Diário de um Heterônimo escrita por Mathew Liniker


Capítulo 2
Admirável mundo apático


Notas iniciais do capítulo

"Só existem duas coisas infinitas: o universo e a estupidez humana. Entretanto, quanto ao universo, ainda tenho dúvidas."

Albert Einstein.



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No momento em que o timer da câmera chegou a zero, começou a gravar aquela mesma sala branca. Uma tigela cheia de cereal repousava em cima de uma mesa de plástico branca. Tudo estava quieto, ao ponto de ser inquietante.

De repente, o som de um estampido rompeu esse silêncio. A tigela foi atingida por um projétil vindo de fora do alcance da câmera e explodiu em mil pedaços. Todo o leite e os flocos de milho açucarados esvoaçaram por toda a sala. Uma cena de grande lástima, realmente.

Aparecendo no ângulo de filmagem, um rapaz usando o capuz de sua blusa de frio caminhou lentamente até os restos da jovem refeição matinal e, sem hesitação alguma, esmagou cada um daqueles inocentes fragmentos de sacarose e frutose.

Depois, virou lentamente rosto para a câmera. Seus óculos, escuros e opacos, evidenciavam sua alma vazia e obscura, e sua bandana de caveira dava-lhe um ar ameaçador. Bem lentamente, a cena começou a escurecer e, com letras vermelhas, apareceu o logo na tela:

 

CEREAL KILLER.

                                  Em breve...

 

                                     ***

 

— Humor inteligente, você acha aqui com a gente. Patrocine já!!

 

O rapaz mascarado fazia uma dancinha ridícula, balançando os braços pra cima e pra baixo como se quisesse nadar no ar. Depois que se cansou, se sentou na mesa de plástico e, mesmo com a evidente chance de ela quebrar e ele se estabacar no chão, permaneceu lá, de pernas cruzadas e encarando a câmera.

 

— Já pararam pra pensar em quanta informação nosso cérebro já assimilou na nossa vida toda? Acho incrível como um simples acontecimento da nossa infância, como se machucar ao cair de bicicleta, pode interferir em uma escolha futura, como escolher a comprar um carro ou uma moto. Pensando assim, fica a pergunta: por que então diabos eu esqueço a matéria da prova que eu vi a menos de dois bimestres.

Existem aquelas pessoas que descobrem verdades, e tem aquelas que criam suas próprias verdades. Um axioma: uma verdade que se justifica por sim mesma. Horas, você já deve ter ouvido a expressão: “uma mentira contada várias vezes pode se tornar uma verdade”. Bem, tem gente que ainda acredita que o átomo é a menor desconstrução da matéria, ou que exista uma quarta dimensão espacial.

Mas foda-se. Ficar falando minha opinião não vai mudar nada mesmo. Vou continuar jogando meus jogos eletrônicos, comendo Doritos (paga nóis) e continuar propagando o que as pessoas querem ouvir. É por falar essas coisas que meu criador continua desempregado.

Vocês já viram aquele filme lá, que a mulher cai do prédio e mata o cara? ACuzada de Morte? Representa muito bem a sociedade. Você tá de boa, tentando conseguir dinheiro pra comer, pensando em como vai gastar o tempo livre depois da aposentadoria, até que você tem uma epifania. Você percebe a desigualdade das classes, o consumismo demasiado desnecessário, essa ladainha liberalista toda. Mas aí, vem um traseiro lá do sexto andar da elite social e esmaga essa tua ideologia.

Pensadores antigos, que não me perguntem o nome pois não sei, disseram certa vez que o sistema social humano segue um ciclo imutável: existem os Altos, os Médios e os Baixos; os Altos estão nessa posição e lutam para se manter nela; Os Médios tentam trocar de lugar com os Altos; e os Baixos não tem um objetivo definido, pois estão ocupados demais tentando sustentar suas famílias, até que começam a perceber a desigualdade entre eles e os Altos, e começam uma revolução por direitos iguais, se unindo com os Médios; no fim, os Médios tomam o poder, se tornando os novos Altos, e os Baixos voltam à sua vida de miséria de sempre. No fim, apenas mudaram os nomes, mas as classes continuam as mesmas.

E, no fim disso tudo, fica a dúvida: o que importa mais, a liberdade ou a igualdade? Vale mais impor a igualde por meio da supressão da liberdade, ou dar às pessoas a liberdade de serem e fazerem o que quiserem, ignorando o instinto humano e querer ser “maior” que o outro. Bem, só sei de uma coisa: quem nunca mijou em um queijo na estante de uma loja de conveniências não conhece a real liberdade.

Tem que concordar comigo: a igualdade não se dá bem com a liberdade. É tipo a ciência e a religião. Ainda bem que elas são amigas, tentam se dar bem, legal, bacana. Imagino elas se encontrando na rua e dando cutucadas uma na outra:

Liberdade: Fala aee, engomadinha. Se não seguir as regras da sociedade, vai acabar sendo diferente, hein? E, já que seu nome significa literalmente “ausência de diferença”, não vai ser nada bom, não é?

Igualdade: Desculpa aí, pouca roupa. Esqueci que pra você existe um “mundo individual” pra cada um, já que tudo que faz é sem pensar nas outras pessoas. Ainda bem que, no fim, podemos te culpar pelas nossas ações egoístas, não acha?

Como é paradoxal o conceito de sociedade, cara. Como eu queria ser um caderno nessas horas, viu? Poder pensar só naquilo que escrevem nas minhas folhas. Só não queria ser de um aluno de escola pública. O do meu criador tá cheio de rola desenhada. E à caneta, ainda.

Bem, antes que cheguem à conclusão de que é melhor criar uma distopia anárquica no país, vou ficando por aqui. Lembrem-se: pensar é bom, mais pensar demais é pedir pra se tornar niilista.

 

 

Saindo com um salto de cima da mesa de plástico, se alongou um pouco e soltou um longo bocejo. Foi até a câmera e, depois de se despedir com um aceno simpático, apertou o botão de desligar.


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Notas finais do capítulo

Sabia que a maneira mais eficaz de estar errado é tendo a certeza de que você está certo? É verdade, tenho certeza disso!



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