Sentenciados escrita por André Tornado, AnnieWalflarck


Capítulo 12
Jogadores


Notas iniciais do capítulo

Olá leitoras e leitores!
Eu e a AnnieWalflarck trazemo-vos mais um capítulo desta história.
Boas leituras!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/776069/chapter/12

Por causa do olhar que Hugo Black lhe tinha lançado, Poleris dispensou Crowe. Com um gesto indicou-lhe que ficasse do lado de fora do gabinete. Claro que Crowe não gostou nada de se ver privado daquela conversa que seria crucial para determinar o que se estava a passar e explicar, talvez não totalmente, mas algumas dicas serviriam, mesmo as mais leves e improváveis, a confusão do investigador-chefe.

Eric Crowe fez questão de mostrar o seu desagrado. Seguiu Black, que seguia Poleris, até ao gabinete do inspetor-chefe do FBI e fechou a porta do mesmo, isolando os dois que queriam conservar particularmente. Segurou a maçaneta da porta durante algum tempo, fixou o seu olhar despeitado no chefe, mostrou-se carrancudo e só depois dessa pausa que demonstrava os seus sentimentos é que fechou a porta devagar, o mais devagar que conseguiu. Mesmo no meio do barulho que caracterizava a agência, havia sempre alguém que falava alto ao telefone, que chamava pelo colega através da sala, que gostava de se rir para aliviar o ambiente onde se investigavam crimes, Crowe foi capaz de escutar o trinco da porta a entrar na lingueta.

E deste modo ficava privado de saber quem seria esse tal de Hugo Black.

Confiava em Poleris, obviamente. Se houvesse alguma possibilidade de Black ajudá-los a desvendar o que quer que existisse ali – o tal homicídio inexistente do cientista, a acusação inexistente de uma secretária – Poleris seria capaz de arrancar essa colaboração e o outro nem sequer se apercebia de que estava a entrar no jogo do experimentado inspetor-chefe. Crowe, contudo, detestava ficar, muito sucintamente, “do lado de fora do gabinete”. Gostava dos métodos inteligentes e subtis de Poleris, aprendia muito quando se deixava ficar num canto a assistir às conversas direcionadas de Poleris que enganava com a sua simpatia profissional e moldada em técnicas apuradas de persuasão, conforme ditava o manual da academia, conseguia preencher as poucas lacunas deixadas por Poleris e acreditava que o chefe agradecia e admirava a sua intuição acutilante.

Naquele dia, ele não iria participar nesse jogo agradável e estimulante.

Passou uma mão pelos cabelos, mordendo os lábios. Sentia-se furioso com a situação. Depressa, todavia, aplacou a sua ira e dirigiu-se para a área de receção da agência. Ele era o assistente do inspetor-chefe, deveria, tal como se lembrara, preencher os espaços em branco de qualquer investigação que Poleris levasse a cabo – se Poleris estava ocupado com Black e não o queria por perto, então ele deveria, embora não lhe tivesse sido atribuída essa tarefa diretamente, completar a investigação daquela manhã com as evidências que pudesse apurar, incluindo os depoimentos que o inspetor-chefe não fosse capaz de conduzir por manifesta falta de tempo e de oportunidade. Se já não interessava o Jiménez, então interessaria o tal misterioso homicídio e ele tinha de agir.

Mandou chamar o cientista e a secretária à sua mesa.

Como era apenas um assistente, Eric Crowe não possuía um gabinete só para si. O seu local de trabalho era uma ilha num espaço comum, ocupado por mesas de outros agentes de categoria inferior. Por causa da influência de Poleris tivera sorte e a sua mesa não se situava no centro dessa enorme sala caótica, onde se tratava de todos os assuntos burocráticos, administrativos, mais morosos e aborrecidos de uma investigação. A sua mesa estava num canto, próximo da máquina de café – que também era um local concorrido, mas geralmente os agentes que faziam a pausa para o café estavam interessados em tudo menos no trabalho e, geralmente, não espiavam o que Crowe estivesse a fazer. Sabiam também que os assistentes que colaborava com John Aldo Poleris eram intocáveis e que qualquer tentativa de intromissão em qualquer assunto tratado por Poleris era sinónimo de berraria, humilhação e até despromoção. Já tinha acontecido.

Portanto, ninguém incomodou Crowe quando este fez sentar o cientista na cadeira desconfortável que existia do outro lado da mesa.

Terris O’Brian era um sujeito franzino, ruivo, permanente acossado, bastante tímido e parco em palavras. Crowe percebeu que não o poderia assustar em demasia ou revelar qualquer detalhe que o deixasse curioso, porque podia atrapalhar mais do que ajudar. Os cientistas eram naturalmente curiosos. Se ele percebesse que se passava alguma coisa— Crowe não podia especificar que coisa seria – O’Brian passaria a sabotar os esforços de Poleris.

Assim, Crowe teve de inventar uma história sobre patentes e fez perguntas inocentes sobre o trabalho que O’Brian desenvolvia na empresa “Bionics”. Como resultado e apesar de ter tentado ser o mais súbtil possível, O’Brian não falou sobre o seu trabalho, mencionou a investigação da empresa de uma forma genérica – Crowe apontou mentalmente pesquisar sobre a empresa e perceber quais eram as áreas de atuação desta.

De seguida, falou com a secretária. Amanda Scott era uma jovem mulher inquieta, desconfiada, inconveniente em certas observações, mas no geral, Crowe conseguiu apurar que a sua vida profissional e pessoal eram tão normais quanto poderiam ser. Era até uma existência bastante vazia… Crowe teve de reprimir alguns bocejos, pois se o cientista se mostrou relutante, a secretária foi entediante.

Mandou os dois embora, confiando que Poleris iria aceitar a sua decisão como certa e, de seguida, compilou um arquivo sobre as duas empresas onde trabalhavam o cientista e a secretária. Novamente, as informações foram vagas e sem qualquer ligação. Agarrou no telefone e entrevistou dois colegas do cientista que pouco adiantaram. Mas houve um deles que referiu que O’Brian tinha projetos secretos, desde a faculdade que nutria a ambição desconhecida de querer mudar o mundo e Crowe tentou o contacto com antigos colegas de O’Brian.

Enquanto isso, John Aldo Poleris conversava com Hugo Black. Crowe consultou o seu relógio de pulso. Estavam dentro do gabinete havia quase três horas, a hora do almoço já tinha passado… A conversa estaria bastante interessante e Crowe percebeu que Poleris não estava contente com o que estava a obter de Black.

A situação tornava-se mais misteriosa.

(...)

Hugo Black sentia-se à vontade no gabinete. Estava tão descontraído como se estivesse numa esplanada a tomar um refresco e a observar as vistas desanuviadas de uma paisagem estival. Era um facto que incomodava Poleris.

Não quis demonstrar que se sentia em desvantagem no seu próprio escritório. Arregaçou as mangas da camisa com gestos lentos e deu as boas-vindas a Black com um meio sorriso, acrescentando que estava bastante curioso em relação ao que ele lhe tinha para contar. Disse também que iria fazer algumas perguntas e foi quando Black levantou uma mão e devolveu o sorriso com outro parecido, mais aberto, completo, zombeteiro.

As faces de Poleris enrijeceram, assim como as suas costas.

— Senhor inspetor-chefe, conversemos de forma absolutamente franca – começou Black, baixando a mão. Apoiou os braços no apoio da cadeira onde se sentava e fez uma breve pausa programada.

Poleris cruzou os braços. Não adiantava estar com rodeios e afirmou:

— Senhor Black… Disse-me que tinha informações sobre Terris O’Brian e Amanda Scott.

— Podes chamar-me de Hugo.

— Senhor Black, que tipo de informações possui que possam ser relevantes para o FBI?

— Diz-me, senhor inspetor-chefe… O que sabes sobre Terris O’Brian e Amanda Scott? Aposto que o que eventualmente julgas saber está às voltas na tua cabeça, na tua mente perfeitamente organizada de detetive e que existe um pormenor que baralha as tuas certezas. E esse pormenor é, sucintamente, que mais ninguém sabe o que julgas saber. Não é verdade?

Com essa pergunta, fez segunda pausa e o seu sorriso desapareceu. O rosto de Hugo Black parecia esculpido em pedra, tão duro se mostrava. Poleris apertou os dentes.

— Continue – incitou.

Hugo Black recostou-se, uniu as mãos pelas pontas dos dedos e declarou:

— Na noite anterior, no edifício da empresa “Investimentos & Segurança”, o cientista da “Bionics” chamado Terris O’Brian foi assassinado por um sujeito que trabalhava no departamento das cobranças difíceis chamado Charles Big a mando de Gartix Vog, o multimilionário que é também o líder do grupo clandestino “Sentenciados”.

— O quê? – murmurou Poleris, sentindo um estremecimento.

Aquele homem, Hugo Black, estava a fazer uma declaração de suma importância que poderia resolver o caso! E então Poleris lembrou-se do arrepio e continuou a apertar os dentes, zangado. Porque não existia caso algum! Ainda há pouco tinha visto o cientista vivo, na área da receção da agência e Eric Crowe, o seu assistente, tratara-o como um louco quando o fora buscar a casa, embora tivesse disfarçado essa impressão com a sua habitual polidez, porque também desconhecia esse infame homicídio.

Talvez fosse a sua sina nunca apanhar Gartix Vog, nunca apanhar os “Sentenciados”, nunca vingar a estúpida morte do pai…

Black prosseguiu:

— Tivemos um crime e quando assim acontece, existe sempre um motivo. Neste caso, foi a ambição, a ganância, a impaciência. Terris O’Brian trabalha em segredo para Gartix Vog num projeto megalómano e que muitos consideram utópico e impossível. Viagens no tempo! O problema, para mim essencialmente, é que Terris O’Brian conseguiu dobrar o espaço e o tempo, criou um dispositivo que possibilita atravessar a quarta dimensão. Quer para o passado, quer para o futuro. Quando Terris O’Brian descobriu que a sua maravilhosa invenção seria usada por Gartix Vog de uma forma menos ética, teve um rebate de consciência e resolveu terminar unilateralmente com o seu contrato com o milionário. Claro que Gartix Vog não gosta de perder e não gostou de ser atraiçoado pelo cientista. Charles Big foi encarregado de colocar um pouco de pressão no O’Brian, a pressão foi demasiada e um tiro foi disparado, assassinado o pobre cientista. O assassinato teve uma testemunha inesperada, a senhorita Amanda Scott. Gartix Vog não gostou do rumo dos acontecimentos… Apesar de ter conseguido recuperar os planos das viagens temporais, a falta do cientista… vivo impossibilitou que fossem decifrados e compreendidos, pelo que Gartix Vog matou Charles Big.

— Já temos dois corpos nesta história. Só que, quando acordei de manhã, aparentemente não existia nenhum!

— A senhorita Amanda Scott é impulsiva e… digamos, um pouco estúpida. Recuperou um artefacto da cena do crime que não reportou à polícia, nem ao FBI. Um relógio. Mais precisamente, a máquina do tempo criada por Terris O’Brian. Quando a deixaste sozinha na sala do interrogatório, ela acionou o relógio. Por curiosidade, por acidente, por estupidez já que ela é estúpida… E sabes o que aconteceu, inspetor-chefe?

— Ela começou a ter convulsões e teve um enfarte. Morreu.

— Não. A senhorita Amanda Scott fez uma viagem no tempo! A linha temporal é tão complexa que para justificar esses eventos as pessoas costumam pensar que um acidente ocorre ou a pessoa simplesmente desaparece, como um espectro deixado para trás...  É neste ponto que eu entro nesta história e por isso estamos aqui, a ter esta conversa. Por causa dessa bagunça inevitável causada por essas duas pessoas.

Poleris franziu a testa, incrédulo.

— Quem é o senhor, Hugo Black?

— Sou um regulador. A minha função consiste em assegurar aos meus superiores de que tudo segue uma linha ininterrupta e perfeita, sem constrangimentos ou percalços. Sem interferências. Quando existem desequilibrios na linha, a minha função é eliminá-los.

— Linha?

— A linha do tempo, senhor inspetor-chefe.

— Quem são os seus superiores, senhor Black?

— Não posso revelar essa informação, sob pena de convertê-lo num desses nós que devo eliminar.

O ambiente tinha ficado pesado, de repente. Poleris humedeceu os lábios.

— O que me está a dizer… Em resumo será isto: quando a senhorita Scott viajou no tempo com a ajuda do relógio do cientista criou um nó que precisa ser eliminado.

— Dois nós que precisam de ser eliminados – corrigiu Black.

Poleris compreendeu.

— Terris O’Brian e Amanda Scott.

— O cientista já se tinha convertido num alvo ao desenhar, investigar e alcançar o segredo das viagens no tempo. Era apenas uma questão de oportunidade até que fosse sabotado.

— Eliminado.

— A secretária entrou por acaso na equação. Não sou eu que faço as regras. Apenas existo para corrigir as anomalias.

— Mas os dois… estão vivos. Hoje, eles estão ali fora porque eu os convoquei para serem interrogados. Queria perceber o que se estava a passar…

— Estão vivos porque tomei uma decisão temporária para criar a armadilha que fará com que eu os consiga capturar. Eles sabem que estão mortos e que estão vivos. Os verdadeiros Terris O’Brian e Amanda Scott.

Poleris abriu os braços, desconsolado. Desabou sobre a sua cadeira.

— O que é isto? Onde estamos? Que tempo é este?

— Uma linha temporal alternativa que mescla mais de cinco realidades ao mesmo tempo. Transportei-o para cá porque, senhor inspetor-chefe, preciso de si para resolver estar trapalhada. E para completar a armadilha que irá capturar os dois prevaricadores.

— E Gartix Vog? Não é um dos vossos alvos? Pelos vistos, ele é que andava a financiar o cientista que desenvolvia o projeto proibido pelos seus superiores!

— Gartix Vog é outra variável que será tratada. Tudo a seu tempo, senhor inspetor-chefe.

Seguiu-se um debate longo sobre o plano de Hugo Black. No início era apenas uma abstração, o regulador não queria, deliberadamente, contar o que pretendia fazer. Estava a usá-lo e Poleris irritou-se. Rebateu ponto por ponto, contrapôs com argumentos válidos, queria entender o que se estava a passar e essa conversa demorou uma eternidade. As horas passaram e Poleris nem se apercebeu de que já tinha passado a hora do almoço. O regulador, pelos vistos, sendo um viajante do tempo, ou pelo menos alguém que não se importava com o desfiar das horas e dos anos, porque comandava e torcia o tempo a seu bel-prazer, desmerecia a demora.

Aos poucos, Poleris começou a desistir. Não foi algo que aconteceu por conveniência, mas por simples instinto de sobrevivência. Compreendeu que não podia vencer a teimosia do regulador, Hugo Black estava determinado em limpar a porcaria que tinha deixado acontecer – pois Poleris percebeu que aqui ou ali tinham existido deslizes do regulador e que os seus superiores estavam descontentes. Black precisava de se reabilitar.

Aos poucos, Poleris afirmou-se convencido daquele plano esquisito e aceitou fazer parte dos esquemas de Black que andava atrás dos dois fugitivos. Aqueles que existiam ali, naquela linha temporal. Aqueles Terris O’Brian e Amanda Scott que não interessavam para nada.

Duas pancadas leves na porta fizeram Poleris despertar do transe em que se julgava mergulhado depois de escutar aquela história. A sua parte racional dizia-lhe para rejeitar liminarmente o que Hugo Black lhe contara e lhe propusera, a sua parte emocional impelia-o a confiar naquele plano absurdo.

Com as duas pancadas, disse automaticamente:

— Sim?

A cabeça de Eric Crowe assomou na fresta que se entreabriu:

— Inspetor-chefe… tem uma chamada para si que deve atender. Ele só quer falar consigo. Trata-se de Gartix Vog.

— O milionário? – Poleris levantou-se da cadeira com um salto.

Hugo Black sorriu.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Neste capítulo percebemos melhor a aliança que se firmou entre Poleris e Black - são dois homens ambiciosos, obcecados, perigosos, cada um a seu modo.
E Gartix Vog também está incluído no esquema. O que nos leva a crer que Black está a trabalhar com todos para conseguir obter a sua vantagem e conseguir terminar o seu trabalho.
Eric Crowe é o fiel da balança, que equilibra a personalidade intensa de John Aldo Poleris. Poderá Crowe ser decisivo para ajudar Terris e Amanda?

Na semana que vem voltaremos ao Terris e à Amanda e perceber como estão a dar-se um com o outro na estrada, durante a sua fuga.

Próximo capítulo:
Viagem.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Sentenciados" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.