O Diabo do Sertão escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 5
Que os jogos comecem


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura :)



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Gostava de sentir os raios de sol tocarem o rosto de vez em quando. Apesar da idade avançada, Antônio mantinha uma postura jovial e caminhava com a velocidade e ritmo de um adulto. “Até minhas costas voltarem a doer”, ele pensou de maneira jocosa. Realmente se sentia bem naquele lugar: Lagoa da Esperança. Por mais simples que fosse, o assentamento trazia boas energias ao homem. Ainda que não fosse católico, via a cruz no centro do assentamento como um símbolo de segurança e paz. Olhava para o curral e, mesmo os animais estando magros, enxergava aquilo como uma fonte de alimento, transporte e trabalho aos moradores. Havia ainda aquelas casinhas de taipa: pobres, mas cumpriam muito bem o seu papel. No fim do dia, cada coisa parecia se encaixar no espaço ideal e, independente das dificuldades que houvessem, uma nova esperança surgia a cada nascer do sol.

E as pessoas? O que dizer delas? Enquanto caminhava, Antônio via cada um dos moradores e lembrava de outros que estavam fora de seu campo de visão. Dando leves passos pelo campo seco, Paulo tentava mais uma vez jogar sementes na esperança de vê-las brotando algo. O homenzinho olhou para o céu e fez alguns pedidos ao Senhor, enquanto sua esposa – Judite – se aproximava para tentar dar algum suporte ao marido.

— Dessa vez vai dar certo — Antônio ouviu Paulo declarar. — Em nome de Jesus.

Não muito longe dali, Larissa, que era filha de Paulo e Judite, tentava brincar com alguns gravetos enquanto o jovem Saulo a perturbava. A garota sempre escondia sua boneca de verdade do garoto, pois ele era verdadeiramente irritante. Estava sempre cantando canções estúpidas e chamando nomes terríveis. Era um pobre órfão que até então não havia aprendido a ter modo algum.

— Saulo, será que você pode fechar essa sua grande boca? — Antônio apareceu como um cavaleiro negro e cheio de luz para Larissa. — Está incomodando a todos.

Com os cabelos quase cobrindo os olhos, um irritado Saulo deu um pouco de espaço e paz para Larissa, que retribuiu o seu herói com um sorriso.

— Brinque e seja feliz, criança — o mais velho sorriu de volta.

Voltou a caminhar para admirar o resto de sua pequena terra. “Sua?”, uma voz em sua cabeça perguntou. Não, não era. Na verdade, o assentamento ocupava um espaço qualquer entre Água Funda e mais um conjunto de cidadezinhas de tamanho minúsculo. A qualquer momento poderia aparecer um bando de cangaceiros – ou pior – para querer reclamar o lugar, ou simplesmente cometer atrocidades a troco de nada. “Que os deuses nos protejam”, Antônio orou.

Tu parece estar olhando pro nada, Tom — uma voz feminina levemente grave se direcionou ao homem. — O que planeja?

Parando de andar, o velho virou-se e pôde ver Maria das Dores. Com a pele branca como neve, a moça estava sempre avermelhada debaixo daquele sol. Vinha de alguma cidade mais ao sul – muito mais ao sul – e era uma ex-prostituta. Viveu os piores terrores imagináveis, mas parecia ter esquecido seu passado, ou simplesmente fingia muito bem.

— Agradecendo aos céus por este lugar — Antônio começou a responder —, principalmente pelas pessoas que vivem nele.

Maria soltou uma risada e, rapidamente, puxou um cigarro e o acendeu. Começou a fumar e, após olhar mais uma vez para o velho, disse:

— Quer? Tenho mais alguns aqui.

— Não, mas obrigado, Maria — ele rejeitou. — Mas e você? O que pensa?

— Eu estou esperando secar umas roupas — ela apontou para o varal ao seu lado. Várias roupas estavam penduradas, mas um conjunto em específico chamava a atenção: o pertencente a Diabo. — Foi horrível lavar todo aquele sangue e areia. Sem falar que o homem tava uma podridão. Como é que Socorro aguenta passar o dia com ele no mesmo ambiente? Essa mulher vai direto pro céu.

— Socorro é uma mulher muito boa. Sempre solícita. Ainda assim, temos que elogiar também o João Cego. Ele também está partilhando do bom cheiro do nosso convidado.

Antônio e Maria compartilharam uma longa gargalhada antes do homem finalmente prosseguir com sua andança. Passou pela casinha onde Padre Miguel dormia de vez em quando, afinal, o homem também tinha uma residência em Água Funda. O seu trabalho, na verdade, não se resumia ao que ocorria na Lagoa da Esperança: o padre também tinha longas conversas com políticos e com o próprio povo da cidade. “Nunca foi sobre apenas nós”, Antônio se lembrava de uma das falas do padre, isso anos atrás. “Existem milhares de Josés e Marias necessitando do nosso trabalho. Lagoa da Esperança é só apenas um dos tantos perdidos pelo mundo”, ele dizia. E, ainda que tivesse suas ressalvas, o velho concordava.

Seus olhos se direcionaram para a tenda onde Diabo estava. Passou por Maria Beatriz, que estava com o rosto mais fechado do que o comum. Pensou em dizer alguma palavra doce para melhorar o dia da garota, mas sentiu que não era o melhor momento para isso. “Onde está José?”, também pensou em perguntar. “Ah, ele é a causa dessa cara”, concluiu. Chegando finalmente na entrada da tenda, afastou o tecido transparente que separava o ambiente do resto do assentamento e pôde ver um mais bem aparentado Diabo. Socorro de Deus e João Cego também estavam ali.

— Antônio — a mulher o recebeu com doçura. — Sempre com um olho em tudo.

— Sempre — o velho sorriu. — Como estão as coisas, Diabo?

O ex-cangaceiro estranhou o fato do homem ter se direcionado diretamente para ele. Apesar da última conversa que tiveram, era fato que ele não era exatamente a pessoa mais querida em todo o assentamento. Ainda assim, não tinha nada a reclamar em relação à Socorro de Deus e ao vigia, João Cego.

um pouco méior — foi tudo que ele respondeu.

Percebendo até que ponto Antônio queria chegar, o roliço João Cego se levantou e, dando um sorriso tímido, disse:

quer conversar cum ele a sós, né?

— Seria ótimo — Antônio respondeu com leveza e viu o homem com um olho de vidro se retirar prontamente. Socorro fez um breve carinho no ombro do mais velho antes de deixar a tenda. Ele estava, finalmente, a sós com Diabo. — Você é forte, hein? Lembro de quando chegou aqui. Faz poucos dias, sabe? Diziam que você podia morrer, mas olha só: vivo e se fortalecendo. Fico feliz que esteja bem, Diabo. Aliás, tem algum outro nome que eu posso usar?

O velho e o padre tentaram falar sobre isso anteriormente. A resposta foi um sonoro silêncio por parte do ex-cangaceiro. No entanto, o ex-escravo ainda nutria esperanças de conquistar um pouco da confiança do homem ferido. Se não isso, que ao menos conquistasse o respeito, ou um respingo de simpatia. Qualquer resultado seria melhor que a mais obscura dúvida.

— Eu sou Diabo — respondeu com a voz cansada. — É isso que sou.

— Que assim seja, Diabo — Antônio abriu um leve sorriso. — Eu entendo isso de nome, sabe? Já me chamaram de muitas coisas. Quer dizer, eu não sei se você sabe, mas eu já fui um escravo.

O velho abriu os botões de sua camisa branca e revelou um peitoral cheio de cicatrizes. Suas costas também contavam com terríveis marcas e aquela imagem fez até mesmo Diabo arregalar os olhos. Ele definitivamente não esperava isso.

— Vê? — Antônio abotoou a camisa e se virou mais uma vez para o homem deitado. — A vida não é fácil para ninguém. Depois de escapar da escravidão, até que consegui juntar alguma riqueza. Contei com bons amigos, mas também encontrei pessoas venenosas como cobras. Fui traído e tive ainda que lidar com pessoas me chamando de tudo que você possa imaginar: escravo, neguinho, preto, resto de merd... Enfim, você entendeu. Tudo menos quem sou: Antônio. Esse é meu nome e é assim que quero ser conhecido. A questão é que eu entendo como é ser tratado como um objeto, uma ferramenta. Às vezes até chegamos a nos confundir e pensamos que somos o que dizem que somos. Mas não é verdade. Eu sou Antônio e, se você quiser ser Diabo, que seja. Mas se tiver outro nome, diga-me e eu irei lhe tratar por quem você é.

Diabo ouvia atentamente as palavras proferidas pelo mais velho. Ainda assim, seus olhos mantinham-se impassíveis e seus lábios não faziam a menor menção de movimento. De toda forma, Antônio estava satisfeito com a atenção. Prosseguiu:

— Eu entendo como é ser um objeto, uma simples ferramenta nas mãos de pessoas mais fortes. Sofri isso na pele e foi difícil acreditar que me libertei. Às vezes ainda ouço uma voz tentando me convencer que continuo escravo. Mas a verdade é que não precisa ser assim — os olhos de Antônio começaram a lacrimejar, enquanto Diabo mantinha sua postura usual. — Eu sei que você também já foi uma ferramenta. Mas isso não ocorrerá aqui, eu garanto. Você é livre. Não deixe que as antigas amarras continuam pressionando a sua alma.

Lágrimas já desciam pelo rosto do homem de pele escura, enquanto o ex-cangaceiro mal piscava. Fazendo um certo esforço, Diabo conseguiu sentar-se e, após respirar fundo, disse com a voz ríspida:

— Eu sei que vô sê só mais um aqui. Ninguém me engana — havia raiva em suas doloridas palavras.

Antônio soltou um riso abafado. Talvez já esperasse uma reação mal criada e, dessa forma, não se sentia desapontado ou triste. “Não há como exigir muito de um homem tão sofrido”, ele tinha consciência. Com a voz ainda serena, respondeu:

— É verdade. Para ficar em Lagoa da Esperança, ou você ajuda, ou vai embora. Mas caso queira ficar, nós também te ajudaremos. Se quiser ir embora, ninguém vai te impedir. Isso eu garanto — o velho soltou mais um sorriso e, após dar um leve tapa no joelho de Diabo, deixou a tenda. Atrás dele, o ex-cangaceiro refletia sobre as palavras recém-ouvidas.

A calmaria da Lagoa da Esperança contrastava com a movimentação e barulheira do Hospital de Água Funda. O lugar, que já não era grande, aparentava estar muito menor. Um grande número de pessoas ocupava o escasso espaço. Detalhe: não buscavam tratamento ou ajuda, tais pessoas apenas queriam saciar a própria curiosidade mórbida. Momentos atrás, o político em ascensão Breno Farias fora alvejado por um pistoleiro desconhecido. O criminoso havia fugido a cavalo e se perdido no meio do sertão sem que a polícia pudesse fazer coisa alguma. Pior: o homem cobria o rosto, além de que seus olhos eram ordinariamente semelhantes com os olhos de qualquer outro homem da região.

No entanto, não era do criminoso que as pessoas falavam sem respeitar o silêncio que o espaço pedia. Um único nome se espalhava entre cochichos e gritos: Breno Farias. Tendo sido baleado, o homem fora transportado rapidamente para o hospital. No entanto, para a tristeza dos curiosos, a equipe médica fechou as portas do corredor e impediu que qualquer outra pessoa – com exceção da família – tivesse acesso ao homem ferido. Isso não impediu que algumas pessoas tentassem invadir. Por sorte, um enfermeiro corpulento sempre estava por perto prestando um papel de vigia ou guarda-costas. Definitivamente não era um dia comum para o hospital.

No meio do grupo, no entanto, havia quem tivesse algo além da curiosidade mórbida. Tentando passar pelo espaço apertado e, no processo, recebendo empurrões e xingamentos, um homem se deslocava com uma calma inacreditável. Ele parecia surdo para as palavras feias que lhe eram ditas e cego para todos os estúpidos que tentavam se meter em seu caminho apenas para atrapalhar. Vestindo uma camisa azul claro com um colete bege, ele era alto e, com isso, foi fácil enxergar o caminho que deveria seguir. No entanto, chegou um ponto em que as palavras se fizeram necessárias.

— Afastem-se — a voz dele era doce, mas soou como um trovão. — Delegado Augusto Nunes passando.

Augusto viu as pessoas mais a frente virando-se rapidamente para conferir se aquela frase era verdadeira. E era. Sem pestanejar, começaram a abrir espaço para que o homem da lei pudesse passar. Caminhando com calma, ele sorria para os que pareciam mais simpáticos, não se esquecendo de dizer “com licença” e “obrigado” quando finalmente completou a sua andança. Estando de frente para o corpulento enfermeiro, disse com plena educação:

— Eu estou aqui para ver Breno Farias — o enfermeiro o ouviu com atenção e respeito. — Pode me conduzir para o seu quarto?

O enfermeiro chamou uma moça que prontamente ajudou Augusto a encontrar o quarto onde o candidato a prefeito estava situado. Após a porta branca, tudo que havia era um pequeno espaço, mas funcional. Breno Farias jazia deitado em uma cama hospitalar, ao mesmo tempo em que Clara, sua esposa, e Lara, sua irmã, estavam sentadas em duas cadeiras ali. As duas se levantaram assim que viram o delegado se aproximar da entrada.

— Um dia terrível — Augusto retirou o chapéu de couro em respeito ao sofrimento da família Farias. — Como ele está?

Clara caminhou até o delegado, enquanto Lara esperou mais atrás. A esposa do homem deitado deu-lhe um forte abraço. Após isso, a irmã aproximou-se e disse em voz baixa:

— Descubra quem fez essa desgraça! — Apesar da baixa intensidade da sua voz, a raiva era quase palpável.

Augusto apenas acenou com a cabeça. Olhou para o lado e viu que, observando tudo aquilo, um silencioso Breno se fazia presente. Ele não estava tão mal, afinal. Na verdade, o delegado ficou feliz ao ver que o político havia sofrido um tiro no braço, algo bem mais leve do que se falava na entrada do hospital. “Foi bem no coração, eu vi”, alguém havia dito momentos atrás. Mas não importava. Augusto estava lá atrás de respostas. Era o trabalho dele e isso bastava.

— Madames, vou pedir um favor para vocês: podem se retirar para eu conversar com Breno? — Augusto falava com gentileza, o que facilitou a aceitação por parte das moças. — Muito obrigado.

Elas já haviam saído quando a porta foi fechada e o delegado se virou para Breno Farias, que continuava deitado e assistia toda aquela cena com um sorriso discreto.

— Você demorou — o político não foi nem um pouco polido. — Pensei que estivesse esperando o atirador voltar para investigar um homicídio, e não uma tentativa.

— É uma cidade grande para uma delegacia pequena — Augusto se justificou, mas manteve a calma. — De toda forma, fico feliz em vê-lo bem, Breno. Já levei um tiro no braço e sei o quanto dói, mas vai melhorar.

— Espero — o anterior sorriso de Breno havia dado espaço para uma expressão séria e que flertava com a raiva. — E espero que algo seja feito quanto a isso.

— É para isso que estou aqui — a voz do delegado veio um pouco mais seca que o esperado. — Diga-me: você tem inimigos?

Breno deu uma gargalhada seguido de um urro de dor. Seus irônicos olhos se viraram para Augusto. O político disse:

— O que você acha? De verdade, o que você acredita? Eu me candidato para enfrentar o maior nome político dessas terras abandonadas por Deus, e você vem me perguntar se eu tenho inimigos? É claro que eu tenho inimigos. Qualquer um com um “Maia” no nome me vê como uma peste a ser exterminada do mundo.

— E o que você estava fazendo na praça? — O homem mais alto voltara a falar com mais doçura na voz.

— Eu estava entregando o negócio criminoso que Gustavo Água-Santa e Marcondes fazem parte. E então boom! O desgraçado do pistoleiro aparece e tenta me matar. Por Cristo! — Breno parecia fazer força para não gritar de raiva diante dos eventos recentes.

— Marcones e Gustavo então? Seus dois “inimigos”? — Augusto anotava tudo em uma espécie de agenda ou diário.

— Sim — o olhar do político estava quase em chamas. — Algo mais?

— Uma última pergunta: como você conseguiu aqueles documentos? Entregaram na delegacia e eu fiquei intrigado. Como você teve acesso a isso?

Um incômodo silêncio tomou conta do ambiente enquanto Breno tentava costurar uma resposta. O delegado, no entanto, mantinha a calma e não tentava apressar qualquer frase que pudesse vir a sair do candidato à prefeitura de Água Funda.

— Achei pelo sertão — Farias mentiu. — Os documentos estavam largados e eu simplesmente os peguei.

— Sério? — A expressão na face de Augusto saiu da calma e serenidade para um misto de estranheza e desconfiança.

— Sim — Breno sustentou a mentira enquanto olhava nos olhos do delegado.

O movimento de Água Funda não se dava apenas no hospital. Não muito longe dali, um almoço em família ocorria. No entanto, não era um almoço qualquer. Com o rosto fechado e quase arrancando os cabelos, Marcondes Maia dava uma garfada na carne de sol enquanto desejava garfar todos os seus demônios. Ele não estava só: Francisca, sua esposa, e seus filhos – Guilherme, Lino e Luana – estavam todos sentados a mesa. Ainda assim, havia uma separação emocional, apesar da aproximação física. Enquanto o prefeito se preocupava com tudo que era falado em suas costas, sua esposa pensava nos filhos. Guilherme a cada dia se metia mais com álcool e jogos de azar, enquanto os pequenos Lino e Luana não encontravam um pai e uma mãe que cumprissem seus papéis com plenitude. Não eram tempos fáceis para a família Maia.

— Eles... eles... — Marcondes não conseguiu se manter em silêncio. — Tem um povin me chamando de assassino! Assassino! Tão dizendo que eu mandei matar o homi!

Ouvindo o desabafo do marido, Francisca gesticulou para que ele fizesse silêncio, ao mesmo tempo em que apontou para os filhos pequenos a mesa. Guilherme, por outro lado, permaneceu calado e atento ao seu prato de comida.

— O quê?! — O patriarca bateu na mesa com força. — Nem na minha casa eu posso falar direito?! Que seja!

O prefeito deixou o almoço em família dando pesados passos. Lino e Luana encararam a mãe, enquanto ela simplesmente olhava o marido se afastar.

— Mas é um fresco mesmo — Guilherme disse com insolência, mas de forma que seu pai não o ouvisse.

Sua mãe rapidamente deu-lhe uma resposta: um forte tapa no rosto.

— Mais respeito com seu pai! — Simultaneamente, as crianças começaram a espernear e, dessa maneira, Francisca se viu num espiral de irritação sem fim dentro da própria casa.

Tentando fugir da barulheira da sua própria família, Marcondes Maia foi para a sala de estar e passou a encarar o velho relógio. Olhava também para as fotos antigas e imaginava em que ponto ele poderia ter errado. “Melhor não pensar nisso”, uma voz em sua cabeça falou com grande intensidade. Seguindo tal conselho, o prefeito esticou o braço e pegou um cigarro deixado sobre a mesinha. Acendeu-o e deixou que a fumaça o distraísse enquanto imaginava quais decisões deveria tomar nos próximos dias.

Porém, seus pensamentos foram interrompidos pelo bater da porta. Curioso, seguiu com o cigarro em mãos. Olhando através do olho mágico, viu uma figura diferente: com o cabelo penteado de lado e a barba feita, um estranhamente arrumado Lúcio Arcanjo se fazia presente. Vestia uma camisa rosa claro de mangas longas, sendo obviamente usada poucas vezes. Maia abriu a porta.

— O que você faz aqui?! — Falou de maneira acusadora. — Você acabou de meter bala no Farias e agora vem pra minha casa? Que sem-vergonhice é essa?

O prefeito quase fechou a porta no rosto de Lúcio, mas o cangaceiro impediu o feito com o seu pé. Estava surpreso com as palavras do poderoso homem, mas manteve a calma.

— Meter bala? — Arcanjo tentava entender enquanto falava. — Como assim?

Não querendo ser visto tendo aquela conversa, Marcondes Maia gesticulou para que o homem adentrasse logo a casa. Fechando a porta, deu uma longa tragada no cigarro antes de prosseguir com o diálogo.

— Você tá me dizendo que não atirou em Breno Farias hoje pela manhã? — Nada fazia sentido.

— Por que eu atiraria no mauricinho? — Lúcio buscava lógica no ilógico.

— Jesus, Maria e José. A cada dia essa cidade vai mais pro brejo. Quem atirou então?

— E eu sei lá — o cangaceiro estava se cansando daquela conversa que simplesmente não iria levá-lo para canto algum. Ao invés disso, tinha algo importante para conversar. Retirando um pacote grosso de dinheiro do bolso, esticou a mão para o prefeito. — Tome. Alguns pagaram com joias, mas eu dei um jeito de vender. O povo tá dando cada vez mais trabalho pra pagar, chefe.

— Minha nossa — Marcondes pegou o dinheiro e verificou a quantia. — Vai ser o suficiente. Mas então, é só isso ou tem algo mais pra dizer?

— Talvez tenha a ver cum esse pistoleiro que você falou — Lúcio mal podia esperar para dar o fora dali e se livrar daquelas roupas chiques. — É o Diabo, lembra? O Levy tava procurando por ele e achou umas pistas. Ele deve aqui pelas bandas de Água Funda.

Coçando a cabeça, Marcondes deu mais uma longa tragada. Os problemas pareciam estar querendo se acumular. Sem saber mais o que dizer, apresentou a porta para Lúcio e disse:

— Obrigado pelo trabalho, Lúcio — sua voz parecia mais serena, mas uma grande aflição tomava conta de sua alma. — Qualquer novo trabalho eu peço pro Valter te avisar.

— Até mais, chefe — Arcanjo soltou um riso sarcástico antes de deixar a casa do prefeito.

Ao fechar a porta, Maia se assustou ao se virar e ver Guilherme o encarando com um olhar inquisidor.

— Quem é ele, pai? — O garoto questionou.

— Um homem do trabalho — Marcondes estava cansado de dar respostas e resolver problemas. — Da prefeitura.

E, sabendo que seu pai mentia como em todos os outros dias, o filho foi até a porta e se retirou. Talvez fosse mais um bom dia para se afogar nas garrafas e jogos.


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Notas finais do capítulo

Muito obrigado ♥



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