto de Pesquisa e Desenvolvimento.

— Queres que me sinta melhor, ao apresentares-me uma solução que pressupõe um final que me satisfaça. Ou seja, o projeto secreto do O’Brian será sempre… meu.

— Nunca ousaria contrariar a sua vontade, senhor Vog.

— Neste momento, parece-me que está contrariada.

— Apresentei um pequeno revés que iremos contornar. Não tenho qualquer dúvida sobre isso.

Gartix girou sobre os calcanhares e encarou o assistente. Não havia um pingo de suor, de medo ou de qualquer outra atitude diferente da mais absoluta tranquilidade. Ora ali estava um homem admirável, que mesmo transportador de más notícias não se acanhava perante alguém que o poderia destruir apenas com um estalar de dedos. Perguntou, rangendo os dentes:

— Foi um erro… A pressão que exercemos sobre o cientista? Terá sido, porventura, excessiva?

O assistente esboçou um sorriso torto.

— A decisão não partiu de nós – respondeu apaziguador. – Eliminar o cientista foi um ato… muito pessoal. Considero que talvez tivesse sido leviano, apressado, com consequências imediatas e terríveis para os nossos objetivos. Havia alternativas… Uma boa sova, por exemplo. Fazer do cientista… nosso convidado. Havia, seguramente, alternativas.

— Hum…

Gartix fingiu ficar pensativo, a considerar as implicações do que lhe contava o outro. Ele não precisava de ser dirigido, de ser influenciado, de ser aconselhado, porque ele estava sempre certo, conhecia todos os vieses da fortuna e era o comandante da sua vida. Gostava igualmente de mostrar algum apreço pela consideração que lhe dispensavam e o assistente gostava desse falso conceito. Tornava-o quase indispensável. Quase…

Por outras palavras, naquele caso em particular e sabendo que precisava de deixar tudo num estado impecável, Gartix Vog já sabia o que precisava de fazer.

O assistente comunicou-lhe:

— O homem está lá fora, senhor Vog. Poderá confrontá-lo e verificar por si mesmo.

— Manda-o entrar.

Dois homens escoltaram Charles Big até ao centro do escritório. O sujeito moreno que tinha tirado a vida ao cientista horas antes não exibia qualquer sinal de acossamento, não desconfiava por que motivo fora chamado à sala do líder dos “Sentenciados”. Imaginaria, porventura, que iria ser felicitado pelo seu desempenho impecável e mostrava-se ufano. Caminhava de costas direitas e com uma expressão ligeiramente trocista no rosto bestial. Estava tão confiante e alheado do seu destino que Gartix achou engraçado.

O seu humor costumava ser bastante negro.

Charles Big dobrou o pescoço num cumprimento e postou-se diante de Gartix Vog, com as mãos unidas à frente. Os dois homens estavam atrás do executor, na mesma atitude defensiva e atenta, prontos para lhe cortar a via de fuga. O incauto nem sabia ao que vinha.

— Senhor Vog – disse, respeitosamente.

Para aumentar o dramatismo, Gartix fez uma pausa prolongada. Olhou fixamente para o subalterno até que este começasse a perceber que talvez alguma coisa não estava totalmente inofensiva naquele cenário obscuro, com a cidade a espraiar-se, insondável, do outro lado da grande janela panorâmica. Charles Big vacilou, um músculo na sua face tremeu.

— O pendrive que o cientista Terris O’Brian tão gentilmente te forneceu não funciona – começou Gartix num tom grave e terrível.

A ironia não passou despercebida a Big que abriu a boca para refutar a afirmação e não conseguiu fazer passar nenhum som pela garganta escancarada, tal foi o embate daquela abordagem áspera. Esperava um sorriso rasgado e uma palmada nas costas, certamente, congratulando-o pelo feito de ter acabado com o cientista. Ter sido censurado deixara-o mudo. Pigarreou e retorquiu:

— Senhor Vog, o cientista estava muito relutante em colaborar.

— Sem ele não conseguimos decifrar o conteudo do pendrive.

O segurança deve ter-se lembrado de alguma coisa, pois os seus olhos viajaram nas órbitas e humedeceu os lábios com a ponta da língua.

— O cientista não iria colaborar, senhor Vog – insistiu Charles Big, nervoso.

Gartix rasgou um sorriso carregado de cinismo.

— Oh, é impressionante como podes tu saber o que iria eu fazer com o cientista. Duvidas dos meus métodos?

— Não, senhor Vog. Acredito que consegue ser bastante persuasivo… mas naquela ocasião eu tinha de agir, tinha de ameaçar o cientista.

O sorriso de Gartix apagou-se rapidamente.

— A ameaça foi um pouco definitiva… Até para os meus métodos bastante persuasivos, fiquei chocado.

Charles Big começou a gaguejar sílabas incompreensíveis.

— Sobretudo, não aprecio que me substituam nas grandes decisões que afetam a minha organização – explicou Gartix casualmente, como quem dispensa um discurso pedagógico. – Qualquer organização. Estou a falar das minhas empresas, que operam a um nível multinacional. Falo também do meu grupo privado que vai mudar o mundo. Os “Sentenciados”. Pertencer aos “Sentenciados” é uma honra, é a oportunidade de uma vida. Vamos mudar o mundo e quem fizer parte das suas fileiras, dos seus abnegados membros, terá o privilégio de fazer parte da primeira vaga de mudança. Serão os Eleitos e serão venerados, nos tempos vindouros, como homens de visão, como divindades. Não podem existir precipitações ou equívocos.

— Senhor Vog, tive de decidir e julguei que podia empregar toda a força necessária para assustar o cientista.

— Ah! Tiveste de decidir! Pois tiveste, meu caro.

O ambiente ficou denso e quente, o terror do capanga era palpável. Se Gartix Vog estendesse os dedos podia tocar no véu que recobria o homem amedrontado e que o fazia suar como um patético condenado.

— Toda a gente consegue decidir – disse Gartix com a mesma condescendência de professor a ensinar uma turma de alunos desinteressados. – Nem toda a gente tem a capacidade de decidir bem. E eu certamente que não tolero que decidam por mim.

A cabeça de Charles Big pendeu para a frente. Murmurou, agarrando-se a essa verdade com unhas e dentes, que o poderia, talvez, salvar:

— O cientista não queria colaborar. Ele sabia… Ele sabia que iria ser difícil e tornou tudo mais difícil para todos. Incluindo para ele próprio.

— Pois, que aborrecimento! – Gartix fingiu um suspiro.

O assistente estendeu um revólver que Gartix agarrou. Charles Big ficou hirto ao perceber a sombra do objeto na alcatifa escura do escritório.

— Creio, meu caro, que cometeste um grave erro – sentenciou Gartix.

Encostou o cano do revólver ao crânio de Charles Big e premiu o gatilho. No silêncio da imensa sala, o estampido do tiro reverberou infinitamente. Para além da janela panorâmica, porém, nada se escutou na grande cidade indiferente.


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Notas finais do capítulo

Gartix Vog é muito sinistro - e agora percebemos que não se pode brincar com ele.
O Terris O'Brian estava a trabalhar para um autêntico maníaco, que não olha a meios para alcançar os seus fins.
Os Sentenciados são um grupo muito perigoso!
O que vale é que os planos da viagem no tempo não conseguem ser decifrados - o que salvou a pesquisa do cientista e, muito provavelmente, o mundo.
Ou seja, o segredo das viagens no tempo está circunscrito ao cientista que está morto - mas que também está vivo noutra linha temporal.

Na semana que vem regressaremos à Amanda e ao Terris e vamos perceber como as linhas temporais estão definitivamente baralhadas e tudo se complica cada vez mais.

Eu e a AnnieWalflarck agradecemos a vossa leitura e os vossos comentários.

Próximo capítulo:
A distorção do amor.



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