O Diabo do Sertão escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 9
Reencontro indesejado


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura ;)



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O dia foi permeado por trabalho e expectativa. O povo de Lagoa da Esperança tinha dúvidas quanto a funcionalidade do plano de Breno Farias. Muitos ainda se questionavam a respeito da legitimidade da ação. Sabotar um poço d’água não parecia uma atitude moralmente aceitável, ainda que Marcondes fosse um pilantra e merecesse o escárnio de todos. No entanto, o padre já havia batido o martelo e Antônio tinha dado o aval para que o plano fosse executado. Não houve mais discussão depois disso.

A distribuição de tarefas se deu de maneira simples: Maria das Dores, Paulo e Judite alimentaram os cavalos que Padre Miguel havia conseguido com alguns dos amigos que ele tinha na cidade. O religioso era um homem cheio de contatos, e isso era bem útil ao assentamento. O trio também preparou os alforjes e colocou alguns itens que talvez fossem necessários durante a missão – ou, principalmente, caso tudo desse errado e uma fuga fosse necessária –, como carne seca, cantis cheios d’água e outros suprimentos. Todos sabiam que, caso houvesse uma perseguição, o último lugar para retornar seria o assentamento. O sugerido era que os envolvidos acampassem distantes e, quando tivessem certeza que os perseguidores tinham ficado para trás, retornassem à Lagoa da Esperança.

Do outro lado, Padre Miguel e Antônio estavam cuidando do armamento para a missão. Não queriam que houvesse um tiroteio, mas era melhor ter uma arma e não usá-la do que o contrário. João Cego também auxiliava no processo, pois tinha um bom conhecimento do tema. Ali perto, Maria Beatriz e Socorro continuavam a cuidar dos afazeres cotidianos do assentamento. Mesmo que aquele fosse um dia atípico, ainda existiam necessidades típicas a serem supridas. Ainda assim, a mais nova estava um tanto quanto desatenta. Passava longos segundos sem fazer nada, apenas observando o andar das pessoas de um lado ao outro.

— Menina — Socorro chamou sua atenção. — Vem, temo coisa pra fazer.

— Desculpa, dona Socorro — Bia voltou a prestar atenção em suas tarefas. — É só que eu num tô acostumada com isso.

— E é melhor que a gente nunca se acostume — a mais velha parecia estressada com toda aquela movimentação. Não gostava de surpresas e aquele dia estava sendo surpreendente desde o princípio.

Um pouco mais distante dali, José de Lima tinha o ingrato dever de conseguir “material” para o que seria executado à noite.

— “Material” — falou em voz alta. Estava montado em Carlinhos e sabia que seu amigo podia ouvi-lo e entendê-lo. — Uma ótima forma de chamar de porquidão. vendo o que eu passo, Carlinhos?

Estava a poucos quilômetros do acampamento, mas toda sua visão era preenchida pela areia quente do sertão. A única coisa que se destacava a sua frente era um bezerro morto. Seus ossos já estavam a mostra, e sua carne estava preenchida pelos mais terríveis bichos.

— Pegar tapuru — Zé desmontou de Carlinhos e pegou um grande saco costurado. — Isso é trabalho pra qualquer criatura de Deus?

E, com grande repulsa, pegou o bicho pela cabeça e o arrastou até o grande saco. Depois segurou as pernas e, sentindo aquele cheiro podre, quase vomitou. Moscas faziam uma festa por ali e Zé podia apostar que havia sentido um gostinho do inferno. No entanto, como sempre fazia, cumpriu com o seu dever e colocou o bicho inteiro – junto de todos os outros bichos que agora habitavam ele – dentro do saco tão bem costurado. Deu um nó na ponta e, carregando aquilo com nojo, sentiu o animal se desmontar ali dentro.

— Vai ser rápido, Carlinhos — prometeu enquanto amarrava o bicho empacotado nas costas de seu bom amigo. Parou por um instante e olhou para os alforjes com mais “material”. — Acho que já temos porcaria o suficiente aqui.

No assentamento, Diabo observava tudo com atenção. Não movia um dedo para realizar qualquer trabalho braçal que fosse, mas não fazia isso (ou deixava de fazer) por preguiça. A verdade é que o ex-cangaceiro queria ter certeza quanto ao que seria executado. Ele observara horas atrás toda a conversa de Breno Farias, Padre Miguel e Antônio. Ouvira também os argumentos contrários ao plano, ainda que não esboçasse nenhuma reação. A grande questão é que ele não sabia em quem confiar. Quer dizer, até nutria bons sentimentos por Socorro de Deus e até mesmo um estranho respeito por José de Lima. Mas e Breno Farias, o autor do plano? O homem era tão político quanto Marcondes Maia, e isso por si só já era uma falha de caráter, ao menos aos olhos do ex-cangaceiro. “Quem sou eu pra julgar?”, pensou com certa ironia, até finalmente ser chamado para conversar.

— Diabo — Padre Miguel se aproximou e sentou-se ao lado do homem. — Parece que você está totalmente recuperado, certo?

— Ainda sinto algumas dores — respondeu com sinceridade, mas sua expressão facial permanecia neutra. — Mas melhor mesmo. Cês vão mesmo fazer isso? Atacar o poço?

Miguel ficou surpreso. Não se lembrava da última vez que o homem cheio de cicatrizes havia lhe feito uma pergunta, ou pelo menos formado uma sentença tão longa.

— Nós discutimos, Diabo — o religioso começou a explicar. — Sei que há pontos muito negativos no que faremos, mas há algo muito bom que virá com isso.

— E vocês querem que eu faça o trabalho sujo — o ex-cangaceiro antecipou.

— Não. Nós não queremos que ninguém se machuque. O objetivo é invadir o lugar sorrateiramente, sabotar o poço e fugir sem ser visto. Simples assim. Mas seria ótimo contar com você, ao menos como medida de segurança. Sei que é habilidoso com armas e isso pode ser útil. Mas repito: não quero que acabe em tiros. Só quero me precaver.

— Entendi — Diabo falou de maneira jocosa.

— Mas você não é obrigado a nada — Miguel prosseguiu. — Você é livre, lembra? Adoraríamos contar com sua ajuda, mas é compreensível caso você não queira se envolver.

Silêncio. O homem das tantas cicatrizes começou a refletir. Ele se conhecia: era um homem de ação e, apesar das dores recentes, sentia falta disso. Além do mais, também sentia que tinha uma certa dívida de gratidão pelo povo que o ajudou. Talvez, depois dessa missão, finalmente se visse livre.

— Eu vou fazê esse trabalho — afirmou com convicção.

Não tardou para José voltar ao acampamento. O rapaz mostrou o fruto de seu trabalho: carne estragada, tapurus e outras desgraças. Por mais contraditório que parecesse, Padre Miguel deu um sorriso ao ver o tal do “material”.

— Você fez um bom trabalho, José — elogiou. — Nossa, que fedor.

— Imagina eu — Zé respondeu com pouca paciência. — Tava lá botando a mão na massa. Ave Maria!

— O importante é que você está aqui — Miguel tentou se afastar da fonte daquele terrível odor. — Mas tem algo ainda mais valioso que eu preciso te contar.

— O que foi, padre?

— Você vai para o poço junto de Diabo e João Cego — fez uma pausa. Conseguia ver as expressões de medo e surpresa estampadas de forma quase simultânea no rosto do rapaz. Era compreensível, mas ele era a melhor pessoa para fazer o que lhe seria pedido. — Calma, José. Calm...

— Calma?! — Zé interrompeu o religioso. — doido? Doidin da silva, só pode! Vai me mandar lá no meio do mato pro meio do tiroteio? Arriégua, padre!

— Meu Deus do céu! — Até mesmo o padre estava perdendo a paciência. Deu uma pausa para respirar e viu que muitas pessoas olhavam para os dois com curiosidade. Passou a falar mais baixo a partir de então. — É o seguinte: não vai ter tiroteio. Vocês três irão fazer isso da maneira mais silenciosa possível. Irão até o poço e, discretamente, você irá depositar o “material”. Simples, ? Não terá confronto, nenhum tiro será disparado.

— Mas e ele?

— Diabo? O homem está bem da cabeça. Tenha um pouco de fé.

“Um pouco de fé”, José de Lima repetiu mentalmente. Queria ter fé o bastante em si mesmo para dizer o quanto aquele plano era estúpido, imoral e traria consequências desagradáveis para todos do assentamento. Mas não. O rapaz não tinha forças para isso e, no fim do dia, a palavra do padre sempre pesava mais. No entanto, o medo naquele momento era real. O poço deveria estar sendo vigiado e, pra piorar tudo, Diabo lhe faria companhia. O homem por si só não apresentava ameaça para José, mas não passava a maior confiança do mundo. O garoto sentia que corria risco.

Miguel, por outro lado, estava satisfeito. Caminhava pelo assentamento enquanto o céu escurecia e pensava sobre o que a noite reservava para eles. Aquele golpe poderia causar sérios danos a Marcondes Maia, ou ao menos assim ele acreditava. No fim, o jogo político era algo verdadeiramente imprevisível. “Que os anjos estejam do nosso lado”, rezou antes de preparar a fogueira que iluminaria a Lagoa da Esperança durante a noite.

Algumas horas se passaram e o céu já se fazia estrelado. Uma fogueira brilhante iluminava o centro do assentamento, enquanto a maior parte das pessoas se reunia ao seu redor. Todos sabiam o que estava por vir e aquilo gerava tensão. Ainda assim, um gostinho de esperança era sentido por todas aquelas pessoas. Se o plano desse certo e, junto dele, todas as consequências garantidas pelo padre, Breno seria eleito prefeito de Água Funda em alguns meses. E o homem tinha tudo – ou ao menos prometia – para ajudar o povo tão sedento de água e justiça.

Afastados da multidão, Zé e Bia se abraçavam e se beijavam enquanto a hora da missão não chegava. O rapaz queria aproveitar o momento ao máximo, enquanto a moça tentava não demonstrar medo. Ela conhecia o risco que José corria, mas também tinha ciência de que não adiantaria fazer alarde. Isso só iria afetar o coração do seu amado e o deixaria ainda mais inseguro. Não, ele não precisava disso. Na verdade, precisava de segurança, confiança e poder.

— Eu num queria ir pra esse negócio — José se queixava. — Queria ficar aqui com você.

— Eu sei — Beatriz deu um belo sorriso antes de beijar mais uma vez o pai de seu filho. — Mas não se preocupe. é bom nisso: agir escondido, ser sorrateiro. Vai ser só mais um dia comum pra você.

— Se Deus quiser — respondeu antes de voltar a beijar sua namorada.

Enquanto aproveitavam o momento, Maria Beatriz sentiu que tinha algo a contar. Sim, ela sabia. Também sabia que tais momentos estavam se tornando repetitivos e, no fim, a resposta era sempre a mesma: não era o momento ideal. Sempre adiava contar a verdade sobre sua gravidez e sempre levava um sermão de Socorro por isso. Mas céus, seria correto contar tal fato logo agora? O pai de sua criança estava para entrar em uma missão arriscada. Saber de seu filho poderia colocá-lo em um risco ainda maior, não? Ou será que Bia estava simplesmente se enganando? Ela não saberia responder. Dando um último beijo, disse:

— Vai lá. chegando a hora.

Zé deu mais um tenro abraço em Beatriz antes de sair dali. Estando diante da fogueira, pôde ver Antônio, Padre Miguel, João Cego e Diabo. Alguns outros rostos também estavam por perto, mas não havia nada neles que chamasse atenção naquele momento.

— Zé — Antônio falou com carinho. — Está pronto?

— Não — José respondeu com a voz levemente aguda. — Mas ter que ir, ?

— Sim — Miguel se antecipou. Mais ao lado, Diabo observava tudo em silêncio. — Os cavalos estão prontos e vocês estão bem equipados. Lembrem do que eu disse: sejam discretos. Não queremos ver isso nos jornais, pelo amor de Deus.

— Pode deixar, padre — João Cego disse com seriedade.

E, ainda que a contragosto, José de Lima caminhou ao lado de seus mais novos colegas de trabalho: João Cego e Diabo. Padre Miguel seguia mais a frente apenas para vê-los subindo nos três cavalos e desaparecendo no meio da escuridão. Apenas o céu os vigiavam. “Façam isso direito”, o religioso pensou antes de sentir um forte impulso de rezar.

A alguns quilômetros dali, Hugo Sangrento e Levy Queimado vigiavam o poço. Estavam sendo muito bem pagos por Marcondes para fazer isso e, na maior parte do tempo, se divertiam. Hugo sempre trazia dominós enquanto Levy distribuía cigarros e bebidas. Acima deles, uma grande tenda se estendia separando-os do resto do ambiente. O poço propriamente dito ficava a alguns metros, mas não tinha muito o que olhar: ninguém aparecia tão tarde da noite. Além do mais, não tinha como alguém passar por ali sem que fosse visto pelos dois vigias. Ou tinha?

— Marcondes tá doidin da silva, hein? — Hugo comentou enquanto encarava os dominós a sua frente. O lugar estava iluminado por uma forte lamparina.

— Políticos — Levy respondeu antes de dar uma tragada em seu cigarro. — Aquele Breno não é nenhum santo. Marcondes certo em vigiar esse poço.

Mim pagando eu não reclamo — Sangrento gargalhou antes de colocar a última peça no jogo. — Bati!

— Mais um pra você — Queimado jogou um cigarro na direção do companheiro. Hugo segurou o objeto e logo tratou de acendê-lo. — Quero uma revanche.

— Vamos lá.

Hugo Sangrento começou a embaralhar as peças mais uma vez. Era viciado naquele jogo e poderia passar horas naquilo. Para Levy era apenas um passatempo, mas era divertido o bastante para mantê-lo acordado durante trabalhos chatos.

Não tardou para que José de Lima, João Cego e Diabo aparecessem no local. Diante da terra seca, tudo que viam eram as curvas do relevo acidentado, a tenda e o poço. Não havia muito mais o que olhar, mas aquilo era o suficiente para pensarem em um plano.

— Os dois guardinhas — João falou jocosamente enquanto via a sombra dos dois homens através da tenda. — O poço. E aí?

Zé ainda sentia um certo nervosismo. O trio havia deixado os cavalos a uma certa distância, de forma a evitar qualquer barulho que entregasse as suas posições. No entanto, isso não facilitava em nada ao psicológico do bom rapaz: ele só queria pensar numa forma de escapar.

— José — João Cego chamou a atenção do rapaz. — Pensou em algo?

— Eu... Eu... — José pensava enquanto falava. Viu Diabo ao seu lado balançar a cabeça negativamente, como se estivesse decepcionado de alguma forma. — Eu vou dar a volta nessa tenda e chegar no poço pelo outro lado. Aí jogo tudo desse saco.

“Meio óbvio, mas compreensível”, Diabo pensou enquanto observava o cenário com atenção. Olhava de maneira especial para a tenda. As duas sombras pareciam estar bebendo e brincando, não vigiando o local. Talvez fosse mais fácil simplesmente rendê-los e então fazer a coisa toda com mais calma. Ou não. Talvez tivesse um terceiro, não havia como ter certeza.

— Vá, José — disse ao garoto. — Nós te cobrimos daqui.

Suando de medo, Zé concordou com insegurança e começou a se esgueirar vagarosamente pelo terreno a sua frente. Atrás dele, Diabo e João Cego sacaram seus revólveres. O homem de um olho só olhava com desconfiança para o ex-cangaceiro. O cheio de cicatrizes, por outro lado, mantinha seus dois olhos na tal da tenda. Quem seriam aqueles dois? Resolveu dar pequenos passos para frente para, quem sabe, ouvir qualquer coisa que fosse. João Cego fez menção de impedi-lo de se movimentar, mas optou por manter-se calado.

Mais a frente, José ganhava segurança a cada passo que dava. “É, vai ficando mais fácil”, pensou até ouvir uma gargalhada assustadora advinda de dentro da tenda.

— Eu sou o melhor do Nordeste! — Hugo gritava para os quatro cantos do mundo. — Hugo Sangrento, o esfolador do sertão!

“Ave Maria!”, a mente de José gritou. Que susto! Respirando profundamente, o rapaz voltou a se esgueirar e logo se viu diante do poço. Puxou o saco cheio de “material” e despejou dentro do local que tanto servia para matar a sede do povo. Despejou ainda o conteúdo de alguns alforjes, até que finalmente se sentiu leve. “Missão cumprida, amém”.

Do outro lado, no entanto, Diabo parecia surdo para as advertências que João Cego fazia. A cada segundo, o ex-cangaceiro se aproximava mais daquela tenda. A gargalhada de Hugo Sangrento havia chamado a atenção, mas foi a voz seguinte que o fez encher-se de raiva.

vai sair daqui mais defumado que eu.

“Levy?!” foi o nome que surgiu na cabeça de Diabo. “Maldito, maldito, maldito!”.

— Não! — João Cego deixou escapar quando viu o homem cheio de cicatrizes levantar o revólver.

Ao lado do poço, José observava tudo ainda mais amedrontado que antes. “O inferno que eu imaginava”, refletiu tristemente. Abaixado junto ao poço, rezava para que o tiroteio que estava por vir passasse logo e que, principalmente, ele saísse são e salvo. Diabo, por outro lado, não se escondia. Após ouvir a voz do homem queimado e erguer o seu revólver, destravou a arma e caminhou lentamente até a entrada da tenda.

— Seu desgraçado! — Apresentou-se com a arma apontada para seu ex-companheiro de bando. — Te queimaram foi pouco!

Surpresos, Hugo e Levy logo colocaram as mãos em suas respectivas armas. No entanto, sabiam que não deveriam sacá-las. Deveriam esperar o momento certo.

— Vaso ruim num quebra fácil, ? — Levy disse com grande ódio em sua voz. — Eu devia ter mirado na cabeça.

— É um erro que eu não vou cometer — Diabo respondeu antes de puxar o gatilho.

O som do disparo ecoou por todo o sertão. No entanto, nenhuma bala foi de encontro a cabeça de Levy. Olhando incrédulo para o revólver, Diabo deixou que aquela palavra escapasse:

— Festim?! — Seu rosto expressava uma rara surpresa.

Sentindo o coração sair pela boca, José manteve-se abaixado quando a chuva de balas começou. Logo após a descoberta de Diabo, Levy tratou de puxar seu revólver e disparar contra seu ex-aliado. Hugo Sangrento fez o mesmo. O ex-cangaceiro, no entanto, foi mais ágil e correu na direção de João Cego, que já havia começado a disparar em direção da tenda. Um dos tiros atingiu Hugo no pescoço, fazendo o homem começar a se engasgar com o próprio sangue. Vendo seu amigo prestes a morrer, Levy Queimado encheu-se de ainda mais fúria e, deixando a tenda com agilidade, disparou na direção de Diabo e Cego. Um dos projéteis acertou o mais velho no ombro.

Arriégua! — Diabo xingou enquanto procurava os cavalos.

Atrás do poço, José segurava as lágrimas enquanto pensava numa maneira de escapar do fogo cruzado.

— Vá, garoto! — A voz de um machucado João Cego foi ouvida. — Eu te cubro!

Mesmo ferido, o homem de um olho só passou a disparar na direção de um ágil Levy, que corria em zigue-e-zague cruzando a tenda cheia de furos repetidas vezes enquanto tentava acertar o velho pela segunda vez. Respirando fundo, José fez o sinal da cruz três vezes antes de partir em disparada em meio aquele cenário de horror. Passou ao lado da tenda e viu o corpo já sem vida de Hugo Sangrento de relance. Seguiu reto até passar por um ferido João, que continuava a disparar as poucas balas que restavam.

— Vá! — O mais velho ordenou. — Eu cuido desse!

Seguindo as ordens do homem, Zé correu em direção dos cavalos. Diabo, que estava mais a frente, já havia pego o seu. O rapaz logo conseguiu o segundo.

— Vamos — o homem cheio de cicatrizes disse com grande raiva na voz.

Seguindo as ordens da voz da experiência, José olhou para trás mais uma vez. “Que Deus abençoe João”, pensou antes de ouvir mais dois disparos. Ele e Diabo seguiram a cavalo por mais alguns quilômetros até tudo parecer mais calmo. O ex-cangaceiro parou por um instante e o rapaz fez o mesmo.

— Desça! — Diabo ordenou.

Sem entender bem o que se passava, Zé seguiu a ordem do homem cheio de cicatrizes e desmontou rapidamente do cavalo. O mais velho logo fez o mesmo.

— Que diabos foi aquilo?! — Sem guardar forças, Diabo acertou um forte soco no rosto de José. O rapaz caiu no chão enquanto sentia o sangue quente se espalhar pelo seu rosto.

— Calma, calma! — O mais jovem suplicou, mas o diabo do sertão voltou a acertá-lo com mais socos e pontapés.

Ocês me traíram!

“Chega!”, uma voz dentro de José de Lima gritou. Sem qualquer pudor, o garoto agarrou um dos pés de Diabo com uma mão e, com a outra, acertou um soco no meio das pernas de seu algoz. Nunca tinha dado um soco tão forte e baixo na sua vida, mas surpreendeu-se ao ver o ex-cangaceiro caindo para trás e gemendo de dor. Erguendo-se lentamente, o rapaz com o rosto cheio de sangue ofegava, mas tinha algumas coisas para dizer.

— Chega! — Sua voz saiu mais grave que o normal. — Ninguém te traiu, ouviu? Ninguém! Eu não sei qual foi o negócio cum sua arma, mas não é culpa minha! Se quer falar com alguém, fale com o padre, ou com Antônio, ou com sei lá quem! Égua, acabamos de deixar João Cego pra trás. Eu quase ficava pra trás, pelo amor da mãe de Deus. Eu quase morri, Diabo! Quase! Agora quer me matar? Vá em frente. Mas eu espero que não se esqueça que matou alguém que tava lá só pra te ajudar. Eu não pedi pra aqui, não pedi mesmo!

E, pela primeira vez depois de tempos, apenas o vento pôde ser ouvido. Não havia tiros, conversas, cascos de cavalos se chocando contra o chão. Apenas o Diabo, o rapaz e o sertão. Ainda sentado, o ex-cangaceiro parecia um pouco envergonhado não só da sua atitude, mas também do golpe que havia recebido. Ainda sem olhar diretamente para o mais jovem, levantou-se e, indo em direção de seu cavalo, disse:

Vamo voltar pra Lagoa.


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Notas finais do capítulo

Muito obrigado por ter lido até aqui!

Quais caminhos você acredita que a história seguirá? Sinta-se livre para especular e teorizar. Vale até dizer que é uma simulação na Matrix (mas não é, graças a Deus).

Até logo =D



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