Sentenciados escrita por André Tornado, AnnieWalflarck


Capítulo 2
Terris O'Brian


Notas iniciais do capítulo

Cá estamos, caras leitoras, caríssimos leitores, em mais um capítulo desta história.
Problemas na semana passada levaram a que a AnnieWalflarck deixasse o Spirit, mas mesmo com esse facto esta história não deixa de ser uma história minha e dela, pelo que os créditos estão e serão sempre repartidos entre nós os dois.

Prossigamos, então.
Boa leitura!



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As linhas de código que passavam pelo monitor em alta velocidade, significando que o processador central estava a efetuar os cálculos e que até ao momento a programação não apresentava falhas ou tudo já tinha sido reiniciado, iluminavam o rosto jovem do cientista ruivo, cabelo penteado para trás, formado em Física Teórica pela prestigiada Universidade de Cambridge, em Inglaterra

O cientista chamava-se Terris O’Brian e era um homem intelectual, calado, concentrado, fanático por números e com um certo grau de ambição que se podia ter como escandalosa para alguém ligado à investigação.

Trabalhava presentemente numa empresa que desenvolvia protótipos no âmbito da nanotecnologia para aplicação às ciências da saúde, nomeadamente na exigente área dos transplantes de coração e fígado, e utilizava as instalações, no seu pouco tempo livre, para desenvolver um projeto secreto e pessoal que já havia chamado a atenção de certas pessoas.

Ou melhor, pensou ele, relaxando sobre o encosto da cadeira de rodízios, esfregando o rosto com as mãos, fora ele que chamara a atenção dessas pessoas sobre si.

Estava um pouco arrependido porque o projeto ainda estava em desenvolvimento e ele quisera assegurar-se da sua produção. Mas na realidade não passava de um protótipo e tivera receio de que a sua grande invenção não passasse de um sonho que alimentara desde pequeno, desde que vira o filme “Terminator” de James Cameron pela primeira vez. Sim, o velhinho filme de 1984, o primeiro de uma longa série de excelentes filmes e de embaraçosos fracassos de bilheteira e da crítica…

Viagens no tempo!

E foi por causa do filme que começou a ler livros sobre Física, a estudar sobre o Universo, a investir no conhecimento sobre as teorias desenvolvidas por Albert Einstein. Requisitava livros na biblioteca, aplicava a sua magra mesada a comprar compêndios académicos. E depois quando chegou a altura de escolher um curso e uma universidade decidiu-se por Física Teórica.

Uma matéria complicada, todos lhe diziam à sua volta. Ele encolhia os ombros. Utilizar modelos matemáticos e combiná-los com técnicas de dedução lógica e análise crítica para conseguir explicar de uma forma racional e até prever os fenómenos físicos tornou-se fácil. Ele olhava para as complicadas fórmulas e via o que estas significavam e ilustravam. O mundo abria-se em possibilidades fantásticas e ele via o que mais ninguém via. Uma beleza transcendental e futura.

Ali estava o futuro.

Graduou-se com uma das melhores notas daquele ano e em breve fora requisitado para trabalhar como assistente num projeto arrojado de investigação no MIT, em Boston, nos Estados Unidos da América, a convite do seu professor de Física Quântica.

Foi no MIT, o Massachusetts Institute of Technology que aprofundou os seus conhecimentos sobre o funcionamento da variável tempo e foi também nesse instituto que Terris O’Brian começou a esquematizar a sério o seu grandioso projeto para realizar a primeira viagem no tempo pela Humanidade. Um feito que haveria de ser celebrado como a chegada do Homem à lua, em 1969.

Deslumbrou-se com a sua própria ambição e tentou conseguir uma bolsa para investigar por conta própria. O investimento aconteceu, mas foi sempre demasiado intermitente. Nunca conseguira um mecenas que apostasse a sério na sua ideia e ele, com receio de que o deixassem sozinho naquilo, que o achassem um louco, nunca contou a quem o financiava a história toda. Reservava o núcleo do seu trabalho para si e cobria tudo com uma série de conjeturas indecifráveis que, se lhe pedissem para explicar, ele dizia sucintamente que se relacionava com as viagens a Marte.

Ou seja, nunca disse a ninguém que o seu projeto era simplesmente sobre viagens no tempo. Porque não era tão simples assim. Quem quereria investir numa tecnologia impossível?

Eventualmente abandonou o MIT, descontente com a sua posição subalterna. Nunca passara de assistente e até tivera de dar algumas aulas num dos mestrados para poder pagar as contas que se avolumavam. Renda do apartamento, prestação do carro, mais livros. Viajou para Nova Iorque e arriscou trabalhar numa empresa privada. Enviou currículos para aquelas que lhe pareceram mais interessantes, onde poderia aplicar os seus conhecimentos e conseguir contactos para o seu projeto – que ele continuava a desenvolver em particular, com as limitações do seu quarto. Apenas um computador, acesso à Internet e livros.

A empresa “Bionics” contratou-o e nos primeiros meses redesenhou os laboratórios conforme lhe foi pedido e estava estipulado no seu contrato de três anos. Ele sabia que não podia perder tempo. No fim daquele tempo, três anos, trinta e seis meses, tinha de ter o seu projeto em produção e teria de ter encontrado o financiador certo, suficientemente arrojado e com muito dinheiro para gastar.

Gostava de trabalhar em nanotecnologia e na área da medicina, alargou o seu campo de conhecimentos, mas a sua paixão continuava a ser a possibilidade de visitar o passado, de vislumbrar o futuro. Durante uma festa de angariação de fundos, que ele sabia seria atendida por alguns milionários discretos, ele entabulou conversa com um homem excêntrico, que se vestia com um terno verde fluorescente e usava uma gravata escura. O seu rosto, porém, era retilíneo e demasiado sério para o colorido do fato e ele aproximou-se.

Apresentaram-se. Terris O’Brian. O outro era Gartix Vog.

Ele nem se recordava bem como fizera a revelação. Acontecera naturalmente, a conversa tornou-se estranhamente amigável e resvalou para um tom de confidência. Coisas de infância, detalhes que pareciam segredos e ele contou o seu. Estava a desenvolver um projeto inovador, em privado, e precisava do homem certo. Acrescentara que Vog parecia ser esse homem e Gartix Vog, sensível ao elogio, disse-lhe que lhe passava um cheque em branco. Antes que a proposta irrecusável se desvanecesse numa série de frases intrincadas sobre processos burocráticos, advogados e estabelecimento de cláusulas, Terris contou-lhe.

— Viagem no tempo.

A reação de Vog foi tudo menos previsível. Estavam os dois a segurar copos com champanhe. O outro tocou o seu copo no dele, num brinde, e disse:

— Negócio fechado. Tens o teu investidor. – Antes de se afastar disse-lhe que os seus advogados iriam falar com ele no dia seguinte para firmar o contrato e que exigia exclusividade.

Foi assim que Gartix Vog e Terris O’Brian se tornaram sócios num empreendimento científico secreto.

Terris continuaria com o seu trabalho na “Bionics”, Gartix Vog não lhe exigiu que se despedisse da empresa e que trabalhasse só para ele. Apenas queria o exclusivo do projeto sobre as viagens no tempo e segredo absoluto. A confidencialidade era fundamental para que a torneira do dinheiro não secasse. Terris concordou sem hesitar. Não achou as condições abusivas, pelo contrário. Gostava do emprego que tinha, era como uma fachada para o que estava a desenvolver e ajudava ao secretismo da coisa. A único compromisso que tinha para com Vog, e que cumpria escrupulosamente, era o envio periódico de relatórios sobre o avançar da investigação e de dois em dois meses ele tinha de apresentar factos concretos para receber o próximo cheque.

O incentivo resultou e Terris O’Brian conseguiu sintetizar um primeiro dispositivo que experimentou em ratinhos brancos e depois num chimpanzé. Só passou para os testes em animais quando teve a certeza de que era seguro fazer uma viagem curta com batatas e aipos. Munia-se de relógios acertados pela mesma hora e depois enviava os vegetais e posteriormente os bichos para duas horas para trás no tempo, para cinco horas, para doze horas, um dia, dois dias.

O sucesso estava garantido! Os resultados indicavam que a viagem no tempo tinha acontecido. No entanto, Terris não embarcou em euforias e prosseguiu com os testes. Foi nesse entretanto que Gartix Vog começou a ficar impaciente e obrigou-o a usar uma cobaia humana. O cientista recusou diversas vezes esse passo arriscado, mas foi confrontado com um Vog furioso que lhe dizia que o dinheiro acabaria se ele não fizesse o que lhe estavam a mandar e Terris fez a experiência. O homem ficou assustado, mas conseguiu sobreviver à viagem para trás no tempo de apenas três horas. Veio com algumas queimaduras na pele que estava exposta ao ar e Terris O’Brian utilizou esse dado para exigir que Vog se afastasse e o deixasse aperfeiçoar a técnica da deslocação temporal. Vog não tinha argumentos para rebater aquela petição e deixou-o em paz.

A fúria do milionário deixou Terris de sobreaviso. Começou a investigar a fortuna de Gartix Vog, saber em que negócios estava envolvido, mas fez tudo com tanto cuidado que nas primeiras explorações não descobriu nada de ilegal ou de criminoso. Consultadoria financeira, investimentos em imobiliário, ratings, o habitual que se esperava encontrar num homem ligado à alta finança. Depois, por acaso, encontrou uma ligação com o contrabando de armas para o Médio Oriente, relações com grupos desconhecidos de terroristas, tráfico de droga e corrupção de figuras políticas em países em convulsão. Por outras palavras, na sombra, Gartix Vog estava a criar um império privado, tornando-se no líder desconhecido de várias organizações e sociedades que, em última análise, poderia desequilibrar o mundo.

Ficou preocupado, tentou compreender, primeiro por si, para que queria Gartix Vog possuir a tecnologia avançada que lhe permitira viajar no tempo. Depois resolveu começar a fazer perguntas e decidiu desconfiar de tudo e de todos.

De uma forma dissimulada começou a compilar dados importantes relacionados com o projeto em uma pendrive, informação encriptada ou falsamente disponível. Os planos podiam ser consultados, mas teriam de ser lidos da maneira correta, fórmulas parciais que só fariam sentido se seguissem um código de pé de página de um relatório insuspeito, coisas assim.

Ao mesmo tempo, o seu progresso diminuiu. Deixaram de haver testes conclusivos, desleixou-se nas conclusões de cada hipótese formulada, adiava decisões e ações. O cientista estava a trabalhar mais lentamente e Vog descobriu.

Fez uma visita surpresa à empresa “Bionics” um dia e fez-se acompanhar do administrador do departamento de tecnologia e desenvolvimento, que era o chefe direto de Terris. O cientista percebeu a pressão disfarçada naquela visita e comportou-se como se não tivesse percebido, como se não se deixasse afetar. Nessa noite, por acaso, ficou a saber do grupo “Sentenciados” e soube que era Gartix Vog que os liderava.

Era a última peça do quebra-cabeças e tudo fez um enorme sentido.

Eram duas pessoas diferentes. Uma era o respeitável empresário Gartix Vog. A outra era o líder dos “Sentenciados” que pretendia dominar o mundo.

A linha de raciocínio era muito simples de seguir e a conclusão era tão límpida e óbvia que Terris sentiu-se ingénuo, mesmo sendo mestre em Física Teórica. Gartix Vog queria possuir a tecnologia que possibilitava viagens temporais para gerar o caos mundial e depois, seguindo a máxima de Napoleão Bonaparte, reinar sobre o que estava dividido. Sabotagem das democracias ocidentais, fomento do terrorismo internacional, assassinatos políticos, adulteração de eleições e corrupção a vários níveis. Era um plano demasiado sujo para que ele, Terris O’Brian, fizesse parte deste.

Foi assustador e Terris compreendeu que teria de agir – para salvar o seu sonho, para salvar a Terra. Parecia coisa de super-heróis, coisa de filmes de fantasia, mas estava mesmo a acontecer-lhe e ele tinha de parar de ser ingénuo e de protelar a sua posição.

Ele ia sair do projeto. Iria desaparecer! Conseguira milagrosamente um contacto que o ajudaria nesse propósito – um tal de Hugo Black. Conhecera-o em circunstâncias estranhas, mas estava tão desesperado por alguém que soasse vagamente a amigo que decidiu arriscar com esse desconhecido que fora muito convincente.

Uma série de apitos e ele destapou a cara. Levantou-se da cadeira e debruçou-se sobre o monitor. O “OK” a piscar no canto inferior direito indicava que o aplicativo que correra por cima do programa funcionara. Terris abriu um sorriso de triunfo. Fez as últimas gravações na pendrive, guardou-a no bolso das calças. Digitou o teclado para introduzir as palavras-passe que dificultariam o trabalho dos hackers embora ele soubesse que não levaria mais de um dia até conseguirem aceder àquele computador que era crucial para todo o projeto, o seu computador pessoal. Abriu uma gaveta, retirou de lá um caderno de capa preta rabiscado com os seus apontamentos, folheou-o e quando achou a página correta, arrancou-a e dobrou-a em quatro, que enfiou no mesmo bolso. De um suporte de acrílico, posto numa estante, abriu uma caixa e agarrou no relógio que colocou no pulso. Suspirou pesadamente. Era um plano arriscado, mas teria de funcionar…

Apanhou as chaves do seu automóvel, apagou as luzes e saiu do laboratório da “Bionics”. Black tinha marcado um encontro com ele num edifício de escritórios situado na Rua 21.ª e foi para lá que ele se dirigiu. Ao princípio estranhou o local combinado, mas quando aí chegou, passavam vinte e cinco minutos das onze da noite, viu que era perfeito – o prédio estava deserto, as luzes todas apagadas exceto aquelas normais, de presença.

Entrou com a ajuda de um cartão que fora deixado num recanto, como Black dissera. Seguiu todas as instruções desse novo aliado e foi parar ao piso décimo. Percorreu os corredores à procura da porta de chapa metálica de cor verde, mas não chegou a encontrá-la. Um braço bruto deu-lhe um puxão e um segundo solavanco fê-lo bater numa parede, magoando-lhe as costas.

— Onde pensas que vais, doutor Terris O’Brian?

O cientista viu um homenzarrão inclinado ameaçadoramente sobre si, cortando-lhe qualquer via de fuga. Tinha caído numa cilada e fora apanhado. Mas aquele tal de Black parecera-lhe um verdadeiro amigo… Outro engano!

Olhando melhor para o homem, reconheceu-o. Era um dos operacionais do grupo “Sentenciados”, um sujeito que trabalhava no departamento das cobranças de uma empresa de logística e que era conhecido por Charles Big. Tentou fazer-se de surpreendido para despistar o homem.

— Perdão, acho que está enganado…

— Creio que não! Trabalhas para Gartix Vog, assim como eu. E o nosso chefe andou a contar-me umas coisas sobre ti. Precisamos de ter uma conversinha…

Arrastou-o até uma sala que, pela disposição dos móveis e dos equipamentos, indicava ser um Call Center.

Terris O’Brian não iria vacilar naquilo que tinha decidido. A conspiração era mais alargada do que ele supusera à partida e por isso se tivesse de se sacrificar, assim iria acontecer para salvar o pouco que conseguisse salvar. Com o que ele tinha acabado de fazer, o seu trabalho ficava protegido. Só esperava que não houvesse outro cientista suficientemente ambicioso e visionário para continuar de onde ele tinha parado.

O seu sonho estava morto. Ou talvez não…

Esperou pelo seu destino. E acreditou que aquele, apesar do seu terror pessoal, não seria o fim.


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Notas finais do capítulo

E aqui tivemos a apresentação do cientista que foi assassinado, de seu nome Terris O'Brian.
O projeto que ele estava a desenvolver relaciona-se com viagens no tempo. Bastante ousado!
Conhecemos ainda um pouco mais sobre o grupo "Sentenciados" e fomos apresentados a mais dois personagens que aparecerão nos capítulos seguintes. O milionário Gartix Vog e o misterioso Hugo Black.
Na próxima semana regressaremos à Amanda, para descobrir o que lhe aconteceu...

Eu e a AnnieWalflarck agradecemos, desde já, a vossa leitura e os vossos comentários.

Próximo capítulo:
Na Cena do Crime



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